5 de outubro de 2018

A violência contra a mulher em Mia Couto


Aline Teixeira da Silva Lima

Owen Gent

A violência doméstica contra a mulher recebe esta denominação por ocorrer dentro do lar, e o agressor ser, geralmente, alguém que já manteve, ou ainda mantém, uma relação íntima com a vítima. Pode caracterizar-se de diversos modos, desde marcas visíveis no corpo, designando a violência física, até formas mais sutis, porém não menos importantes, como a violência psicológica, que traz danos significativos à estrutura emocional da mulher. Conforme a lei nº 11.340/2006 (conhecida como Lei Maria da Penha), configura-se como violência doméstica contra a mulher “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”[1], criminalizando, assim, tais abusos inaceitáveis. Independentemente da sua roupagem, a violência de gênero expõe o desequilíbrio social da nossa sociedade, demonstrando a relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Esses papéis impostos de maneira tão arbitrária a ambos os sexos são consolidados ao longo da história e reforçados pela ideologia, como atenta Pierre Bourdieu ao afirmar que as estruturas de dominação são
produto de um trabalho incessante (e, como tal, histórico) de reprodução, para o qual contribuem agentes específicos (entre os quais os homens, com suas armas como a violência física e a violência simbólica) e instituições, famílias, a Igreja, a Escola e o Estado.[2]
E como “a cultura é a categoria que proporciona a matéria-prima para a construção das representações e é, também, a cultura que constitui o espaço onde circulam as representações sociais”[3], consequentemente, as produções literárias representam o tema aqui em consideração, estimuladas pelas ações violentas contra a mulher encontradas na ordem social. Dessa forma, é importante observar como autores contemporâneos, como Mia Couto, retratam a violência de gênero em suas produções, como no conto “Baralho erótico”, instigando, assim, questionamentos e reflexões de poder, explicitadas no parágrafo anterior, as quais ainda vigoram em nossa sociedade, e que, geralmente, legitimam uma naturalização da violência contra a mulher.
Logo na primeira frase do conto, o narrador dá uma pista do assunto a ser abordado, fazendo uso de um trocadilho: matrimônio/maltrimônio, sugerindo as infelicidades de um casamento. A narrativa é em 3ª pessoa e tem como protagonistas um casal, os quais são nomeados de maneira bastante significativa: Fula Fulano e Dona Nadinha. O primeiro nome do esposo, Fula, é um vocábulo usado, coloquialmente, para caracterizar uma pessoa furiosa. Seu sobrenome, Fulano, é um substantivo utilizado para tratar de pessoa incerta, ou quando não se quer nomear alguém, ou ainda quando pouco importa o nome do indivíduo para a conclusão do assunto. Assim, Fula Fulano pode ser qualquer um dos tantos homens que agridem sua parceira. Já o nome da esposa, Dona Nadinha, representa o que não existe, um vazio, um silêncio muito característico da personagem. E o fato do pronome indefinido estar no diminutivo (nadinha) reforça o seu significado de ausência absoluta. Trata-se de uma mulher a quem não se atribui valor ou importância.
A dinâmica do casal é bastante simples. Fula Fulano não possui trabalho formal, vive de malandragens. Portanto, passa o dia inteiro em casa, a dormir, e sai à noite, visando às jogatinas. Dona Nadinha, como seu “título” sugere, é uma dona de casa, mas que só faz os serviços domésticos à noite, pois, durante o dia, fica a folhear revistas e ver fotografias, sonhando com as imagens visualizadas, as quais eram sua única janela para o mundo, tendo em vista que passava o dia confinada em casa.  Essa rotina do casal se torna bastante peculiar a partir do momento que o narrador informa ao leitor que Dona Nadinha só fala no período noturno: “A mulher era muda durante o dia. Mesmo que pretendesse não lhe saía palavra. Só de noite ela falava”[4]. Logo em seguida, outra informação é acrescida, que ela apanhava do marido. Dessa forma, a situação é desvendada: Dona Nadinha não falava no período diurno, porque seu marido encontrava-se em casa. E quando ela se pronunciava, ela apanhava. O período que ele se encontrava fora para jogar, à noite, era o mesmo que ela falava. Essa afirmação pode ser comprovada pelo trecho: “Mesmo sendo noite [Fula Fulano estava em casa], Nadinha rodopiou sem falar”[5]. E infere-se que conversava sozinha, já que este momento era o mesmo que realizava os trabalhos da casa e não havia interlocutores ali com ela.
O silêncio de Nadinha é um traço característico de mulheres que sofrem abusos por parte de seus cônjuges. Devido à crença na incapacidade de reagir à situação de agressão, elas desenvolvem certas estratégias de sobrevivência, como o silêncio. Do ponto de vista psicológico, ao evitar discussões, por exemplo, elas estão se esquivando de agressões e se mantendo vivas nesse ambiente adverso, sobre o qual elas não têm controle, nem que para isso precisem deixar de opinar, abrir mão de suas vontades, aderir ao isolamento e/ou ao mutismo. No conto, das três vezes que se atreveu a falar, Nadinha apanhou duas. Na primeira vez que sofreu violência física, ela recriminara o marido pelo fato de ele possuir um baralho erótico[6]. Para ela, isso não era coisa de homem casado. Era falta de vergonha. É interessante observar a predominância das leis patriarcais ainda na sociedade contemporânea, como os valores são inculcados na cabeça da mulher, fazendo com que ela condene o marido por olhar mulheres nuas em fotos e não o condene pelo fato de ele bater nela, tratando essa barbárie com normalidade. Por ter se atrevido a falar, o marido a espancou, deixando-a no chão, chorando e derramando sangue. Após observar o demasiado choro e sangramento da esposa, Fula Fulano, em um acesso de pena, como descreve o narrador, promete que, se ela parar de chorar, ele nunca mais sairá para jogar. Tudo indica que ela acreditou, pois na noite seguinte, ele ficou em casa até o recomeço do ciclo da violência, em que “inicialmente há a fase de agressão, seguida da fase de desculpas e, por fim, de reconciliação”[7].
O acesso de pena por parte de Fula Fulano, citado anteriormente, é bastante questionável, tendo em vista que não há indícios de arrependimento ao longo da narrativa. Pelo contrário, no único momento que ele reflete sobre suas agressões à mulher, a ela é atribuída a culpa:
Existe, existe, anuía o marido em sono. Coitada, a mulher. Devia ser que apanhou demais, tenho que abrandar a socaria. Eu lhe bato não é desamor, é só porque você é uma criança, entende Nadinha? Está a ouvir, Nadinha? Ela não entendia, parvinha que era, olho pregado nas fotos.[8]
Além disso, mais à frente na narrativa, o marido dá a entender que o seu último choro quase molhou e estragou seu baralho erótico. Percebe-se, portanto, que havia outros motivos pelos quais ele pediu que ela parasse de chorar, talvez até medo que uma terceira pessoa ouvisse. Ele não sente culpa ou remorso, por isso, em nenhum momento do conto, ele pede desculpas, já que na mente dos agressores não estão cometendo nenhum equívoco, estão sempre corretos e a culpa é sempre do outro, como ilustrado no trecho acima. Ressalto ainda que se trata de um comportamento extremamente machista, tendo em vista que é atribuída à mulher um status de parva, de incapaz e inferior, sendo também esse ato uma forma de maltratar a mulher psicologicamente. Com a repressão psicológica e física, ele exerce poder absoluto sobre o que a mulher faz, sente e pensa, mesmo no mais íntimo de seu ser. Dessa forma, nota-se que esse momento do “arrependimento” não é real, ele é apenas uma parte do ciclo de violência.
A noite em que o marido ficou em casa foi a mesma em que ela apanhou pela segunda vez. Seu silêncio, assim como sua voz, o incomodou. O egocentrismo, característica peculiar dos agressores, faz com que a mulher tenha que se comportar exatamente de acordo com a vontade deste. Dessa forma, Fula Fulano queria, de maneira atípica, conversar, mas ela não tinha o costume de travar diálogos com o marido (nem com ninguém), pois sua zona de segurança era justamente o silêncio. Entretanto, ela sentia-se só, tinha vontade de falar com alguém, com outras mulheres, amigas, tanto que falava sozinha na ausência do marido. E quando questionada por ele se não queria conversar, respondeu que sim, mas com a mulher que existia dentro dele. O ciclo de violência recomeçou com uma nova agressão. Depois da surra, ele não ficou em casa para fazer as pazes, foi direto encontrar seus amigos de jogo, quebrando, assim, a promessa que havia feito a sua esposa na última reconciliação. Seus colegas estranharam o comportamento de Fula Fulano naquela noite, descrito como brusco pelo narrador. Nota-se, portanto, que ele era “fula” apenas com ela. É comum dos agressores possuir um comportamento agradável e simpático em seu círculo social, não levantando suspeitas de sua conduta repugnante no convívio íntimo familiar.
Ao distribuir as cartas do baralho erótico para os amigos, um deles recebe uma carta, que, na verdade, era uma foto de Nadinha nua, entregando-a, em seguida, com relutância, ao Fula Fulano. Neste trecho da narrativa, tem-se uma imagem construída pela ideologia social, na qual as mulheres devem viver para agradar aos homens, pois, apesar de Nadinha se enamorar “das mulheres das capas, que [são] lindas, [que] nem transpiram, nem enrugam com o tempo”[9], ela demonstra reprovação e desgosto quanto ao baralho erótico, contudo, diante do valor que o marido demonstrou dar àquelas imagens, em detrimento da imagem da própria Nadinha, ela se fotografa e coloca a fotografia entre as cartas do baralho. Essa é uma forma de subserviência, pois ela se comporta de determinada maneira somente para agradar ao seu esposo. Talvez haja até culpa, sentimento partilhado entre as vítimas de violência, por não ser tão atraente como as mulheres que compunham o baralho.
A princípio, a última parte do conto é bastante contraditória, já que ao chegar à sua casa, Fula Fulano, com raiva, não bate na mulher, como esperado, mas sim a beija com paixão. Mas se voltarmos para o segundo ciclo de violência narrado, percebe-se que a sua última fase foi a agressão, portanto, a próxima seria justamente a reconciliação, sendo exatamente isso o que acontece. Assim, um ciclo de violência termina junto com a narrativa, pronto para começar outros. Mia Couto construiu uma figura feminina vinculada à subordinação, à fragilidade e ao silêncio. E não há final feliz, nem uma idealização da situação, já que Dona Nadinha não se liberta das agressões, pelo contrário, é refém daquela situação que acomete o seu espaço doméstico. Além disso, não há resistência de sua parte, tendo em vista que ela nem ao menos questiona o contexto de violência em que está inserida, agindo com extrema naturalidade quanto ao mesmo. Essa mulher, assim como tantas outras, vive no silêncio, é invisível, tal como seu sofrimento, mesmo que a violência a qual lhe é investida não seja, já que a mesma fica estampada em seu corpo, mas este não reclama pela voz, e sim pelas lágrimas e pelo sangue. Nesta curta narrativa, o autor leva o leitor a refletir o quanto a vida dessa personagem é desumanizada, sem valor algum, justamente como é pregado pela ideologia patriarcal, em que se impõe o poder masculino em detrimento dos direitos e vontades das mulheres, subordinando-as às necessidades pessoais dos homens.


COUTO, Mia. “Baralho erótico”. In: Contos do nascer da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. São Paulo: BestBolso, 2014.
BRASIL. Lei n. 11.340. (2006). Lei Maria da Penha. Brasília: Presidência da República.
DALCASTAGNÈ, Regina. “Renovação e permanência: o conto brasileiro da última década”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 11. Brasília, janeiro/fevereiro de 2001, pp. 3-17.
JODELET, Denise. “As representações sociais: um domínio em expansão”, em Jodelet, Denise (org). As representações sociais. Rio de janeiro: EDUERJ, 2001, pp. 14-44.
SCHWAB, Beatriz; MEIRELES, Wilza. Um soco na alma: relatos e análises sobre violência psicológica. Brasília: Logos 3, 2014.
SHOWALTER, Elaine. Speaking of gender. New York and London: Routledge, 1989.


[1] BRASIL, 2006.
[2] BOURDIEU, 2014, p.55.
[3] JODELET, 2001, p. 14.
[4] COUTO, 2014, p. 135.
[5] COUTO, 2014, p. 137.
[6] Tipo de baralho que contém imagens de mulheres despidas.
[7] SCHWAB; MEIRELES, 2014, p. 26.
[8] COUTO, 2014, p. 136.

[9] COUTO, 2014, p. 135.

15 de agosto de 2018

O DIREITO À VOZ DE CAROLINA




ENTREVISTA COM RAFFAELLA FERNANDEZ
Por Edma de Góis*

A notícia da candidatura da escritora Conceição Evaristo à cadeira nº 7 da Academia Brasileira de Letras, antes ocupada pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos, criou um clima de expectativas sem precedentes para o cenário literário brasileiro, afinal se aceita, será a primeira vez que uma escritora negra adentrará a instituição, vista por muitos como um reduto majoritariamente de homens brancos e nem sempre atenta aos valores literários das biografias dos seus imortais. Para além do trabalho literário individual, a candidatura de Conceição Evaristo carrega consigo uma série de questões históricas, além de muita simbologia em torno do passo para se tornar imortal. Basta citarmos a mais óbvia das razões para isso: a dificuldade de escritoras negras serem reconhecidas como autoras, publicadas e consequentemente lidas. A recente publicação de Meu sonho é escrever..., de Carolina Maria de Jesus, organizada pela doutora em Teoria e História da Literatura pela Universidade de Campinas (Unicamp), Raffaella Fernandez, endossa a necessidade de reparação crítica em relação às escritoras negras, ao recuperar a potência poética dos textos de Carolina. Durante muitos anos, ela foi vista como mera testemunha ocular de um mundo de exclusões, a favela em que vivia. Quarto de Despejo, um campeão de vendas no Brasil e no exterior nos anos 60, caiu no esquecimento e hoje é leitura obrigatória para vestibulares da Unicamp e da UFRGS. Em entrevista ao Caderno 3, a organizadora do volume fala sobre a importância de recuperação desses textos, racismo institucional e mudança de rota da crítica em relação à Carolina e outras escritoras afrodescendentes e a dificuldade de organização dos seus textos, cuja matéria-prima era resíduo, agora também rumo à imortalidade.

Meu sonho é escrever... reúne textos inéditos e outros já publicadosComo foi feita a composição do livro?

Ele reúne textos inéditos de Carolina e alguns que foram publicados em Onde estaes felicidade?, como o conto homônimo ao livro e a crônica “Na favela”Também alguns textos já apareceram bastante solapados em lugares esporádicos, por exemplo, em Diário de Bitita (1986), intitulado por Carolina "Um Brasil para brasileiros" e que originalmente é um romance de formação no estilo de Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. Há ainda o texto publicado em Cinderela Negra (1994) como “Minha vida”, mas em uma das versões por mim selecionada como “Prólogo”.

Um dos aspectos que chama atenção desta edição é o trabalho de revisão, elogiado por outros pesquisadores que se dedicam à obra de Carolina. A escolha por revisar os textos, inclusive fazendo correções ortográficas, seria para atender a uma vontade da autora?

Diferente do primeiro projeto, Onde estaes felicidade?, onde optou-se por não modificar a escrita de Carolina, nesse segundo repensamos esta postura, uma que podemos nos questionar: Será que Carolina gostaria que seus textos fossem revisados? Em uma longa conversa com a filha e herdeira do espólio literário, Vera Eunice, ela disse para mim e para o editor Marciano Ventura que provavelmente sim, porque revisava os textos da mãe a pedido de Carolina. Então nesta edição realizada pela Ciclo Contínuo Editorial, resolvemos fazer a revisão. Eu solicitei a ajuda de uma revisora, tendo em vista que, na minha condição de leitora assídua dos manuscritos de Carolina, não me senti realmente capaz e a vontade de intervir no processo criativo da escritora a quem considero criativíssima em suas formas inusitadas, e digamos assim, adaptativas de criar sua escrita em meios a tantas adversidades. Assim Fernanda de Souza, que vem fazendo um trabalho belíssimo, de comparação de Carolina e Lima Barreto na Universidade de São Paulo (USP), foi escolhida pelo editor para fazer o trabalho de revisão.

Alguns autores tentam reproduzir uma fala local para dar autenticidade ao real. Geovani Martins faz isso em O sol na cabeça (Companhia das Letras, 2018), reproduz a oralidade, o que interfere em questões de acentuação, concordância verbal e nominal, e grafia. Em que medida as correções tocam a dicção da autora? A correção é também um gesto político em defesa da legitimidade da obra de Carolina?

Essa concepção de que a correção do texto seja um gesto político parte principalmente do editor, enquanto um editor negro, que opta por essa escolha, acredita e defende a legitimação e consolidação da obra de Carolina Maria de Jesus para além do aspecto testemunhal explorado comumente. No meu caso, como leitora dos manuscritos, acredito que (a correção) interfira nas questões de dicção e estilo próprios do processo da escritora, mas concordo com as questões que envolvem a necessidade da adaptação gramatical ao mercado consumidor. A esse respeito tivemos um grande debate, porque no meu entendimento não mudaria ou se mudasse colocaria imagens de alguns manuscritos para mostrar ao leitor a dicção original. No final acabamos optando pela correção, porque consideramos que Carolina também abrange um público de leitores em formação.

Sabe-se que muitos textos de Carolina já eram publicados e estudados no exterior. Como aconteceu esse trânsito de textos para fora? Isso explica parcialmente o “atraso” da academia brasileira em relação aos seus escritos?

O que explica o certo “atraso” e o atual interesse em Carolina é muito mais um racismo institucional e social, resultante de um projeto colonizador, bem como a imposição de um tipo de leitura de mundo, de escrita, de verdades e de formas de beleza, do que uma questão de desvendamento ou de descoberta. Afinal nos anos de 1960 ela fez um grande sucesso e depois sucumbiu não apenas com a chegada da Ditadura Militar, mas também porque não foi devidamente reconhecida como a grande escritora que é, para além de uma autora de diários, de testemunhos de quem vivia na favela. A deslegitimação de sua condição de escritora está totalmente atrelada ao tipo de descaso que vem sendo combatido cada vez mais com o advento de novas Carolinas na cena literária hoje.

E como justificar o crescente interesse neste momento então?

Uma série de contextos, acumulações e demandas se impuseram para que a obra de Carolina ganhasse visibilidade e espero que toda sua obra seja publicada e lida. As pesquisas, os trabalhos como o meu e de outras pesquisadoras sérias como de Elzira Perpétua, Fernanda Miranda, ou pesquisadores como Mário Augusto Medeiros, trazem visibilidade a uma Carolina fundamental para se compreender as venalidades que acompanharam sua exclusão no universo da literatura brasileira. E, não podemos perder de vista que ainda em nossos dias, as escritoras negras precisam lutar por esses espaços. Tomemos como exemplo a FLIP (Feira Literária de Paraty) de 2018, onde, para mim, a maior escritora brasileira, Conceição Evaristo, não esteve diante do telão principal da feira. Tanto a escritora que está concorrendo à cadeira da ABL, quanto as demais escritoras negras que falaram na pequena sala da “Casa de insubmissas mulheres negras”, coordenada por Dayse Sacramento, tiveram tanta audiência que dezenas de pessoas assíduas por escutá-las e conhecê-las pessoalmente se espremeram para caber no local. Como nos mostra Diamila Ribeiro, “o lugar de fala”, a fala da mulher negra está sendo colocado o tempo todo em questão e se faz nas possibilidades de subversão de espaços que excluem por meio de supostas inclusões travestidas de diversidade. Assim, podemos ver que todo esse movimento favorece a releitura de uma outra Carolina saindo do aspecto biográfico que pode ser estigmatizador e mais uma vez supra valorizar a figura literária de Carolina como um excêntrico.

Heloísa Buarque de Holanda (professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do projeto Universidade das Quebradas) se refere ao seu trabalho como de “restauração” da obra de Carolina. O que é mais difícil nesse trabalho?

A pesquisa já tem cerca de 20 anos, por isso eu digo que Carolina é minha companheira de longa data, sendo sempre uma surpresa a cada vez que tenho o privilégio e a honra de me aproximar do espólio literário dela. Sempre penso, com aperto no coração, como seria ver todos seus romances publicados porque parece um sonho muito distante, seja pela forma como estão alocados os manuscritos, seja pelas realidades editoriais vividas pelos escritores negros muitas vezes mais aclamados como figura do que pela obra lida de fato. Eu percebo dificuldade, primeiramente, por não haver um arquivo onde toda a obra possa ser consultada. Quer dizer, um Fundo Carolina Maria de Jesus. Outra questão se refere à condição dos manuscritos, sobretudo, aqueles que estão localizados na cidade de Sacramento. A materialidade, principalmente dos seus primeiros cadernos, é bem complicada, porque são cadernos que já foram retirados das lixeiras onde Carolina aproveitava os espaços em branco para escrever, reutilizando, inclusive, cadernos de notas de fábricas, restos de lápis e canetas descartados. O manuseio em si é bastante dificultoso, além da fragmentação dos escritos dispersos. Às vezes a gente tem o começo de um romance em um caderno e a continuação em outros. Consegui montar algumas peças desse quebra-cabeça aos poucos, porque tive oportunidade de estudar a obra de Carolina há muito tempo. Quando cheguei mais ou menos aos 15 anos de pesquisa, foi que percebi o que era de fato o projeto literário, o processo criativo de Carolina, e que depois terminei denominando de “poética de resíduos”, porque ele foi construído de forma dispersa, de restos de discursos literários e não literários, no lugar da emergência, da fome de escrita, da sabedoria, das ruínas de sua ancestralidade, como o material físico, mental, e emocional da hora. Tudo captado por uma artista ávida por criação e consciente da importância da palavra enquanto memória, mas principalmente, enquanto forma de modelar o mundo a seu modo.

O filósofo francês Jacques Rancierè (A partilha do sensível) defende que não deve haver oposição entre estética e ética no ajuizamento de uma obra de arte, uma vez que essas duas dimensões se entrelaçam internamente. Como você avalia a mudança de postura da crítica brasileira em relação à obra de Carolina quanto à forma e ao conteúdo dos seus textos?

O modo como os primeiros textos foram recortados mostraram mais o aspecto político do que literário, embora num primeiro momento eu já tenha percebido que uma coisa não está dissociada da outra. Afinal, no lugar da escrita dessa mulher negra, o que fala é todo um resultado da experiência de um corpo negro que acumula toda uma condição de conteúdo de expressão e vida, que necessariamente passa por questões éticas, estéticas e políticas que envolvem uma coletividade. O ser negro no Brasil ou talvez o ser negro em condição diaspórica se faz sempre nesse invólucro de um com o outro porque é no espaço da solidariedade que os negros tentam re-existir ao racismo que os exclui de tudo. Todos já sabem que as passagens mais literárias que poderiam legitimar o discurso de Carolina de Jesus, enquanto escritora de literatura foram solapadas no processo de edição preocupada em formatar uma persona excepcional com lenço na cabeça (o que não desqualifica a obra de Carolina exceto quando ela foi obrigada a pousar como tal para fotografias) pobre, negra que escrevia diários revelando os bastidores da vida favelada. Se há alguma mudança, acontece pelo fato de que agora começam a emergir os textos de caráter mais literário, a exemplo dos últimos livros que felizmente tive a oportunidade de organizar Onde estaes felicidade? (2014) e Meu sonho é escrever (2018), ambos resultantes de um esforço coletivo em busca da Carolina escritora. O esforço desses últimos cinco anos, de visibilidade dessa outra Carolina, tem modificado a avaliação crítica e mudará mais quando seus romances e peças teatrais vierem a público. Sem falar das mudanças estruturais nas Universidades hoje, com a entrada de alunos negros que reivindicam autores com os quais eles possam se reconhecer.

O que o leitor brasileiro ainda pode esperar de Carolina Maria de Jesus? Ainda há muito material inédito esperando para ser publicado?

Espero que os leitores tenham acesso aos sete romances inéditos, às cinco peças teatrais, aos poemas que tratam da negritude e que não apareceram na Antologia poética publicada em 1996, além de outras narrativas, que são caracterizadas pelo hibridismo e reinvenções de si em sua escrita. Neles, os leitores e as leitoras poderão encontrar uma escritora que conseguiu fazer da escassez criação de enfrentamento aos modelos estabelecidos pela sociedade acadêmica e letrada, confeccionou a potência enraizada nela e certamente contribui para construção de novos afetos e maneiras de lidar com as mais variadas esferas de manifestação humana. Carolina Maria de Jesus é sem dúvida um clássico para a vida.

*Entrevista publicada no jornal Diário do Nordeste de 08 de agosto de 2018. Link para a página completa:


Raffaella Fernandez é doutora em Teoria e História da Literatura pela Unicamp e atualmente é pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ e do Programa Avançado de Cultura Contemporânea. É autora de A poética dos resíduos de Carolina Maria de Jesus, pela Edições Carolina.

1 de julho de 2018

#ConceiçãoEvaristoNaABL: para acordar a Casa Grande dos seus sonhos injustos

Calila das Mercês


Imagem: Pablo Saborido/CLAUDIA

Desde que a escritora mineira e doutora em Literatura (UFF), Conceição Evaristo (1940), mencionou a sua candidatura à cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras (ABL), tem-se formado campanhas nas redes sociais por coletivos e pessoas civis a fim de apoiar a entrada da escritora na ABL. O projeto Diálogo Insubmissos de Mulheres Negras foi um dos primeiros a lançar um abaixo-assinado virtual e já conta com mais de 20 mil assinaturas de pessoas de diferentes pontos do Brasil. 
Recentemente, ela, que conquistou o Jabuti com Olhos d’água (2015), foi tema da exposição Ocupação Conceição Evaristo do Itaú Cultural, em São Paulo, recebeu prêmio em reconhecimento ao conjunto da obra pelo governo do Estado de Minas Gerais, e também os prêmios Faz a diferença do Globo, Claudia 2017, Bravo 2017 e o SIM pela Igualdade Racial. Este ano, depois de ter sido homenageada na Festa Literária de Porto Alegre (Festipoa) em maio, Conceição Evaristo também será a escritora homenageada na Festa Literária em Cachoeira (FLICA), em outubro, na Bahia, isso, certamente, dá-se pelo que ela e o conjunto de sua obra representa ao país e pela busca da sociedade em torno dos temas os quais ela trata com ternura e responsabilidade em sua arte literária.
Conceição Evaristo, escritora de poesias, contos e romances, é um dos nomes mais aclamados e celebrados na literatura brasileira contemporânea. A presença dela em eventos literários e culturais em todo o país tem lotado os espaços, como ocorreu na Festa Literária de Paraty (FLIP) do ano passado, e, recentemente, no LER Salão Carioca do Livro no Rio de Janeiro, no Festipoa em Porto Alegre e no Teatro Castro Alves em Salvador, no evento Mulher com a Palavra, onde esteve junto com a cantora Karol Conka.
Autora de Becos da memória (2006), livro publicado após 20 anos de escrito, Conceição Evaristo é considerada uma das porta-vozes de um grupo, tido como minoritário, mas em maioria quantitativa no país, que é a comunidade negro-brasileira. Quando uma parcela da sociedade decide, de forma espontânea, defender por uma representatividade, o que envolve alguém que reflete sobre temas como racismo, fluxos migratórios, protagonismo de mulheres negras, recorte de classe, afeto, entre outros, não tem como passar despercebido.
A campanha a favor da Conceição Evaristo na ABL é um reconhecimento do público leitor a escritora que presa em suas obras por uma pluralidade de personagens negros que se autoagenciam e por marcar, por meio de escrevivência, olhares com outra perspectiva da história que nos foi e ainda é negada. Já é sabido e comprovado que personagens negros, quando presentes, na maioria das narrativas de outros escritores (alguns até considerados canônicos), são emudecidos, estereotipados e/ou figurantes. Assim, como já sabemos também do perigo de uma história única em um país que passou pelos processos de colonização e escravidão, dos quais ainda temos cicatrizes expostas. Basta vermos a manutenção do discurso da democracia racial, a conservação embranquecida dos ambientes de legitimação e liderança, a naturalização da subalternidade para as pessoas negras, como se tudo que fizéssemos, incluindo as nossas produções artísticas fossem sempre menos dignas de notas.
Conceição Evaristo, além da projeção internacional, por ter tido obras traduzidas para outros idiomas, é uma das autoras bastante estudada em diversas universidades do país. Seu livro Olhos d’água também é tema de documentário dirigido por Pepe Medina.
Ler que imortais da ABL não estão gostando da mobilização em nome da Conceição Evaristo e que eles não atuam sob “pressão”, faz com que reflitamos o quanto uma gama da sociedade brasileira ainda não parou para pensar sobre os nossos problemas estruturais e sistêmicos. Faz pensarmos também nas variadas mobilizações espontâneas que têm incomodado os menos progressistas a respeito dos caminhos que o país tem seguido.
Racismo está aí reverberando entre as sutilezas e as palavras escolhidas para identificar cada pessoa na sociedade. Às que sempre detiveram em seus corpos a ideia de indivíduo, mesmo com equívocos irreparáveis, são talhadas frases com cuidado e acolhimento com seus legados. Para outras, cujos corpos são os que tombam em maioria, qualquer movimento que reivindique ou que fuja do tão valorizado “controle” é visto como ousadia, audácia, incômodo e pressão.
Quando pessoas de uma sociedade de maioria negra requerem por meio de abaixo-assinados que uma artista literária negra integre a um grupo de intelectuais – que tem como intuito representar e resguardar a cultura, a memória e a literatura nacional, de acordo com o estatuto de 1897, cujo patrono fundador foi o escritor negro-brasileiro Machado de Assis – o desejo destas pessoas, faz refletirmos o quanto é importante questionarmos as tantas visões que se normatizaram no Brasil sem a opinião popular e que parecem ser incontestáveis.
Para nós, negros em diáspora, a luta é diária, não somente por subsistência, mas por dignidade nos espaços que desejamos e precisamos estar. Sobreviver as artimanhas do patriarcado é resistência. Conceição Evaristo uma vez falou que “a escrevivência não é para adormecer os da Casa Grande e sim para acordá-los dos seus sonhos injustos”. Já passa da hora deles acordarem.  

3 de junho de 2018

Autobiografias trans em contexto de ditadura: a coragem de dizer

Leocádia Aparecida Chaves

Imagem: Thor Lindeneg



Peter Pál Pelbart em Vida Capital : Ensaios sobre biopolítica (2011), ao discutir sobre as agonias da contemporaneidade, nos lembra de que não há um espaço privilegiado para resistência. De acordo com as reflexões do filósofo, em todo e qualquer lugar pode-se provocar reviravoltas, disparar algo que atravesse a totalidade; dessa perspectiva, afirma: não é preciso genialidade no gesto de resistir!
Pois bem, tomando essas concepções como ponto de partida, trago para este ensaio o convite feito por Glória Anzaldúa – mulher lésbica, intelectual e ativista – às mulheres escritoras do terceiro mundo (2000): escrevam! Ao fazê-lo, enuncia em que medida concebe a escrita do subalternizado como ato de resistência:

Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para me convencer de que tenho valor e o que tenho para dizer não é um monte de merda (ANZALDÙA, 2000, p. 232)

Destaco que essas cartas, datadas dos anos de 1980, para além de nos convidarem a pensar sobre a potência política do gesto de escrever a si mesmo, revelam o fortalecimento de um feminismo Outro – o não branco –, elemento fundante para a implosão da concepção universalizante do gênero feminino bem como para as discussões sobre identidade de gênero e sexualidade expandidos pela teoria queer a partir dos anos de 1990, conforme análise de Sara Salih em Judith Butler e a teoria queer (2013).
Dessa forma, não é gratuito que tenhamos na década de 1980, aqui no Brasil, um marco histórico no campo literário: a publicação das primeiras autobiografias marcadas pelo trânsito identitário quanto ao gênero, e, por isso, territorializadas como “dissidentes”, pois rasuradoras do padrão normatizador para a vivência do masculino e feminino. Estamos nos referindo às obras: A queda para o alto (1982) de Anderson Herzer, publicada pela Editora Vozes; Erro de Pessoa: João ou Joana? de João W. Nery (1984), publicada pela Record e Meu corpo, minha prisão: Autobiografia de um transexual (1985) de Loris Ádreon, pela Marco Zero, que revelam tanto o trânsito identitário do masculino para o feminino como a obra de Loris Ádreon, quanto o do feminino para o masculino, como as obras de Anderson Herzer e João W. Nery.
Também não é gratuito que essas obras tenham sido publicadas pelas editoras citadas, pois como analisa Flamorion Maués no artigo Livros, Editoras e oposição à Ditadura (2014), essas entre outras, se constituíram, em fins da década de 1970, em núcleos de resistência à ditadura civil militar brasileira (1964-1985), fazendo de seus projetos editoriais front literário para uma
(...) literatura política: obras de parlamentares de oposição, depoimentos de exilados e ex-presos políticos, livros-reportagem, memórias, romances políticos, romances-reportagem, livros de denúncias contra o governo, clássicos do pensamento socialista. (MAUÉS, 2014, p. 91)

 Nesse sentido é que situo a publicação dessas autobiografias, pois ainda que não possam ser consideradas como “literatura política” no estrito senso, acredito que seja inegável o gesto de combatividade política tanto por parte de seus escritores quanto por parte de seus publicadores, pois em suas respectivas agências rompem com um silenciamento histórico imposto aos corpos “dissidentes”.  
Entretanto, conforme Amara Moira analisa em De quando elas e eles contam suas histórias: Uma breve genealogia das autobiografias trans mostra a potência dessas obras (2018), embora esses projetos editoriais tenham sido concebidos sob o estigma cissexista e patologizante quanto essas experiências identitárias e dessa forma serem lidos como transfóbicos,  indago aqui os paradoxos dessa empreitada no tempo em que “nasceram”.
Nesse contexto de reflexão, importa lembrar, por exemplo, que somente em 01/03/2018 o Supremo Tribunal Federal em julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275 reconhece juridicamente que a auto-definição quanto ao gênero é um direito inalienável circunscrito à autonomia de cada uma/um de nós independente de laudo médico. Portanto, tornar públicas, na década de 1980, narrativas que atravessam o discurso de totalidade quanto ao “ser homem” e “ser mulher” numa sociedade sob o domínio militar, no meu entendimento, também pode ser lido como um gesto de resistência.
Quanto a esse paradoxo, saliento, em especial, a “subversividade” da feminista e ativista Rose Marie Muraro, em responder pela publicação de duas dessas três obras: a de Herzer e a de Loris; quanto à última, já nos derradeiros suspiros do regime militar. Destaco que a atuação de Muraro, na Vozes, é reconhecida como fundamental na resistência ao regime; registra-se, inclusive, que  mesmo “pós-ditadura”, em 1986, foi “expulsa” da editora pelo Vaticano em função da publicação de sua obra Por uma Erótica Cristã, conforme entrevista a Ainà Vietro.
Sob essa perspectiva, destaco que a obra de Anderson Herzer, para além de dizer sobre o seu trânsito identitário, denunciará o regime de exceção que o cerca por meio das violências que sofreu nos últimos três anos de sua vida na FEBEM, um dos panópticos do regime militar. Salienta-se, sobretudo, que as torturas inflingidas ao seu corpo lido como dissidente eram mais severas do que as efetivadas sobre os corpos reconhecidos como “normais”:
O diretor da unidade (...) não me aceitava tal qual eu era, ele queria que eu fosse como as outras meninas, que usasse roupas diferentes (...) queria, de qualquer modo, que eu raspasse as pernas e usasse vestido, isso sem contar as humilhações que ele me fazia passar perante todas, com palavras de baixo calão, como por exemplo,  (...) – Machão sem saco, machão sou eu que tenho duas bolas. (HERZER,1982, p. 72)

Herzer era reconhecido na instituição como “ameaçador” tanto por “borrar” os padrões identitários quanto ao seu gênero – pois registrado como Sandra, reconhecia-se como Anderson, quanto por escrever poemas. Sobre eles cito aqui um trecho do Esquecido poeta morto: E meu nome negro será terra ressecada / como a colheita que morreu sem dar o fruto / e na distância do azul vou ser imagem / e embaçado pelas nuvens, serei luto (...) (HERZER,1982, p. 152). Quanto a esse ato de resistência – escrever suas dores e o meio que o violenta – denuncia em seu relato o confisco de seus escritos pelo Diretor da Unidade da FEBEM de Santa Maria, Sr. Humberto Marini Neto, que  justifica a “recolha” do material tendo em vista um projeto de publicação em andamento.
Sobre essa engenharia de tortura estatal, Ana Flauzina – intelectual e mulher negra ativista, em entrevista ao jornal online El País em 18/03/2018, nos lembra que foi estruturalmente arquitetada e implementada no século XVI pelo projeto colonizatório escravagista dito “modernizador”. Porém, também salienta que ainda na atualidade o sistema capitalista, sexista, racista, cisheteronormativo se sustenta nessa mesma engrenagem de extermínio de minorias identitárias. Nesse contexto, é fundamental destacar o aumento dos registros quanto aos crimes de ódio em nosso país, em especial, os de transfobia,  que em geral, conforme demonstra Felipe Bruno Martins Fernandes em Assassinatos de travestis e “pais de santo” no Brasil: homofobia, transfobia e intolerância religiosa (2014), são cometidos com requintes de crueldade – pioneiramente denunciados por Herzer.
A queda para o alto, portanto, é um marco quanto a enunciação de sujeitos cujas identidades ao fim e ao cabo colocam em xeque um modelo hegemônico de identidade e desse lócus fraturado (LUGONES, 2014) acabam por garantir espaço para rebeldias múltiplas, inclusive a da memória: Um homem jamais morre, enquanto sua existência for recordada (HERZER, 1982, p. 152). Destaca-se que Herzer morre poucos meses antes da publicação de seu livro como relata Eduardo Matarazzo Suplicy (HERZER, 1982, p. 15-16), que apresenta dúvidas quanto a causa de sua morte: suicídio ou provocado por terceiros?  Nesse sentido, a publicação de sua obra, por decisão de Muraro, intuo, parece se vincular, em alguma medida, ao projeto Brasil: Nunca mais! (1985), viabilizado pela mesma Editora, que de acordo com Janaína de Almeida Teles em Ditadura e repressão: locais de recordação e memória social na cidade de São Paulo (2015) teve como norte um conjunto de operações de memória sobre a ditadura no período de redemocratização.
Já a obra Meu corpo, minha prisão: Autobiografia de um transexual  publicada três anos após a de Herzer, permitirá ao leitor uma outra aproximação com a experiência de trânsito identitário, embora  ambas as narrativas se contextualizem no mesmo período – meados dos anos de 1960 e década de 1970. Loris, diferentemente de Herzer, branca, oriunda de uma família nuclearmente estruturada e com recursos materiais, se circunscreve num outro lugar de fala; essa localização social lhe permitirá, por exemplo, mudar-se para Manaus e lá completar os seus estudos bem como acessar leituras e informações sobre “casos como o seu” na biblioteca de um médico da família. Por meio de seu relato, portanto, seremos confrontados, com uma voz que ao buscar uma “verdade sobre si” se entenderá “nascida em um corpo errado”, perspectiva que flerta, principalmente, com o título da primeira autobiografia de João W. Nery em Erro de Pessoa: João ou Joana?, ressignificada  em sua segunda obra Viagem solitária : memórias de um transexual trinta anos depois (2011), aspecto discutido por Moira (2018).
No entanto, ainda que a escritora tivesse outra realidade familiar e outros acessos ao mundo, sua existência na “diferença”, fatalmente, foi marcada por violências e torturas desde a mais tenra infância. Quanto a sua vivência escolar, em fins da década de 1970, em Manaus, relata: 
Quando se iniciaram as aulas no meu último ano de ginásio, foi que as coisas se agravaram a um ponto insuportável para mim. (...) – “Veja, ele não tem pelos nas pernas! Olhe, as coxinhas dele como são redondas e  macias, são como as de meninas! Escutem a fala dele! É fala de mulher! O bumbum dele não é de homem nem aqui, nem na China!” (...) Uma vez, lembro-me fui reclamar ao professor de português sobre um aluno que se sentava atrás se mim, pois cada vez que eu levantava para apanhar alguma coisa, passava a mão em meu traseiro. O professor olhou para a classe, depois para mim por sobre os óculos e disse: “ É simples a solução para esse caso: casa-se com ele”. (ÁDREON, 1985, p. 59)

Destacamos, inclusive, que se por um lado, a sua condição econômica lhe permitiu finalizar seus estudos e, posteriormente, com a herança da família, realizar a cirurgia de confirmação de gênero (LANZ,2017, p. 403), também permitiu que seus pais lhe impusessem um tratamento hormonal na adolescência visando acelerar o desenvolvimento de evidências reconhecidas como masculinizantes em seu corpo. “Recurso” médico que operou como tortura sobre Loris, catalisando um quadro de sofrimento mental agudo levando-a a uma tentativa de suicídio na juventude:
Impelido pela dor e pelo ódio que fervia em meu coração, soltei um agudo grito, um tolo desabafo perante os demais, visto que não tinha outra forma de extravasar minha revolta.  Prof. Normand apertou fortemente meu braço dizendo: - “Calma, calma menino, o mundo não vai se acabar por causa de uma injeçãozinha dessas, na vida existem coisas piores!” (ÁDREON, 1985, p. 54)
Destaca-se que a narrativa de Loris nos aproximará, fundamentalmente, do espaço doméstico e dessa perspectiva permitir ao leitor vislumbrar como o espaço pequeno-burguês da família, socialmente reconhecido como de aconchego e confiança, também pode ser lido como panóptico, pois espaço de vigilância e tortura para os corpos dissidentes como o seu o que ainda hoje localizamos em nossa sociedade.
Essas obras, portanto, como que “aceitando” o convite de Alzandúa (2000),  dizem suas dores e angústias com língua de fogo e por esse meio desnudam - sob regime militar - a banalização do mal em que viveram, desde o íntimo do lar ao cotidiano das instituições estatais. Escrituras-prova  que o que têm para dizer não é um monte de merda e dessa forma se configurarem como espaço de resistência tanto pela memória do passado, quanto por nos permitir desnudar o nosso presente -  tempo em que dezenas de pessoas, diariamente, ainda são exterminadas por serem “diferentes”: velhas-novas ditaduras. 





4 de maio de 2018

A jornada em Azul Corvo


Marcella de Melo Faria

Imagem: Ismeta Gruenwald


Adriana Lisboa é autora de romances e livros infanto-juvenis, além de poeta e contista. Nasceu no Rio de Janeiro, morou também na França e na Nova Zelândia e atualmente vive nos Estados Unidos. Ela é mestra em literatura brasileira e doutora em literatura comparada pela UERJ, além de ter sido pesquisadora visitante nas Universidades de Kyoto, do Texas e do Novo México. Seus livros foram publicados em catorze países e traduzidos para diversos idiomas, tais como: inglês, francês, espanhol, alemão e árabe. Seu reconhecimento chegou a ser tão grande que recebeu diversos prêmios, como por exemplo, o Prêmio José Saramago, em Portugal, pelo romance Sinfonia em branco; o Prêmio Moinho Santista, no Brasil, pelo conjunto de seus romances; e o prêmio de autor revelação da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil por Língua de trapos.
Azul Corvo, publicado em 2010, é um de seus romances mais conhecidos. Esta obra retrata a trajetória de Vanja, uma menina de 13 anos que se muda para os Estados Unidos para morar com Fernando – ex-guerrilheiro e ex-marido de sua recente falecida mãe –, que promete ajudar Vanja a encontrar seu pai americano que nunca conhecera. A melancolia é o que une os dois personagens, que acabam criando laços afetivos capazes de durar uma vida inteira e os ajudar nos seus respectivos processos de amadurecimento diante dos tristes acontecimentos que suas vidas lhes proporcionaram até então. Ao mesclar mobilidades culturais à brevidade de relacionamentos afetivos e da própria vida, Adriana Lisboa nos oferece reflexões acerca da existência humana.
Genericamente, a figura do corvo está associada a maus presságios devido à sua cor negra. Nesse sentido, Vanja pode ser vista como uma ave que voa para lugares distintos e essa jornada é também uma viagem interna na qual a personagem conhece a si mesma. Ela acaba se tornando uma ave azul e não negra como poderia se esperar de uma garota estrangeira, órfã, sem muitas condições, vivendo nos Estados Unidos. No seu processo de amadurecimento e de encontro à felicidade ela adquire coloração.
Pode-se dizer que Azul Corvo retrata uma história de amizades que não escolhem nacionalidade, sexo, idioma ou idade. A migração é um tema recorrente na obra, visto que o desejo de mudança é um traço comum entre as personagens. A escritora também explora fatos históricos que ocorreram no Brasil, como a Guerrilha do Araguaia. Ademais, a obra versa sobre a diáspora atual acentuando-se questões importantes e profundas sobre a experiência humana diante de uma realidade cultural heterogênea e mesclada. O deslocamento das personagens pode ser visto como uma busca de identidade, proporcionando-lhes tanto o autoconhecimento como o conhecimento do outro. Ao buscar seu pai biológico Vanja conhece outras pessoas que contribuem para a construção de sua própria identidade e para o seu processo de amadurecimento.
Ao fazer uso de uma linguagem simples, porém poética, Adriana Lisboa narra uma belíssima história que oscila entre presente e flashbacks. Essa variação no tempo permite uma reflexão entre o passado e o presente, que nos leva a ponderar como as nossas escolhas constroem nosso futuro.
Por fim, é importante realçar que Azul Corvo é também uma história sobre nós que estamos imersos numa pluralidade de culturas e que muitas vezes ignoramos nossas diferenças e nos distanciamos dos valores humanos. Assim sendo, as palavras de Heitor Ferraz, colocadas na epígrafe da obra de Lisboa, merecem destaque: “Somos todos estrangeiros. Nesta cidade. Neste corpo que acorda”. Transitar, conhecer pessoas, conhecer-se. Existir é isso!