Regilane Barbosa Maceno
Imagem de Anselmo Costa |
O Neorrealismo surge como um movimento literário de
engajamento crítico-social, cujo objetivo passa a ser, analisando as
experiências humanas, expressar os valores da sociedade. Ao recuperar valores
do regionalismo romântico, do Realismo e do Naturalismo do século XIX, os
autores buscam registrar em suas obras os dramas coletivos do Brasil que
apontam para nossa miséria de países subdesenvolvido, submerso no atraso, nas
injustiças.
No Brasil, o Neorrealismo é inaugurado a partir de José
Américo de Almeida com o romance A
bagaceira, publicado em 1928. Essa obra fixa a nova tendência que se
anuncia em decorrência, principalmente do descontentamento ao governo ditatorial
de Getúlio Vargas.
Seguindo a ideia de representar a realidade brasileira,
Rachel de Queiroz, publica O Quinze,
em 1930. Jorge Amado surge com O país do
Carnaval, em 1931. Menino de engenho,
de José Lins do Rêgo em 1932 e Vidas
Secas, de Graciliano Ramos, em 1938, somam-se ao romance de José Américo de
Almeida e aprofundam o conceito de regionalismo, fazendo-o sair do exotismo
romântico e dos excessos do Naturalismo para uma visão mais críticas da
realidade.
A visita a esses problemas sociais ganha uma conotação
universal e atemporal. Isso porque, o contexto histórico dentro e fora do
Brasil era, em sua maioria, ditatorial. O país vivia o declínio da República
Velha que culminou com a Revolução de 1930. Mas, o sentimento eufórico
provocado pela a Revolução não durou muito, pois logo veio o Golpe de Estado
que instituiu o Estado Novo ou Era Vargas. E muitos dos intelectuais e
escritores que haviam lutado por ideais revolucionários acabaram presos,
vítimas da censura e da perseguição política e, tiveram seus livros proibidos
de circular.
Dentro desse cenário, o romance neorrealista mostra uma
estreita relação com toda essa efervescência política pela qual o Brasil e o
mundo passavam. Corresponde à crença na denúncia e análise dos problemas
sociais do país como possibilidade de iniciar os processos de resolvê-los. O
que para alguns críticos o tornava panfletário, vez que os romancistas, imbuído
do sentimento de missão política, queriam mostrar as tensões que transformavam
ou destruíam os homens enquanto construto social.
Em síntese, nas palavras de Bosi, o Neorrealismo parte do
Socialismo,
freudismo, catolicismo existencial: as chaves que serviram para a decifração do
homem em sociedade e sustentaria ideologicamente o romance ‘empenhado’ desses
anos fecundos para a prosa narrativa. [...] difunde-se o gosto da análise
psíquica, da notação moral, já radicada no mal-estar que pesava o mundo de
entre-guerras. (BOSI, 1994, p. 389).
Acompanhando
a trajetória reafirmada pela obra neorrealista da segunda metade do século XX,
alguns autores contemporâneos ainda fazem uso desses mecanismos para retratar
os muitos personagens, atores sociais do painel das injustiças locais,
nacionais e transnacionais da atualidade. Voltando-se para as mazelas urbanas, para
a violência nas periferias, o abandono das forças sociais, os autores criam, de
forma verossímil, personagens cujas dificuldades enfrentadas cotidianamente
personificam a realidade brasileira atual. São personagens abandonados pela a
esperança e pela memória.
Cidade
de Deus é uma fotografia do cotidiano da favela carioca que dá nome ao livro
desde sua formação nos anos de 1960 até os anos pouco depois de 1990. Nesse
romance Paulo Lins engendra a figura do “herói problemático”, em tensão com as
estruturas degradadas vigentes, ou seja, estrutura incapaz de atuar os valores
que prega: liberdade, justiça, igualdade social e de direito (BOSI, 1994). O
autor transfigura a situação de uma comunidade real para o romance e, como
ocorre no livro O cortiço, a
comunidade é elevada ao papel de protagonista da história.
São apresentados os criminosos, os
policiais corruptos, os moradores que servem de escudos para o crime e os
jovens de classe média em busca pela droga, a hipocrisia da sociedade e a
maldade humana. Paulo Lins descreve com riqueza de detalhes, às vezes sórdidos,
como os crimes são praticados, perpetuados e jogados sob o grande “tapete” da
hipocrisia social, representada pela mídia.
A obra Cidade de Deus é homóloga da estrutura social. (Goldmann, 1976).
Tudo é realista, pois o autor sempre morou nessa favela. Assim, o romance Cidade de Deus pode ser chamado de
neorrealista, pois traz consigo características fortes do romantismo, do Realismo
e do Naturalismo, pois o autor parte de fatos reais para compor a trama do
romance, juntamente com suas pesquisas antropológicas e linguísticas que enriquecem
a história e permite apresentar ao leitor uma realidade crua dos
acontecimentos. Para além disso, a obra traz também os traços da “cor local” na
tessitura do texto, isto é, informações sobre espaço, costumes, e comportamento
que permitem ao leitor reconhecer os aspectos típicos, característicos de uma
região específica, aqui, a favela que nomeia a narrativa.
Bosi (1994) distribuiu os romances
brasileiros escritos a partir de 1930 do século XX em quatro tendências: o
romance de tensão mínima; o romance de tensão interiorizada; o romance de
tensão crítica e o romance de tensão transfigurada. Dentro dessas tendências, Cidade de Deus se enquadra no romance de
tensão mínima, pois os personagens não se destacam tanto da paisagem que os
condiciona.
Em sua origem, o personagem
neorrealista é coletivo, ou seja, é um grupo que vive em condições econômicas,
morais e sociais adversas, embora haja um ou outro personagem que se destaque
em relação ao grupo. Na obra em estudo, o personagem Busca-Pé cumpre a tarefa
de ser o mecanismo de acesso à problemática social que o romance quer enfocar.
Ele não sucumbe à realidade que o cerca, apesar dos vários “convites”. “Um dia aceitaria um daqueles tantos
convites para assaltar ônibus, padarias, táxi, qualquer porra...” (LINS,
2002, p. 12).
Em Cidade de Deus, magotes
de crianças, desde muito cedo, são explorados, os jovens lutam contra o
desemprego e o preconceito traduzido na cor da pele:“Argumenta com os amigos que o loiro era filho de Deus, o branco Deus
criou, o moreno era filho bastardo e o preto o Diabo cagou.”(idem, p.53).
Ou em virtude da região de origem, como é o caso dos nordestinos da Paraíba e
do Ceará que fugindo da seca migram para a cidade grande em busca de
oportunidade: “Todo nordestino, além de
puxa-saco de patrão é alcaguete. Essa raça não vale nada. São capazes de cagar
o que não comeram” (idem, p. 140). São esses personagens que, dividindo
esses espaços hostis, se debatem nesse romance contra o fatalismo do meio
geográfico ou das forças sociais que os comprimem.
Mas, contrariando o que se possa
pensar, a personagem neorrealista, ao invés da sua miséria exterior, possui uma
riqueza interior admirável que é a esperança metaforizada pelo sonho. Novamente
o personagem Busca-Pé cumpre a função de transmitir o aceno de uma saída.
Pensava ele,
Bem
que as coisas poderiam ser como as professoras afirmavam, pois se tudo corresse
bem, se arranjasse um emprego, logo, logo compraria uma máquina fotográfica e
uma porrada de lentes. Sairia fotografando tudo o que lhe parecesse
interessante. Um dia ganharia um prêmio. (LINS, 2002, p.12).
Cabe ao narrador do romance ser o
portador da voz que denuncia. E é através do personagem como Inferninho, um
sonhador tal qual Sinhá Vitória, de Vidas
Secas, que o narrador revela a impossibilidade de se esquivar, mesmo pelo
sonho, à indiferença social, ao preconceito, ao crime, à morte. O personagem em
questão sonha em fazer o “grande lance”, e constituir família com Berenice,
sair da vida do crime, mas não teve saída. Ele simplesmente
Deitou-se
bem devagar, sem sentir os movimentos que fazia, tinha uma prolixa certeza de
que não sentiria a dor das balas, era uma fotografia já amarelada pelo tempo
com aquele sorriso inabalável, aquela esperança de a morte ser realmente um
descanso para quem se viu obrigado a fazer da paz das coisas um sistemático
anúncio de guerra. Aquela mudez diante das perguntas de Belzebu e a expressão
de alegria melancólica que se manteve dentro do caixão. (idem, p. 171).
Situando a história no contexto da favela, o Lins acaba
apreendendo o cerne das questões mais problemáticas que denuncia, analisando a
origem dos conflitos e dilemas, pois “faz das personagens sínteses resultantes
das ações e reações que se percebe entre elas e o mundo. Já não é o escritor
que domina a personagem e a conduz; simplesmente a vida que o personagem vive é
que a conduz, a ela e ao escritor” (REIS, 1981).
Essa independência da personagem é concretizada também na
linguagem, pois, com o intuito de ancorar-se na verossimilhança, o escritor
neorrealista coloca na boca dos personagens uma linguagem de acordo com seu status social. Linguagem popular, às
vezes chula, agarrada à oralidade, mas que não ofusca o entendimento do
leitor/interlocutor. “Se pintar os homi,
larga o dedo! – avisou Ferroada.” (LINS, 2002 p.162); “comia meu cu dizendo que me amava e agora roba meu dinheiro na maior
cara de pau! Filho da puta! – gritava Ana Rubro Negro” (idem, p. 215).
O retrato neorrealista da favela apresentado em Cidade de Deus mostra que o processo de
socialização traz as marcas do abandono sócio-político ao qual os moradores
estão subjugados: “Cidade de Deus não
contava com o incentivo da prefeitura” (idem, p. 81). O sujeito é
violentado diariamente em seus direitos de cidadãos pagadores de altos
impostos.
O cidadão é obrigado a conviver diuturnamente com a
violência banal, que se faz presente não só nas armas que ceifam vidas jovens,
mas na maldade humana, incendiada pela ausência do olhar social, como vemos
nesta passagem:
Tomou
um copo de cachaça, vagarosamente, com um cruel sorriso desenhado no rosto.
[...] Pegou a faca na rapidez do Diabo [...] Colocou o recém-nascido em cima da
mesa. Este, ainda no primeiro momento, agiu como se fosse ganhar colo. Segurou
o bracinho direito com a mão esquerda e foi cortando o antebraço. O neném
revirava-se. Teve de colocar o joelho esquerdo sobre seu tronco. As lágrimas da
criança saiam como se quisessem levar as retinas, num choro sobre-humano [...]
Agia de modo automático. [...] teve dificuldade de atravessar o osso, apanhou o
martelo embaixo da pia da cozinha, com duas marteladas, concluiu a primeira
cena daquele ato. A criança esperneava o tanto que podia, seu choro era um
coração sem jeito e sem Deus para ouvir. Depois não conseguiu chorar alto, sua
única atitude era aquela careta, a vermelhidão querendo soltar dos poros e
aquele sacudir de perninhas. [...] O bebê estrebuchava com aquela morte lenta.
As duas pernas foram cortadas com um pouco mais de trabalho e a ajuda do
martelo. O assassino levou a faca um braço acima da cabeça para descê-la e
dividir aquele coração indefeso. (LINS, 2002, p.68-69).
Fica evidente a necessidade de se pensar sociologicamente,
ou seja, compreender o contexto que envolve essa comunidade fadada a ocupar um
lugar fora da memória. O rosário de crimes destrinchados ao longo da narrativa,
praticados por todas as instituições sociais como família, o Estado, cuja
incumbência é zelar pela a harmonia e o equilíbrio da sociedade como um todo
mostra quão efêmero e ineficiente têm sido as preocupações com o ser humano. E
os reflexos desse desamparo são reverberados no comportamento dos jovens das “cidades
de Deus” espalhadas Brasil a fora, que são levados a buscar, cobrar na
criminalidade, a tal da sobrevivência.
Em linhas gerais, Cidade
de Deus é um romance neorrealista nos moldes de sua gênese, como Capitães da Areia, de Jorge Amado. É o
retrato de uma realidade em que moleques traquinos, nem tão meninos, com a
inocência perdida nas esquinas das favelas, carentes de afetos, de instrução
transfiguram o cenário social contemporâneo. É a certeza de que nenhuma das
camadas sociais está isenta de participação, para o bem ou para o mal.
Referências
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira.
São Paulo: Cutrix, 1994.
GOLDMANN, Lucien. Sociologia do romance; tradução de Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1976.
LINS, Paulo. Cidade de Deus: romance. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
REIS, Carlos. “Evolução
literária”. In Textos Teóricos do
Neo-Realismo Português. Lisboa, Seara Nova, Editorial Comunicações,1981.