Aline Teixeira da Silva Lima
Owen Gent |
A
violência doméstica contra a mulher recebe esta denominação por ocorrer dentro
do lar, e o agressor ser, geralmente, alguém que já manteve, ou ainda mantém,
uma relação íntima com a vítima. Pode caracterizar-se de diversos modos, desde
marcas visíveis no corpo, designando a violência física, até formas mais sutis,
porém não menos importantes, como a violência psicológica, que traz danos
significativos à estrutura emocional da mulher. Conforme a lei nº 11.340/2006
(conhecida como Lei Maria da Penha), configura-se como violência doméstica
contra a mulher “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”[1], criminalizando, assim,
tais abusos inaceitáveis. Independentemente da sua roupagem, a violência de
gênero expõe o desequilíbrio social da nossa sociedade, demonstrando a relação
de poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Esses papéis impostos
de maneira tão arbitrária a ambos os sexos são consolidados ao longo da
história e reforçados pela ideologia, como atenta Pierre Bourdieu ao afirmar
que as estruturas de dominação são
produto
de um trabalho incessante (e, como tal, histórico) de reprodução, para o qual
contribuem agentes específicos (entre os quais os homens, com suas armas como a
violência física e a violência simbólica) e instituições, famílias, a Igreja, a
Escola e o Estado.[2]
E
como “a cultura é a categoria que proporciona a matéria-prima para a construção
das representações e é, também, a cultura que constitui o espaço onde circulam
as representações sociais”[3], consequentemente, as
produções literárias representam o tema aqui em consideração, estimuladas pelas
ações violentas contra a mulher encontradas na ordem social. Dessa forma, é
importante observar como autores contemporâneos, como Mia Couto, retratam a
violência de gênero em suas produções, como no conto “Baralho erótico”,
instigando, assim, questionamentos e reflexões de poder, explicitadas no
parágrafo anterior, as quais ainda vigoram em nossa sociedade, e que,
geralmente, legitimam uma naturalização da violência contra a mulher.
Logo
na primeira frase do conto, o narrador dá uma pista do assunto a ser abordado,
fazendo uso de um trocadilho: matrimônio/maltrimônio, sugerindo as
infelicidades de um casamento. A narrativa é em 3ª pessoa e tem como
protagonistas um casal, os quais são nomeados de maneira bastante
significativa: Fula Fulano e Dona Nadinha. O primeiro nome do esposo, Fula, é
um vocábulo usado, coloquialmente, para caracterizar uma pessoa furiosa. Seu
sobrenome, Fulano, é um substantivo utilizado para tratar de pessoa incerta, ou
quando não se quer nomear alguém, ou ainda quando pouco importa o nome do
indivíduo para a conclusão do assunto. Assim, Fula Fulano pode ser qualquer um
dos tantos homens que agridem sua parceira. Já o nome da esposa, Dona Nadinha,
representa o que não existe, um vazio, um silêncio muito característico da
personagem. E o fato do pronome indefinido estar no diminutivo (nadinha)
reforça o seu significado de ausência absoluta. Trata-se de uma mulher a quem
não se atribui valor ou importância.
A
dinâmica do casal é bastante simples. Fula Fulano não possui trabalho formal,
vive de malandragens. Portanto, passa o dia inteiro em casa, a dormir, e sai à
noite, visando às jogatinas. Dona Nadinha, como seu “título” sugere, é uma dona
de casa, mas que só faz os serviços domésticos à noite, pois, durante o dia,
fica a folhear revistas e ver fotografias, sonhando com as imagens
visualizadas, as quais eram sua única janela para o mundo, tendo em vista que
passava o dia confinada em casa. Essa
rotina do casal se torna bastante peculiar a partir do momento que o narrador
informa ao leitor que Dona Nadinha só fala no período noturno: “A mulher era
muda durante o dia. Mesmo que pretendesse não lhe saía palavra. Só de noite ela
falava”[4]. Logo em seguida, outra
informação é acrescida, que ela apanhava do marido. Dessa forma, a situação é
desvendada: Dona Nadinha não falava no período diurno, porque seu marido
encontrava-se em casa. E quando ela se pronunciava, ela apanhava. O período que
ele se encontrava fora para jogar, à noite, era o mesmo que ela falava. Essa
afirmação pode ser comprovada pelo trecho: “Mesmo sendo noite [Fula Fulano
estava em casa], Nadinha rodopiou sem falar”[5]. E infere-se que
conversava sozinha, já que este momento era o mesmo que realizava os trabalhos
da casa e não havia interlocutores ali com ela.
O
silêncio de Nadinha é um traço característico de mulheres que sofrem abusos por
parte de seus cônjuges. Devido à crença na incapacidade de reagir à situação de
agressão, elas desenvolvem certas estratégias de sobrevivência, como o
silêncio. Do ponto de vista psicológico, ao evitar discussões, por exemplo,
elas estão se esquivando de agressões e se mantendo vivas nesse ambiente
adverso, sobre o qual elas não têm controle, nem que para isso precisem deixar
de opinar, abrir mão de suas vontades, aderir ao isolamento e/ou ao mutismo. No
conto, das três vezes que se atreveu a falar, Nadinha apanhou duas. Na primeira
vez que sofreu violência física, ela recriminara o marido pelo fato de ele
possuir um baralho erótico[6]. Para ela, isso não era
coisa de homem casado. Era falta de vergonha. É interessante observar a
predominância das leis patriarcais ainda na sociedade contemporânea, como os
valores são inculcados na cabeça da mulher, fazendo com que ela condene o
marido por olhar mulheres nuas em fotos e não o condene pelo fato de ele bater
nela, tratando essa barbárie com normalidade. Por ter se atrevido a falar, o
marido a espancou, deixando-a no chão, chorando e derramando sangue. Após
observar o demasiado choro e sangramento da esposa, Fula Fulano, em um acesso
de pena, como descreve o narrador, promete que, se ela parar de chorar, ele
nunca mais sairá para jogar. Tudo indica que ela acreditou, pois na noite
seguinte, ele ficou em casa até o recomeço do ciclo da violência, em que
“inicialmente há a fase de agressão, seguida da fase de desculpas e, por fim,
de reconciliação”[7].
O
acesso de pena por parte de Fula Fulano, citado anteriormente, é bastante
questionável, tendo em vista que não há indícios de arrependimento ao longo da
narrativa. Pelo contrário, no único momento que ele reflete sobre suas
agressões à mulher, a ela é atribuída a culpa:
Existe, existe, anuía o marido
em sono. Coitada, a mulher. Devia ser que
apanhou demais, tenho que abrandar a socaria. Eu lhe bato não é desamor, é só
porque você é uma criança, entende Nadinha? Está a ouvir, Nadinha? Ela não
entendia, parvinha que era, olho pregado nas fotos.[8]
Além disso, mais à frente na narrativa, o
marido dá a entender que o seu último choro quase molhou e estragou seu baralho
erótico. Percebe-se, portanto, que havia outros motivos pelos quais ele pediu
que ela parasse de chorar, talvez até medo que uma terceira pessoa ouvisse. Ele
não sente culpa ou remorso, por isso, em nenhum momento do conto, ele pede
desculpas, já que na mente dos agressores não estão cometendo nenhum equívoco,
estão sempre corretos e a culpa é sempre do outro, como ilustrado no trecho
acima. Ressalto ainda que se trata de um comportamento extremamente machista,
tendo em vista que é atribuída à mulher um status
de parva, de incapaz e inferior, sendo também esse ato uma forma de maltratar a
mulher psicologicamente. Com a repressão psicológica e física, ele exerce poder absoluto sobre o que a mulher faz, sente e pensa, mesmo no mais íntimo de seu ser.
Dessa forma, nota-se que esse momento do “arrependimento” não é real, ele é
apenas uma parte do ciclo de violência.
A noite em que o marido ficou em casa foi a
mesma em que ela apanhou pela segunda vez. Seu silêncio, assim como sua voz, o
incomodou. O egocentrismo, característica peculiar dos agressores, faz com que
a mulher tenha que se comportar exatamente de acordo com a vontade deste. Dessa
forma, Fula Fulano queria, de maneira atípica, conversar, mas ela não tinha o
costume de travar diálogos com o marido (nem com ninguém), pois sua zona de
segurança era justamente o silêncio. Entretanto, ela sentia-se só, tinha
vontade de falar com alguém, com outras mulheres, amigas, tanto que falava
sozinha na ausência do marido. E quando questionada por ele se não queria
conversar, respondeu que sim, mas com a mulher que existia dentro dele. O ciclo
de violência recomeçou com uma nova agressão. Depois da surra, ele não ficou em
casa para fazer as pazes, foi direto encontrar seus amigos de jogo, quebrando,
assim, a promessa que havia feito a sua esposa na última reconciliação. Seus
colegas estranharam o comportamento de Fula Fulano naquela noite, descrito como
brusco pelo narrador. Nota-se, portanto, que ele era “fula” apenas com ela. É
comum dos agressores possuir um comportamento agradável e simpático em seu
círculo social, não levantando suspeitas de sua conduta repugnante no convívio
íntimo familiar.
Ao
distribuir as cartas do baralho erótico para os amigos, um deles recebe uma
carta, que, na verdade, era uma foto de Nadinha nua, entregando-a, em seguida,
com relutância, ao Fula Fulano. Neste trecho da narrativa, tem-se uma imagem
construída pela ideologia social, na qual as mulheres devem viver para agradar
aos homens, pois, apesar de Nadinha se enamorar “das mulheres das capas, que
[são] lindas, [que] nem transpiram, nem enrugam com o tempo”[9], ela demonstra reprovação
e desgosto quanto ao baralho erótico, contudo, diante do valor que o marido
demonstrou dar àquelas imagens, em detrimento da imagem da própria Nadinha, ela
se fotografa e coloca a fotografia entre as cartas do baralho. Essa é uma forma
de subserviência, pois ela se comporta de determinada maneira somente para
agradar ao seu esposo. Talvez haja até culpa, sentimento partilhado entre as
vítimas de violência, por não ser tão atraente como as mulheres que compunham o
baralho.
A
princípio, a última parte do conto é bastante contraditória, já que ao chegar à
sua casa, Fula Fulano, com raiva, não bate na mulher, como esperado, mas sim a
beija com paixão. Mas se voltarmos para o segundo ciclo de violência narrado,
percebe-se que a sua última fase foi a agressão, portanto, a próxima seria
justamente a reconciliação, sendo exatamente isso o que acontece. Assim, um
ciclo de violência termina junto com a narrativa, pronto para começar outros. Mia
Couto construiu uma figura feminina vinculada à subordinação, à fragilidade e
ao silêncio. E não há final feliz,
nem uma idealização da situação, já que Dona Nadinha não se liberta das
agressões, pelo contrário, é refém daquela situação que acomete o seu espaço
doméstico. Além disso, não há resistência de sua parte, tendo em vista que ela
nem ao menos questiona o contexto
de violência em que está inserida, agindo com extrema naturalidade quanto ao
mesmo. Essa mulher, assim como tantas outras, vive no silêncio, é invisível,
tal como seu sofrimento, mesmo que a violência a qual lhe é investida não seja,
já que a mesma fica estampada em seu corpo, mas este não reclama pela
voz, e sim pelas lágrimas e pelo sangue. Nesta curta narrativa, o autor leva o leitor a refletir o quanto
a vida dessa personagem é desumanizada, sem valor algum, justamente como é
pregado pela ideologia patriarcal, em que se impõe o poder masculino em
detrimento dos direitos e vontades das mulheres, subordinando-as às
necessidades pessoais dos homens.
COUTO,
Mia. “Baralho erótico”. In: Contos do
nascer da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
BOURDIEU,
Pierre. A dominação masculina. São
Paulo: BestBolso, 2014.
BRASIL.
Lei n. 11.340. (2006). Lei Maria da Penha. Brasília: Presidência da República.
DALCASTAGNÈ,
Regina. “Renovação e permanência: o conto brasileiro da última década”. Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea, n. 11. Brasília, janeiro/fevereiro de 2001, pp. 3-17.
JODELET,
Denise. “As representações sociais: um domínio em expansão”, em Jodelet, Denise
(org). As representações sociais. Rio
de janeiro: EDUERJ, 2001, pp. 14-44.
SCHWAB,
Beatriz; MEIRELES, Wilza. Um soco na alma:
relatos e análises sobre violência psicológica. Brasília: Logos 3, 2014.
SHOWALTER, Elaine. Speaking of gender. New York and London:
Routledge, 1989.
[1] BRASIL, 2006.
[2] BOURDIEU,
2014, p.55.
[3] JODELET,
2001, p. 14.
[4] COUTO,
2014, p. 135.
[5] COUTO, 2014, p. 137.
[6] Tipo de baralho que contém imagens
de mulheres despidas.
[7] SCHWAB; MEIRELES, 2014, p. 26.
[8]
COUTO, 2014, p. 136.