28 de julho de 2019

Por amor a elas, por amor ao mundo


Virgínia Maria Vasconcelos Leal



Under the Wave off Kanagawa (Kanagawa oki nami ura), de Katsushika Hokusai


A história da literatura com temática lésbica no Brasil é também a história da lesbofobia. Se pensarmos que a lesbofobia adiciona dois preconceitos — às mulheres e aos homossexuais em geral —, a representação desse grupo social é bem minorizada. É fato que a presença de personagens e escritoras lésbicas no Brasil está crescendo, haja vista os próprios movimentos pelos direitos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros. Não à toa há tanta reação na onda conservadora que assola o Brasil. Se a escritora Cassandra Rios, que produziu romances bastante populares desde os anos 40 até os anos 90 do século passado, era figura isolada no cenário brasileiro, agora, mais e mais estudos sobre ela começam a aparecer, assim como outras vozes de temática e/ou autoria lésbica também se consolidam.
            É claro que a definição do que seria uma “lésbica” perpassa, inevitavelmente, pela complexidade da identidade feminina ou de gênero. As discussões nos estudos feministas e do gênero levaram a tendências várias que podem ser resumidas, em um primeiro momento, e para efeitos explanatórios, entre noções essencialistas e não essencialistas da “identidade” ou da “mulher”, ou entre feminismos da “diferença” e da “igualdade”. Lembremos que as mulheres lésbicas e negras foram as primeiras a questionar a ideia de um feminismo monolítico, abrindo mais ainda o leque de questionamentos. Uma das possibilidades para se distanciar do essencialismo identitário seria pensar mais em localizações e relações entre grupos. Poder-se-ia dizer que as “lésbicas” não constituem um grupo uniforme, em princípio, não tem uma “natureza” em comum, mas formam um grupo relacional e flexível, como defende Iris Young, em outro trabalho, denominado “Gênero como serialidade” (YOUNG, 2000). Para ela, são as relações — seja entre grupos, seja entre indivíduos — que constituem os grupos sociais. Pensar, então, uma construção comum de uma representação de gênero para, por exemplo, um grupo de escritoras e/ou leitoras lésbicas seria pensá-las como um grupo, considerando suas trajetórias como indivíduos que, por conseguinte, geram obras também individualizadas. Para Young, as estruturas de gênero não definem atributos específicos para as mulheres, mas os fatos sociais e materiais com os quais cada indivíduo deve lidar. Cada pessoa, subjetiva e empiricamente, relaciona-se com as estruturas de gênero de forma variável (YOUNG, 1997, p. 30).  Assim, “nenhuma  identidade de uma mulher individual, então, irá escapar das marcas de gênero, mas como o gênero caracteriza a sua vida é próprio dela” (YOUNG, 1997, p. 33).
            Experiências literárias brasileiras e contemporâneas de autoria feminina têm questionado, de forma distinta, a matriz de inteligibilidade de gênero, nos termos de Judith Butler, que trabalha, tradicionalmente, com ordens binárias, sendo uma das suas marcas o desejo heterossexual. Pode-se citar as obras de Elvira Vigna, Deixei ele lá e vim (2006) e Coisas que os homens não entendem (2002), autora que se destacou com suas personagens em constantes movimentos entre máscaras, identidades e corpos. Ou mesmo Cíntia Moscovich que, em romances como Duas Iguais (1998) e em contos como “Mi Buenos Aires Querido” (2002) e “À memória das coisas afastadas” (2002), tem revisto preconceitos em relações aos papéis tradicionais das identidades de gênero. Escritoras publicadas por editoras centrais e com obras consolidadas também trabalharam a temática lésbica, como Lygia Fagundes Telles, Myriam Campello, Fernanda Young, Stella Florence, Cecília Costa e Heloísa Seixas, em narrativas que mostram, por vezes, a impossibilidade de uma satisfação amorosa. Ou mesmo experiências mais militantes, como todas as obras das Editora Malagueta (já extinta) e da Vira Letra, com propostas de publicar livros de lésbicas. Outra produção relevante vem das escritoras publicadas pela editora GLS, como Ana Paula El-Jaick, Fátima Mesquita e Lúcia Facco. Também no campo da autoria literária feminina negra, Conceição Evaristo traz o conto “Isaltina Campo Belo”, que está em seu livro Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), no qual são discutidas questões de raça, identidade de gênero, sexual, violência, maternidade e amor. Também é importante citar experiências mais recentes e relevantes como o coletivo editorial  Padê  e o portal literatura.lgbt.com. Enfim, quaisquer listas de nomes e projetos nunca seriam definitivos, haja vista tantos trabalhos novos que aparecem a cada dia.
            Para essa discussão, gostaria de destacar Carol Bensimon, com seu romance Todos nós que adorávamos caubóis (2013). Nele, a narradora Cora, em ambientações sucessivas durante uma jornada de carro, discorre sobre sua própria identidade de gênero e sexual. A obra permite analisar diversos posicionamentos identitários de suas personagens principais. Tanto a narradora Cora, quanto a sua amiga/namorada Julia, deslocam-se espacialmente em uma viagem no interior do Brasil, mas não só. Para quem não conhece a narrativa, é importante assinalar que, no romance, as duas jovens empreendem uma viagem de carro pelo interior do Rio Grande do Sul. Nessa viagem, são várias situações de conflitos e asperezas entre elas, entre os padrões heterossexistas e até de autoaceitação das próprias identidades. Se o final, no âmbito cronologicamente linear, acontece com Julia chegando em Paris para visitar Cora, não há certezas que ficarão “seguras” em um final feliz previsível de um filme clichê romântico. Os momentos e as palavras finais do romance não ocorrem em Paris, e sim nas lembranças felizes do namoro juvenil quando Julia ficara assistindo televisão no quarto de Cora:
A TV tinha ficado ligada no mudo, era um filme de bangue-bangue cheios de moscas e barbas por fazer, mas Julia só havia visto os quinze minutos finais. Ela disse que adorava caubóis. Agora Julia estava esticada na minha cama, de maneira que parecia não ter sobrado muito espaço para mim. Tirei a roupa, coloquei uma camiseta velha e tentei me acomodar como pude (grifo meu). O filme ainda estava bem longe de terminar. Fiquei assistindo. Um duelo. Um romance. Um deserto. Aquela menina que dormia ao meu lado. Todos nós adorávamos caubóis. (Bensimon, 2013, p.190)

            Assim como o filme “longe de terminar”, as últimas palavras revelam seu título e a circularidade do processo infinito de aprendizagem e de deslocamentos identitários de duas personagens contemporâneas em viagens e duelos contínuos, mas que, talvez, só estejam simplesmente querendo alguém ao lado, a ocupar o espaço que as deixe minimamente confortáveis, mesmo que em ambientes hostis às suas identidades negociadas.
            Pensemos, então, em subjetividades encarnadas e sexuadas no feminino — uso aqui um termo e discussão de Rosi Braidotti (2018) — que nunca ocuparam historicamente uma posição privilegiada e confortável — e que podem trazer uma “positividade que não significa aceitação cega ou passividade acrítica. Empenhar-se na frente da positividade quer dizer catalisar a construção de contextos nos quais seja possível transformar as paixões e os impulsos negativos no ‘aqui e agora’ das relações concretas”. Subjetividades também encarnadas literariamente, negociando seus desconfortos, ao expressar seus afetos, por exemplo, na “família” (assim no singular), como o fez Natália Borges Polesso que, com seu livro Amora, recebeu o Prêmio Jabuti de 2016. Seus contos são protagonizados por mulheres, com temática homoerótica, em uma diversidade inclusive geracional. Nas narrativas de Amora, esses afetos, femininos desde seu título, são perpassados por diversos olhares. Nelas, as protagonistas vivem seus amores por outras mulheres, não só no âmbito da parceria erótica e/ou amorosa mas também por outras relações tão importantes, como as de amizade, de coleguismo, de família, de vizinhança ou mesmo de fé e religião compartilhadas. Seu livro ganha força quando aparecem representações pouco frequentes na literatura brasileira contemporânea de temática lésbica. Mulheres mais velhas e acostumadas a “não incomodar”, como é o caso do conto “As tias”. A história delas, Tia Alvina e Tia Leci, é contada pela sobrinha que acompanha, de forma solidária, amorosa e curiosa, a relação de sessenta anos dessas mulheres que se conheceram em um convento e resolveram compartilhar a vida. A família de uma delas, que nunca fala abertamente sobre as duas, que torce a “cara” com perguntas diretas, convive com certa tolerância. Esse olhar que acompanha as relações entre mulheres maduras dentro da família também está no conto, cujo título é também a oração de abertura da narrativa: “Vó, a senhora é lésbica?” A pergunta direta do primo, em sua espontaneidade de criança, desencadeia lembranças em Joana, da relação da avó com a sua companheira Carolina, chamada de “tia” pelas crianças da família. Joana, adolescente que se relaciona com Taís, narra:  “Pensei na minha insegurança de contar isso à minha família, pensei em todos os colegas e professores que já sabiam, fechei os olhos e vi a boca da minha vó e a boca da tia Carolina se tocando, apesar de todos os impedimentos. Eu quis saber mais, eu quis saber tudo, mas não consegui perguntar”.  Sim, esse foi o conto cujo trecho foi objeto de questão no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2018 e que “causou” tanta discussão, ataques e apoios à escritora. Só esse trecho não traz toda a sua construção baseada nas rememorações da narradora, nas cenas familiares com a avó contadora de histórias. Ao final, a avó responde sim aos netos. E, de certa forma, fortalece Joana que sabe que tem mais facilidades para viver sua história amorosa que sua avó, por conta das conquistas políticas pela visibilidade das identidades sexuais minoritárias.
Sara Ahmed, em sua obra La politica cultural de las emociones (2015), afirma que “as emoções podem nos ligar às próprias condições da nossa subordinação, uma vez que elas nos mostram como o poder molda a própria superfície dos corpos e dos mundos”. Sara Ahmed discorre que a orientação sexual, seja ela qual for, está associada, é claro, a muitas emoções e articula também a maneira pela qual podemos entrar em diferentes espaços sociais. Há afetos positivos e negativos, custos, prazeres e satisfações associados a esse estar no mundo, vinculados a certas direções que nossa forma de amor e de viver pode assumir. Para ela, “a heteronormatividade funciona como uma forma de conforto público ao permitir que os corpos se estendam a espaços que já adotaram sua forma” (AHMED, 2015, p. 228, tradução minha). Se os sujeitos não normativos ficam sem direção, incomodados, ao enfrentar os “confortos” da heterossexualidade, esses mesmos sujeitos “incomodam” quando, por exemplo, demonstram seus afetos em espaços sociais não permitidos. Logo lhes é pedido que não incomodem. Sara Ahmed chama isso de “fetichismo de sentimento”. Assim como o capitalismo tende a esconder o trabalho de quem nos proporciona conforto, como trabalhadores/as da limpeza, por exemplo, no campo dos sentimentos e laços de intimidade também: para alguém se sentir cômodo, outro deve trabalhar muito, por exemplo, para não mostrar seu afeto, ou, em certos casos, ser o transgressor/a full time. Algo que toma tempo e, muito vezes, é social, psíquica e materialmente impossível para muitas pessoas e grupos, que não têm capital econômico e cultural suficiente para sustentar tal posição, como explica Ahmed. Para ela, a idealização da família faz-se também por meio de narrativas de ameaça e insegurança, ou seja, de modos de vida que vão “incomodar” (incrível como essa questão está atualíssima em relação ao Brasil, a exemplo do recém-criado Ministério da Mulher e da Família (assim no singular) e dos Direitos Humanos). Daí, talvez, se explique tanto desconforto causado por essa e outras narrativas que trazem, simplesmente, uma forma de amar.
Parece que representar relações lésbicas sempre traz, na maioria das vezes, uma sombra de lesbofobia. Então para que continuar a incomodar? Parece adequado trazer as provocações e respostas de Rosi Braidotti (2015). Para que tentar positivar, nesses tempos de intolerância, nosso “fracasso” conjuntural em abrigar identidades diversas? O que isso mesmo significa para nossos futuros sustentáveis, a serem construídos coletivamente e com a esperança ainda, apesar de tantos números e notícias aterradoras de retrocessos?  Para que? Mais uma vez, recorro às palavras de Rosi Braidotti, ao enfatizar que devemos manter as esperanças de mudança e de práticas políticas de resistência, tendo em vista, sempre, nossos interlocutores e interlocutoras mais importantes: os que virão depois de nós.  Sigamos, então, com as palavras dela a respeito de seu projeto de ética afirmadora de futuros sustentáveis: “Por que continuar com este projeto? Por nenhuma razão em particular. Aqui a razão não tem nada a ver. Trata-se de atuar pelo gosto de fazê-lo, para ser dignos de nosso tempo resistindo ao presente, por amor ao mundo” (Braidotti, 2018, p.146).


Referências bibliográficas
AHMED, Sara. La politica cultural de las emociones. Trad. Cecilia Olivares Mansuy. México: Unam/Programa Universitário de Estudios de Género, 2015.
BAIDROTTI, Rosi. Por uma política afirmativa: Itinerarios éticos. Trad. de Juan Carlos Gentile Vitale. Barcelona: Gedisa, 2018.
BENSIMON, Carol. Todos nós adorávamos caubóis. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
POLESSO, Natália Borges. Amora. Porto Alegre: Não Editora, 2015.
YOUNG, Iris Marion.  “O gênero como serialidade: pensar as mulheres como um coletivo social.” Trad. de Laura Fonseca e Marinela Freitas. EX AEQUO (Revista da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres) nº 8, janeiro de 2004. pp.113-139.

20 de julho de 2019

Marilene Felinto, a irmã outsider

Andressa Marques da Silva



Não existe mágica, de Rosana Paulino,  2008.


“Eu me invoco eu brigo
Eu faço e aconteço
Eu boto pra correr
Eu mato a cobra e mostro o pau
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar

“Nego dito”, de Itamar Assumpção



            “Sou do mangue, feita daquela lama que tem cheiro de podridão, mas é fértil” é uma das reflexões feitas pela escritora Marilene Felinto em sua participação[1] na Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP, em 2019. A fala breve, pungente e ovacionada da autora do premiado As mulheres de Tijucopapo, de 1982, versou sobre sua emocionante trajetória, o olhar de uma escritora acerca da literatura, o papel da mídia, da raça e classe como estruturantes das relações sociais no país, além de sua visão acerca da conjuntura política. Destaco entre os tópicos, a reflexão da autora sobre o peso da escrita literária frente à experiência da mulher negra. Na oportunidade, Marilene Felinto nos ofertou uma chave para a compreensão do ethos da escritora negra, que forja a escrita como ferramenta de reflexão e agência sobre o mundo que sempre arquitetou mecanismos para localizá-la no lugar do incompreensível.
            Ter sua experiência considerada demasiado alheia para ser compreendida é uma questão que foi abordada pela escritora caribenha-americana Audre Lorde na coletânea de ensaios Sister outsider: Essays and Speeches, de 1984, que está prestes a ser lançada no Brasil com o título Irmã outsider, pela editora Autêntica. A autora argumenta que ouviu de muitas mulheres engajadas nos estudos de gênero do campo literário que a literatura escrita por mulheres negras vem de experiências “muito diferentes”, o que dificultaria seu ensino por parte das mulheres não-negras. Oras, seria impossível, então, como aponta Audre Lorde, que elas ensinassem Shakespeare, Platão ou Proust. Apesar da crítica, as colocações de Lorde sobre as diferenças nas experiências de mulheres brancas e negras na luta contra o patriarcado não foram elaboradas para distanciá-las, mas sim buscando ampliar as possibilidades de contato e ação entre elas. 
            Na palestra, ao pensar sobre o funcionamento do ato de escrever em sua vida, Marilene Felinto diz que: “Escrever literatura, do meu ponto de vista, só serve, portanto, para o próprio autor do texto tentar entender, elaborar, resolver melhor um fato, uma questão, uma vivência sua de todo insuportável na realidade como ela é” e continua logo adiante:  “Pois, então, é isto. Melhor falar, portanto, de outra coisa que talvez faça mais sentido: é que minha questão também é de classe – para não citar a questão de cor de pele, a que também chamam de raça; para não citar que ambas aqui, no meu caso, no caso da maioria dos brasileiros, não se separam – são estigmas que caminham juntos há séculos”.  Considero que o encontro entre essas experiências de escritora, negra e pobre amalgama o sentimento de outsider descrito por Audre Lorde em seu livro de ensaios, que ao se ver constantemente como a oura, a estrangeira, encontrou e lançou mão da escrita como uma das ferramentas de compreensão e sobre si e o mundo que a oprime para, então, enfrentar medos e compartilhar esperanças.
Na balança de Marilene Felinto o ato de escrever, com seu caráter de cura dos traumas e resolução de questões individuais, teria, naquela palestra, menos relevância que as questões relacionadas à raça e à classe dado nosso contexto social estruturado pelas violências e racismo. Porém, podemos perceber em seu raciocínio, que lidar com a construção de imagens através da linguagem é também erguer formas possíveis para o sentir e o pensar de quem sempre fora considerada a outra, a outsider, nos diferentes campos em que atuou, o que inclui a literatura.  A reflexão de Marilene Felinto sobre a escrita literária pode se aproximar daquela feita por Lorde em relação à experiência social das mulheres negras considerada, por vezes, demasiado alheia. O exercício de alteridade que pode ser experenciado pelo outro da mulher negra, a partir do conhecimento que ela elabora sobre o mundo, pode solapar a pobreza de experiências que nos assola hoje.  Além disso, a recepção desta criação torna impossível a separação entre escrever com o fim exclusivo de resolver questões consideradas internas. O texto pronto é também do outro e a possibilidade de alteridade que a escrita literária promove pode ser a porta de entrada para alargar o horizonte de expectativas entre perspectivas que se desconheciam.
            Além da resistente e bela reflexão feita para a FLIP, que ainda teceu considerações polêmicas acerca da obra do homenageado deste ano na feira, Euclides da Cunha, há novidades em relação às obras de Marilene Felinto em 2019 que precisam ser divulgadas e conhecidas. A autora acaba de lançar novas edições de Obsceno Abandono e As mulheres de Tijucopapo, além dos os inéditos Sinfonia de contos de infância: (para crianças e adultos), Mulheres Negras, Fama e Infâmia: uma crítica ao jornalismo brasileiro, Contos reunidos, Autobiografia de uma escrita de ficção – ou: por que as crianças brincam e os escritores escrevem, todos disponibilizados em e-book e alguns na versão impressa. Destaco a obra Mulheres Negras: carta aberta à um dia amiga Márcia, em que temos a oportunidade de nos reencontrarmos com a voz firme e audível que Marilene Felinto nos ofertou, principalmente, na época em que fora colunista da Folha de S. Paulo, entre 1989 e 2002, e posteriormente da revista Caros Amigos. Neste livro, Marilene faz o exercício de explicar a uma ex-amiga dos tempos de escola, loira e rica, que lhe procurou nas redes sociais, o porquê da impossibilidade de retomarem a amizade nos dias de hoje. Como é perceptível, essa experiência diz respeito ao cotidiano da maioria das pessoas no Brasil de hoje. Além correspondência pessoal que o texto evoca, as ponderações temporais e conjecturais da voz de uma jornalista que nunca se fez de rogada diante dos mecanismos escusos que soterram o país, é uma experiência imperdível para aqueles(as) que se indignam com a bestialidade que corre solta por aí.
            Já em Autobiografia de uma escrita de ficção – ou: por que as crianças brincam e os escritores escrevem (2019), temos a oportunidade de conhecer a dissertação de Mestrado da autora, defendida na PUC – Rio em 2019, mas que já havia sido iniciada e interrompida pela autora nos anos de 1990 quando fora aluna do mestrado do Departamento de Filosofia da USP. Especialmente para pesquisadores(as) da área de literatura, esse livro faz-se especial pela proposta de revisita de uma obra por sua autora. Marilene Felinto busca encontrar no que já escreveu os disparadores, os momentos, as fagulhas que os geraram, o que muitas vezes a leva para um exercício de reescrita, mas com uma voz audível que nos permite reconhecer seu complexo exercício de reencontro.
            Como jornalista, Marilene Felinto teve uma atuação de grande destaque no período em que foi colunista da Folha de S. Paulo e ficou conhecida por ter um olhar ácido aos conflitos engendrados no país, como uma excelente outsider no mundo da comunicação social ávido por pasteurizar os pontos de vista. Lembro-me bem de acompanhar seus textos para a Caros Amigos, em meados dos anos 2000, pois coincidiram com meu ingresso na graduação como estudante das primeiras turmas de cotistas do país. Hoje sei, ao olhar para trás, o quanto as palavras de Marilene ajudaram-me a compreender o desconforto que eu não sabia ainda nomear, mas que sentia no espaço hostil às trajetórias desiguais que era a academia daquele momento. No livro Fama e Infâmia: uma crítica ao jornalismo brasileiro, Felinto reúne alguns desses textos da Caros Amigos a outros publicados na Folha de S. Paulo, além do inédito “Projeto Folha e Projeto Otavio” em que a autora, por ocasião da morte de Otavio Frias, editor chefe da Folha e seu ex-chefe, reflete sobre as sujeiras do jornalismo e seus caminhos escusos.
            O olhar da autora de ficção ao mundo da escrita não-ficcional revela-nos o mal-estar que ela sentiu ao ver-se emaranhada no jogo feito grande que mídia corporativa que segue ditanto as cartas do jogo no país. Marilene Felinto, em outubro de 2002, quando da eleição de Lula, escreveu um texto lúcido e tocante sobre sua vitória. A autora parabenizou não a pessoa, mas a ideia que levou um nordestino pobre, a personificação de todo preconceito das elites arrogantes, ao cargo máximo da república. Em certa altura do texto, premonitoriamente, anuncia Felinto: “há fascistas e neo-fascistas à espreita país afora. Farão de tudo para aterrorizar e destruir”. O olhar agudo de Marilene Felinto compreendeu antecipadamente o cenário que se montava, talvez ela já sentisse de perto os ataques monstruosos que jornalistas sérios, professores, políticos e ativistas hoje são alvos. A ponta de melancolia de Felinto naquele momento efusivo para os corações progressistas, já anunciava a necessidade de organizar o pessimismo para avançar.
            Walter Benjamim no ensaio “Experiência e pobreza” discute o desenvolvimento da técnica que, sobrepondo-se ao homem e à mulher, ofertou-nos uma nova forma de miséria: a pobreza de experiências. A escrita de Marilene Felinto, sobretudo a ficcional, se opõe à complacência paralisante que busca galvanizar pontos de vista levando-nos ao contentamento com o pouco, com o nada, o que para Benjamin, é uma espécie de barbárie. A obra de Felinto é embebida de uma desilusão radical com seu período, mas ao mesmo tempo é completamente comprometida com ele e isso é a chave para que avancemos. Marilene Felinto se rebela contra a pobreza de experiências como uma irmã outsider, sobre a qual refletiu Audre Lorde, num convite ao enfrentamento do medo e da quebra dos silêncios.


Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura – Volume 1. Série Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-119.
FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopapo. São Paulo: Editora 34, 1992.

FELINTO, Marilene. Contos reunidos. [e-book]. São Paulo: Edição da Autora, 2019.
FELINTO, Marilene. Fama e infâmia: bastidores do jornalismo brasileiro. [e-book]. São Paulo: Edição da Autora, 2019.
FELINTO, Marilene. Mulheres negras: carta aberta à um dia amiga Márcia. [e-book]. São Paulo: Edição da Autora, 2019.
FELINTO, Marilene. Autobiografia de uma escrita de ficção: ou: por que as crianças brincam e os escritores escrevem. [e-book]. São Paulo: Edição da Autora, 2019.
LORDE, Audre. “La transformación del silencio em lengaje y acción”. In: LORDE, Audre (org.). La hermana, la extranjera. Madrid: Horas y Horas, 2003.



[1] Vídeo da fala de Marilene Felinto na FLIP 2019: https://marilenefelinto.com.br/flip-2019/ 

13 de julho de 2019


Rastro de rasgo, o feminino como procedimento

Débora Lucas Duarte                              

   Rosana Monnerat (Rio de Janeiro, RJ, 1967). Outras num céu, 1993. Sem título, 1994. Espelho d’água, 1993. Cipó, 1993 e Tecendo, 1993, coleção MAM.[1]




                                                                           Olho muito tempo o corpo de um poema
Até perder de vista o que não seja corpo
E sentir separado dentre os dentes um filete de
Sangue
Nas gengivas
 Ana C. [2]
[...] Tanta coisa desmorona, mas não o que,
em sua queda,
abriria espaço para mais formas de vida
[...] Enquanto pudermos desejar,
seremos a constante posibilidade de uma bomba rente ao estado das coisas.
[...] O que queima, o que enfrenta, o que não cessa de retornar.
O estado aquaso da matéria,
que, multiforme, escapa e avança.
[...] Para que faca eco e tambem eu escute.
Que escorra.
Priscilla Menezes.[3]

O que tem o corpo a ver com a escrita, o que tem a escrita a ver com o sangue, o que o sangue tem que, de si mesmo, poder parir muitos mundos, o que tem de estranho na entranha do humano, que torna estranha sua escrita, que desmonta o corpo de si como um todo. Caráter disruptivo. Corpo, sangue, escrita, saída de si – Sul. Essas inquietações que se querem encadeadas são mote para o texto que se pretende aqui, e para discuti-las dialogaremos com dois textos de Veronica Stigger[4], Sul e Útero do Mundo, ambos publicados em 2016.[5]
O uso de textos de uma mesma autora está implicado no modo como ela, Stigger, pensa o feminino como alegoria de leitura do mundo, e por sua vez, como possibilidade de transformação do mundo. Para isso a autora nos apresenta um retorno às noções vanguardistas de arte e literatura como forma de reivindicação do feminino, e de outro lado a prática da literatura, em um texto que desafia as classificações de gênero textual, bem como da dualidade entre real-ficcional.
No artigo “O útero do Mundo”, escrito como texto do catálogo de mesmo nome, para uma exposição no MAM, em 2016, Veronica Stigger faz um recorte das categorias de útero que ela encontra em três textos de Clarice Lispector, A Paixão segundo G.H. (1964), Água viva (1973) e A hora da estrela (1977). São elas: grito ancestral, montagem humana e vida primária. A partir disso, Stigger lança mão de um conciso e possível retorno aos principais teóricos conhecidos sobre a histeria, como Sigmund Freud, Jean-Martin Charcot, Georges Didi-Huberman.
Nessa tentativa, Stigger aponta para o lado dessas narrativas que serviu como escopo para negativação do corpo da mulher, e daí, retira delas seu caráter potencial de positivação, ou seja, ela nos mostra que todos esses discursos que serviram (e servem) em grande maneira para reiterar um determinismo, hoje podem ser relidos pelo avesso, justamente porque a histeria seria a diferença crucial para a facção da arte e, por conseguinte da própria literatura. O que tem de mais efetivo nessa tese é que pela prática do feminino, nós sempre poderemos retornar e parir novos e outros mundos. Seja pelas narrativas, seja pela obra de arte, seja pela performance etc.
Pode parecer estranho reinvidicar o lugar do feminino como o lugar da poética, da errância, parece mais uma vez um discurso reiterador, e até mesmo biologizante. No entanto, o feminino não está no corpo, ele está colocado como prática, podendo ser encarnado por diferentes corpos. Segundo a autora, Platão expulsa os poetas da República, justamente porque apresentavam efeminidade em demasia, o que lhes afastava da racionalidade.
Ainda dentro desse pensamento, Stigger coloca como exemplo Oswald de Andrade e Antonin Artaud, como dois homens que por sua poética reinvidicaram o lugar do feminino como estrutura necessária para a arte, instaurando o feminino como forma de destituição do procedimento já conhecido, fundando assim a contorção, que hoje chamamos de vanguarda.  Segundo ela: “Como se vê, desde Oswald e Artaud, podemos afirmar que o princípio feminino, na arte, é uma força tão poderosa e transformadora que pouco importa se o artista nasceu homem ou mulher, seja como for, ele se impõe e se expõe” (STIGGER, 2016, P.8).
Esse texto de Stigger nos impele a sair de uma dualidade e propor o feminino como procedimento, retirando disso sua consideração principal, que sempre foi de submissão do corpo da mulher. É fazer disso outra coisa, colocar como procedimento para produzir novas narrativas. É antes considerar a histeria como torção da linguagem, assim como a torção de um corpo tomado pela histeria.
 Segundo Stigger 
Se, como Clarice Lispector afirma em Água viva, “o útero do mundo” se apresenta como uma “ancestral caverna” de onde se pode voltar a nascer, podemos ver a vagina como a figura, por excelência, dessa possibilidade de renascimento, com tudo que ela tem de ambivalente e perturbadora. Porta de entrada para o útero do mundo – mas também porta de saída para o mundo (STIGGER, 2016, P.21).

O feminino é o que não para de deslocar, segundo Alexandre Nodari (2012 apud STIGGER, 2016, p.7) “o feminino e o poético convergem, pois são, respectivamente, o princípio e a prática da errância, da instabilidade, em suma, da diferença e da loucura”.
Quais seriam então os procedimentos para empreender esse corpo na escrita dentro da obra Sul? Stigger coloca em questão a proposição direta do tema, não se trata apenas de um relato sobre o sangue em si, mas da criação de narrativas em que o sangue esteja sempre presente na vida das personagens mulheres e que seja, por rastro e por rasgo, seu potencial criador. O rastro do rasgo é o procedimento do feminino colocado dentro da obra. 
Sul apresenta ao longo de 91 páginas, um conto, uma peça de teatro e dois poemas respectivamente. Ao fazer uma primeira leitura, o que se percebe é que o sangue vai ser um rastro de ligação entre as três narrativas, confirmando que para ser mulher, é necessário que haja sangue, muito sangue.
Na primeira parte do livro, onde temos um conto, a narrativa apresenta uma espécie de ritual de iniciação, ou de sacrifício em que o corpo de uma menina criança será colocado para o desmembramento
Constância sentiu o calor do sol no rosto, fechou os olhos e sorriu mais uma vez. Os quatro cavaleiros, ao som do primeiro disparo de canhão, comprimiram simultaneamente suas esporas contra as costelas dos cavalos que montavam, fazendo-os disparar. Cada um correu para um lado, levando consigo um dos membros de Constância e deixando um rastro vermelho sobre a grama verde (STIGGER, 2016, p. 27).

Já na segunda parte, o sangue aparece como símbolo da loucura, em uma espécie de teatro do absurdo à là Ionesco, onde ambas as personagens têm o mesmo nome, Carol 1 e Carol 2:
Carol 1, que bate o pé no chão em sinal de impaciência, revira os olhos e imita, com caretas mudas, o jeito de falar de Carol 2. Carol 2, que, de costas, não vê o deboche da outra, cheira a mão suja e faz nova cara de nojo. Olha mais uma vez para a maçaneta e passa o dedo sobre ela. Seu dedo também fica tingido de vermelho. Cheira-o e franze o rosto em sinal de desgosto (STIGGER, 2016, p. 31).​

Esse relato da loucura recoloca nessa característica que sempre foi atribuída a mulher, uma forma de desestabilizar a linguagem, não só pelo que a loucura desarticula em si, mas pelo que era difere da linguagem encadeada e do discurso linear.
As duas análises citadas, ainda suscitam outra questão. Como o texto de Veronica Stigger desapropria a especificidade da linguagem de gêneros textuais? Faz isso não só pelo fato de recorrer a três gêneros literários, mas também porque tenta pensar a narrativa não mais como representação da realidade, nem por meio da descrição, nem pelo que chamamos hoje de relato. Em Sul não se quer alçar o status de verdade sobre o real. Mas apontar como uma narrativa pode bordejar um limite desse real, por meio desse corpo, que estamos chamando aqui de dispositivo de leitura do mundo por meio do exercício da inespecificidade. A proposta da narrativa agora seria então a desestabilização da homogeneidade do gênero literário, como modo de procedimento.
A metáfora do sangue de Stigger propõe um diálogo com o conceito de inespecificidade de Florencia Garramuño, quando o exercício de não pertencimento a um único gênero literário, coloca o texto na porosidade da determinação. De acordo com Garramuño, o texto é um espaço, e não um território, em suas palavras, “A inespecificidade está na combinação de elementos diversos” (GARRAMUÑO, 2014, p.11).
Por isso cada vez mais temos textos que não possuem fronteiras classificatórias, nem muros, adequando-se também ao que sente o sujeito no mundo contemporâneo. Escrever é sempre estar de frente a uma incompletude. Segundo Stigger, “O inespecífico é a exploração da potência da potencialidade, em oposição à concretização num ato definitivo – que acaba contribuindo para que o texto não adquira uma forma definida, que ele permaneça, em alguma medida, informe” (STIGGER, 2016, p.14). Ainda segundo ela, “Em todos os exemplos de arte contemporânea – o corpo torna-se inquietante. A imagem que temos do corpo humano sofre um golpe quando nos é dado a ver em partes ou quando nos é revelado apenas o que dele habitualmente não vemos” (STIGGER, 2016, p. 17). Nessa fragmentação não vemos apenas pedaços desconectados, esse desfazer do corpo mostra principalmente que ao desmembrar o corpo do texto questionamos o fazer da linguagem.
Além dos aspectos já apresentados, há ainda um terceiro que gostaria de comentar. Além de apresentar o corpo da mulher como leitor do mundo, e de apresentar um romance composto de um conto, uma peça de teatro e um poema. Sul se diferencia pela própria confecção do livro, sua materialidade enquanto objeto. Na terceira, mas não última parte do livro, tempos uma narrativa na métrica de um poema. Essa parte tem por título “O coração dos homens”, em que a narradora, conta sua primeira menstruação durante uma peça de teatro na escola.
Depois dessa parte temos em média 11 páginas que vêm coladas. Ao pegar o livro pela primeira vez, o leitor pode chegar a pensar que seu livro tem um defeito, mas é nessa “falha” que o livro alcança determinada potência. Para ler é necessário que o leitor faça o esforço de rasgar a abertura das páginas.
Quando se consegue abrir as páginas coladas, o título agora, ao contrário do anterior, se apresenta como “a verdade sobre o coração dos homens”. Para contar tal verdade, o uso do não é empregado para negar todos os fatos apresentados antes, ou para apresentá-los de outra forma:
- Quando pequena, fui o espelho numa encenação de [Branca de Neve e os sete anões. (STIGGER, 2016, p.59)

- Quando pequena, fiz parte de uma encenação de [Branca de Neve e os sete      anões.
- Mas não fui o espelho.
-Fui a bruxa. (STIGGER, 20106, p.83)
Nesse momento da narrativa a narradora já não está mais no presente dos fatos, agora já nem menstrua mais, e se volta para o que havia enunciado desmentido o que já havia dito, ou seria, nos contando a verdade?
Usar a palavra não, para desconstruir o sentido de “verdade” enunciado na parte em que a narrativa é aberta ao leitor, aponta como a noção de ficção é importante para entender sua produção, mas que nem por isso o fato narrado tenha menos valor estético e de representação. Esse procedimento instiga o leitor em direção da desconstrução da verdade estabelecida sobre a narrativa, ou de uma verdade produzida por ela, nem antes nem depois o objeto é descrito, ele é apresentado no momento em que o texto se escreve na leitura, no momento em que esse corpo é inscrito no texto escrito.
A leitura desse romance tão curtinho em páginas traz muitas inquietações. A tentativa aqui foi de aproximar as elaborações da própria Stigger sobre a histeria, do procedimento que ela empreende na escrita de Sul.  Como mulher do sul do mundo, Sul esse que por meio de muito sangue, e em meio a tanto sangue tem caminhado muito proximamente para um futuro em que prevemos ainda mais sangue.
Sul é como disse Alexandre Nodari[6], sangue que corre das veias e não nas veias. Sangue e texto desmembram-se, e jorram do desmembrar. Esse é o texto de Stigger que por personagens mulheres e seu sangue no mundo, cria pela fragmentação dos gêneros narrativos, uma narrativa do inespecífico, do incompleto diante deste mundo. Do feminino como rasgo do rastro, como procedimento.



REFERÊNCIAS

GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
STIGGER, Veronica. Sul. São Paulo: Editora 34. 2016
STIGGER, Veronica. O útero do Mundo. São Paulo: MAM, 2016.



[1] Imagem da exposição de curadoria de Veronica Stigger, O útero do Mundo, 2016.
[2]Poema – Primeira lição, página 19, cenas de abril, 1979, Companhia das Letras.
[3]Poema sem título, Priscila Menezes, são nossas notícias que daremos, movimento respeita 2019.
[4] IMAGEM VERDADEIRA - CERTIFICO, por me haver sido verbalmente pedido pela parte interessada que, revendo neste cartório o livro de registros de nascimentos número A-cento e noventa e sete- (A-197), nele as folhas cento e trinta e cinco* (135), encontrei o assentamento número cento e oitenta e quatro mil quinhentos e setenta e um (184.571) lavrado no dia seis (6) de fevereiro de mil novecentos e setenta e três-(1973) referente ao nascimento de: VERONICA ANTOINE STIGGER, ocorrido no dia vinte e dois (22) de janeiro de mil novecentos e setenta e três (1973), nesta capital, de cor branca, sexo masculino, filha legítima de Ivo Egon Stigger, natural do es atado de Santa Catarina, e dona Ida Antoine Stigger, natural deste estado. (Os anões – p. 58).
[5] Essa aproximação dos textos de Veronica Stigger foi proposta uma primeira vez no trabalho de conclusão de curso de Marina Dias Silva. Ver: “O feminino como transgressão em Sul”, de Veronica Stigger/Repositório UFSC, 2017.
[6] Texto de orelha do livro Sul, 2016.

6 de julho de 2019

A poesia de autoria trans no contexto da "cole-sã escrevivências": ninho de afectos

Leocádia Aparecida Chaves



 Em busca do destino, de Chiharu Shiota 


Faltam algumas gotas de melancolia
páginas muitas
brancas
o lápis não escorre
parece
parece seco
sempre foi, verdade
mas há algo novo
um novo incômodo,
lombada recente
existe uma alegria
uma plenitude de espírito agora
um encontro
                                                                                                                                (Téo Martins[1])


tatiana nascimento (2018; 2019) – intelectual negra, sapatona, escritora, editora e ativista –, ao produzir sua literatura e ao fomentar a produção negra e/ou lgbtqi+ contemporânea – como um rato que faz a sua toca (Deleuze;  Guattari, 1977) – tem nos revelado escritas potentemente anticoloniais; escritas que têm conformado, como ela mesma cunha, o “cuíerlombismo literário” brasileiro. Um arcabouço que nasce, como explica, do diálogo com o conceito de quilombo de Abdias Nascimento e Beatriz Nascimento – resistência e organização – e com as discussões pautadas por teóricos e ativistas do movimento queer brasileiro como Jota Mombaça, Bibi Abigail e Marisa Lobo.
Movimento teórico que lhe permite, inclusive, numa artimanha decolonial, traduzir o queer para “cuíer” (nascimento, 2018); conceitual que  “(...) refund[a] a noção de literatura negra e/ou lgbtqi+ contemporânea, que até então era feita, lida e compreendida  apenas como combativa, mas que tem dado “[...] o passo adiante: anúncio, (re)criação. [...] experimentações de liberdade” (nascimento, 2019, p.15-16); paragem indubitavelmente subversiva, pois – só para começar – nos permite acessá-la “desorbitando do paradigma da dor” (nascimento, 2019).
Uma arquitetura conceitual biopotente, como me permite pensar Peter Pal Pelbart (2011), pois irrompe tanto como política de vida para a escrita literária “de povo que ainda falta” (Deleuze; Guattari, 1977) quanto para a crítica literária, que, de um modo geral, ainda está pautada pelas múltiplas colonialidades: saber, poder e ser, como discutem os decoloniais; mas não só; como se fosse pouco. Uma arquitetura que se vincula à padê editorial, platô criado pela teórica em parceria com Bárbara Esmenia, que desde 2016 tem publicado autoras negras e/ou lgbtqi[2].
Pois bem, é a partir desse “acuíerlombamento (nascimento, 2019) que nascimento idealizou, organizou e viabilizou, com apoio do Fundo Elas de Investimento Social, do Rio de Janeiro, em edital de 2018, a terceira coleção da padê: “a Cole-sã escrevivências”, um conjunto de 46[3] obras escritas por pessoas LBTs majoritariamente negras (75%) publicadas entre junho de 2018 e junho de 2019[4]. Cole-sã que carrega no seu título de batismo a potência da inspiração teorizada por Conceição Evaristo, “(...) a nossa escrevivência não é para adormecer os da casa grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos (...)” (Evaristo, 2007, p.16), como justifica tatiana nascimento na apresentação geral dos livros. Uma cartografia literária conquistada para que essas pessoas (...) inventa[ssem] novos mundos, im ou possíveis, utópicos, diz-tópicos (...)” (nascimento, 2019, p.24).
Como resultado dessa “ocuíerpação”[5], quatorze obras são de autoria trans majoritamente negra, sendo uma teórica, “Sou travestis: estudando a cisgeneridade como uma possibilidade decolonial”, de Viviane Vergueiro (2018), e treze literárias. Dessas treze, dois contos longos: “piroclastos” (2018), de Lázaro e “Uma natureza secreta”, de Luci Universo (2019); uma história em quadrinhos: “cartas para ninguém” (2019), de Diana Salú; três obras de gênero híbrido: “bricolagem travesti” (2019) de Maria Léo Araruna, “Vagamente”, de Daniel Brito, e “Crônicas coiote”, em que duas das quatro autoras, Bruna Kury e Marcia Marci, são travestis (o livro tem ensaios, poemas, ou letras de funk de alguma/s delas e mais Gilda Puri e Raíssa Vitral); e sete de poesia, dos quais seis são analisados neste ensaio  marcadamente  a partir da perspectiva “cuíerlombista”: “sal a gosto” (2018), de Esteban Rodrigues; “EP” (2018), de Téo Martins; “sapa profana” (2018), de Raíssa Éris Grimm; amar devagarinho...” (2018), de Bruno Santana; “no âmago” (2019), de Enzo Iroko; “a piada que vocês não vão contar” (2018), de Kuma França; e “Meus versos e inversos”, de Augusto Liras (2019, fora da amostragem por não ter sido lançado no contexto da escrita deste ensaio).
Antes, porém, um parêntese! Ao incluir a poesia de Raíssa Eris Grimm mulher trans branca – portanto privilegiada pelo racismo estruturante no rol “cuíerlombista”, proponho uma  expansão da discussão realizada por nascimento (2018, 2019), que acredito ser pertinente, uma vez que a desumanização e abjetificação da transgeneridade também é fruto da colonialidade, estruturada  pelo racismo e cissexismo colonial (Vergueiro, 2015, 2018). Portanto, ainda que o marcador raça seja um pilar na teoria de nascimento, acredito que territorializar a escrita de autoria trans branca neste espaço “cuíerlombista” nos permite pensá-lo, inclusive, como um espaço de aliança inter-racial aos moldes dos quilombos coloniais que “[...] tornaram-se sistema complexos, de produção cultural, convivência inter-racial, troca de saberes [...]” (nascimento, 2019, p.16).
Uma literatura que, a meu ver, simultaneamente, nasce de afectos bem como os gestaciona, pois se viabilizada por uma política editorial empenhada em “libertar a vida daquilo que a aprisionatambém é capaz de produzir “novas possibilidades de vida”, (Deleuze; Guatarri, 1997). Portanto, uma acepção que não se territorializa no gesto do sentir, mas na potência de devir, tornar-se. Pois como salientam os teóricos, se o artista é mostrador, inventor e criador de afectos pela obra que os cria, também nos dá a possibilidade de transformação – potência de afetação. Uma perspectiva potente para discutir toda a literatura de autoria trans desta “cole-sã”, mas que aqui será manejada “a pinceladas” para pensar uma temática que atravessa as obras de poesia: a do afeto – amor, prazer –, o qual neste ensaio se revela tanto como mostrador de afectos como viabilizador de transformação.
Isso se deve porque, como nos ajuda a pensar bell hooks em “Vivendo de amor” (1994), se amar e ser amado ainda é um desafio para o povo negro e de um modo especial para as mulheres negras neste planeta racista, o mesmo se constata para os dissidentes sexuais, que, desde a mais tenra idade, via de regra, tem aprendido o desamor, pois – do íntimo do lar ao espaço público –  reconhecidos pela sociedade transfóbica como corpos perversos, aberrações da natureza (Jesus, 2013)! Desumanização que ainda pode ser agravada em função da articulação entre raça e classe (Davis, 2016). Portanto, conforme as teóricas têm diagnosticado, se por um lado, há uma mecânica mortífera para o desamor, por outro, conclamam o amar como ação e como gesto, pois nutrir a capacidade do amor interior e do amar também é resistir, o que temos visualizado nessas poesias.
Em “sal a gosto” (2018), por exemplo, Esteban Rodrigues, constrói a segunda parte de sua obra com uma sequência de fragmentos de um discurso amoroso dele – um eu lírico configurado na voz de um homem trans – para ela, a sua musa, amante. Uma poética que tanto garante espaço para revelar a intimidade do amor romântico quanto a sua expectativa de permanência, comumente usurpados das vidas trans em nossa sociedade:

eu faço planos sem querer / no dia que você se atrasou quase meia hora eu listei 13 coisas que eu gosto de reparar em você: seus olhos, sua boca, sua orelha aberta, seu sorriso, suas mãos, seu braço dobrado, seus seios, a cicatriz na sua perna, a forma que o cabelo cai sobre a testa, sua bunda, sua tatuagem, sua clavícula, suas combinações de roupas; eu lembrei do dia que saímos juntos e eu preto e branco e você toda estampada e é como eclipse no meio da natureza, eu gosto da gente (Rodrigues, 2018, p. 47).

Na obra “EP” (2018), de Téo Martins, nos deparamos com um amor-canção que não só evidencia a quebra da previsibilidade dos corpos passíveis para a vivência do amor, como garante lirismo para esse devir amoroso, fraturador da cisheteronormatividade reprodutivesca:

Eu quero sentir o xuxu / De Raquel Vírgínia. / O hálito matinal / [...] Quero sua voz grave de quem mal acordou / Quero a graça de ver aquela mijadinha em pé / De quem sai rápida faminta / Atrás de café / Quero tê-la de mãos dadas cruzando a 24 de maio / [...] Eu quero minha pele preta / Coladinha na pele preta / De Raquel / [...] / Eu quero ser o homem / Que sou / De vagina / No pau, nas mãos / No corpo / De Raquel Vírginia” (Martins, 2018, p. 8).

Por outro lado, se o eu lírico de Raíssa Éris Grimm em “sapa profana” (2018) afirma que é preciso desestruturar os alfabetos para escrever uma história de amor, “impossível de ser lida” (Grimm, 2018, p.23), paradoxalmente, o realiza em sua poética! Além. Permite-nos visualizar essa vivência por meio de gozo: pleno, sagrado, humano: “não sei ainda entender / essa correnteza / que jorra, molha e me guia / por essa linha entre teus / olhos / e sorrisos. [...] Sob tua presença /me torno / inteira / presente” (Grimm, 2018, p. 29). Um corpo que se (re) faz, que se revela, ao longo de sua escritura, também como objeto de amor, auto- amor, amor interior, como em “Hoje seu corpo é sua casa / mas não começou assim. Antes de ser casa, seu corpo foi campo de batalha foi luta. Seu corpo é ocupação” (Grimm, 2018, p. 31). Aspecto que atravessa, ainda que em intensidades variadas, todas essas escritas.
Do corpo poético de Bruno Santana “amar devagarinho...” (2018), escolho o poema XXIV, que traz o abraço como devir-vida para o eu lírico também homem trans. Uma voz-vida, que marcada para morrer à míngua, se pronuncia libertariamente no devaneio, direito humano: “Seu abraço me ativa / vários big bangs, / dilata minhas / galáxias / mexe na órbita / dos meus planetas... / e melhor de tudo, / acende em mim / uma estrela” (Santana, 2018, p. 41). Aqui, portanto, a revolução reside na potência explosiva do mais banal dos gestos humanos, que gesto-ação também pode ser lido como signo de expansão que promove o “cuíerlombo” – espaço de afeto e partilhas.
Na “escrevivência” de Enzo Iroko “no âmago” (2019), pirilampa-me o sublime, o pleno da relação sexual poetizada para corpos, apenas: “[...] O corpo no corpo / Encontro de almas distintas / Sem separação / O corpo no corpo / Reinventa a criação / O corpo no corpo / Nenhuma abjeção / O corpo no corpo / Orgasmo e palpitação / Meu corpo em seu corpo / Pura libertação”. (Iroko, 2019, p.39). Uma escritura capaz de esvaziar demonizações e estigmas criados pelo nosso “olhar” cishteronormativado: fatalmente violentador da subjetividade humana.  
Já em a “piada que vocês não vão contar” (2018), de Kuma França, o eu lírico dedica com muita potência o seu afeto, a sua pulsão de vida, ao seu povo: “Jamais chame meu irmão de pagado / Mexeu com minha família / Mexeu comigo / Seguimos firme na escuridão / Dando fuga a vários outros irmãos / Crescimento ( nós por nós) é isso” (França, 2019, p. 35). Uma poética que se sustenta numa comunidade  ancestral, a   afro-diásporica, expandida e em expansão:
[...]
Vou tomando espaço que sempre me pertenceu
Cês tudo puto pirando e perguntando
“Quem sou eu
Mandingueiro de primeira
Siga a minha ladainha
[...]
Sou estratégia, Oxóssi, destemido feito Ogum
Trago o canto de Oxum, me aprecie sou Exu
Eu sou a insistência com a pirraça de Oxalá
Prazer Kuma Fumaça
A piada que vocês não vão contar. (França, 2018, p. 32-33).

O que evidencia e reforça uma comunidade de partilha, de afetos pela palavra (nascimento, 2018; 2019), que o sistema branco, cishetero – cotidiana e historicamente – tenta exterminar: “ [...] Há beleza por trás da feiura / Há humanidade na criatura / [...] / Diga a eles que eu sou a cura / [...] Tá sem cor esse seu colorido / Tá visível o seu escondido / Tão bonito o seu  mal vestido / Diga a eles que sou seu amigo [...]” (França, 2018, p. 40).
Portanto, estamos nos deparando, como exorta nascimento, com uma poesia que se revela prenhe de vivências de amor, capaz de subverter as expectativas de morte sobre suas vidas em expectativas de vida (nascimento, 2018). Poéticas que, consequentemente, nos permitem acessar um mundo de emoções e sentimentos categoria “luxo” – (lorde, 1984) usualmente pensáveis somente para brancos, cisheteros, ricos ­ –, mas que aqui são reivindicadas como necessidades básicas, saúde emocional; como versifica Raíssa Éris Grimm, permitem “abismos sonharem voo”  (2018, p. 8) tanto para os seus criadores, criadoras quanto para quem desse ninho de afectos se aproximar.



Referências Bibliográficas

DELUEZE, Gilles; GUATTARI, Felix. “A literatura Menor”. In: Kafka por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1977. p.25-42.
DELUEZE, Gilles. “Literatura e vida”. In: Crítica e Clínica. Editora 34, 1997.p.11-16.

DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
EVARISTO, Conceição. Representações Performáticas Brasileiras: teórias, práticas e suas interfaces. (org) Marcos Antônio Alexandre, Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007, p 16-21.

hooks, bell. Vivendo de amor. Tradução de Maísa Mendonça. Geledés, 09 de mar. 2010. Disponível em: https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/. Acesso em: 20 de jun. 2019.

LORDE, Audre. Poesia não é luxo. Tradução de tatiana nascimento de Poetry is not a luxury. Ensaio do livro Sister, outsider: essays and speeches. Nova York: The crossing press feminist series, 1984. Disponível em: https://traduzidas.wordpress.com/2013/07/13/poesia-nao-e-um-luxo-de-audre-lorde/. Acesso em : 13 de fev. de 2019.

NASCIMENTO, tatiana. Cuírlombismo literário: poesia negra LGBTQI desorbitando o paradigma da dor.  São Paulo: N-1 edições, 2019.

__________. o cuíerlombo da palavra (y da palavra queerlombo…) > poesia preta lgbtqi de denúncia da dor até direito ao devaneio. In: ARAÙJO, Adriana de Fátima Barbosa; SOUTO, Suzana (Orgs.). I Encontro Ler: Literatura, Éstetica e Revolução. Brasília: Universidade de Brasília, 2018.

PELBART, Peter Pál. Vida Capital. Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011.
VERGUEIRO, Viviane Simawaka (2015). Por inflexões decolonais de corpos e identidades  de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. (Dissertação de Mestrado) Universidade Federal da Bahia, Bahia 2015. 243 fls.

VERGUEIRO, Viviane. Sou travestis: estudando a cisgeneridade como possibilidade decolonial. Brasília: Padê Editorial, 2018.


[1] Registra-se que o escritor alterou, recentemente, a sua assinatura para Preto Téo.
[2] Informações no sítio: http://pade.lgbt/.
[3] Esta Cole-sã pode ser comprada pelo sítio da padê  http://pade.lgbt/ ou baixada gratuitamente pelo portal  www.literatura.lgbt, conforme divulgado na página do facebook: padê editorial.
[4] Essas informações estão publicizadas no sítio da editora http://pade.lgbt/  e em sua página do facebook: padê editorial.
[5] A partir do conceito de “cuíerlombismo” (nascimento 2018, 2019) derivo a palavra “ocuíerpação”, que   traduz, a meu ver, um movimento em andamento.