12 de dezembro de 2015

A contemporaneidade de Caio Fernando Abreu

(sobre Sexualidades em questionamento: uma abordagem queer sobre Caio Fernando Abreu, de Mariana de Moura Coelho)


Fernanda Borges

Caio Fernando Abreu
Caio Fernando Abreu é um autor que encanta e surpreende os leitores, os quais, muitas vezes, tornam-se seguidores, fãs e discípulos fiéis de seus textos e de suas ideias. O autor gaúcho, falecido em 1996, conta ainda hoje com uma legião de leitores, o que atesta a contemporaneidade de sua literatura. Seu acervo pessoal, composto por cartas, manuscritos e datiloscritos, fotografias e mapas astrais, entre outros objetos, encontra-se no Delfos –Espaço de Documentação e Memória Cultural da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). A obra de Caio também conta com significativa fortuna crítica acadêmica por apresentar temas extremamente relevantes neste momento social que vivemos no Brasil, como a discussão desenvolvida na dissertação de Mariana de Moura Coelho, intitulada Sexualidades em questionamento: uma abordagem queer sobre Caio Fernando Abreu
Igualdade de gênero, homoafetividade, casamento gay e homofobia são questões discutidas diariamente não só na sociedade brasileira, mas em contexto mundial. Como bem afirma Mariana Coelho, Caio Fernando Abreu é um autor reconhecido também por tratar desses tópicos em seus textos ficcionais, mesmo que a maioria de suas personagens não sejam identificadas nas narrativas como gays, homo ou bissexuais: “Caio Fernando Abreu é, sem dúvida, um dos principais nomes da temática homoerótica na literatura brasileira. Ainda assim, (…) aqueles tidos como claramente homossexuais não representam a maioria de seus personagens. Caio nunca esteve interessado em levantar bandeiras: em sua literatura existencial, da solidão, da busca do amor, sua preocupação maior sempre esteve em descrever experiências amorosas, sejam entre quem fosse, ainda que isso não significasse igualá-las todas ou negligenciar suas particularidades. Mesmo assim, ele se destacou pela homotextualidade e certamente figura na lista dos mais importantes escritores brasileiros da segunda metade do século XX”.
Apesar de ter se destacado sobretudo como contista, os textos de Caio analisados no trabalho não são os contos, mas a novela “Pela noite”, publicada em Triângulo das águas, de 1983, e o romance Onde andará Dulce Veiga?, de 1990. As personagens Pérsio e Santiago, de “Pela noite”, apresentam perspectivas opostas no modo de encarem e vivenciarem sua orientação sexual. Pérsio, por ter enfrentado diversos casos de preconceito, encarna a culpa na realização de sua sexualidade, ao contrário de Santiago, que não concebe o seu desejo como anormal, conforme certos discursos querem forçá-lo a pensar. Dessa forma, Caio Fernando Abreu problematiza tais questões identitárias já na década de 1980, refletindo claramente ainda acerca da AIDS e da clandestinidade sexual e afetiva enfrentada pelas personagens. Já em Onde andará Dulce Veiga?, Mariana Coelho discute a diversidade sexual das personagens do romance, o qual não as define ou rotula de modo a incluí-las em categorias específicas e fechadas. A liberdade quanto à representação das identidades e das orientações sexuais é uma das características mais interessantes dessa obra, que se mostra fundamental na literatura contemporânea para que não se adote posturas excessivamente classificatórias e, consequentemente, estanques e infrutíferas na escritura literária e na posterior análise crítica.
A dissertação Sexualidades em questionamento: uma abordagem queer sobre Caio Fernando Abreu, defendida na UnB, toca em importantes aspectos da literatura de Caio F. e esclarece diversos conceitos da teoria queer, muitas vezes mencionados aleatoriamente ou desvinculados de sua postura política e filosófica. Em um momento em que tanto se fala de igualdade de direitos, de intolerância e de respeito, as questões trazidas pelo texto de Mariana Coelho reforçam nossa argumentação contra discursos preconceituosos e homofóbicos e, acima de tudo, relembram-nos da delicadeza e da força da literatura de Caio Fernando Abreu.

Confira o conteúdo completo da dissertação de Mariana de Moura Coelho, Sexualidades em questionamento: uma abordagem queer sobre Caio Fernando Abreu (2010, Universidade de Brasília) no site do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea. Veja o trabalho completo aqui.

5 de dezembro de 2015

A insustentável existência do outro

Carol Almeida

Fonte: hurriyetdailynews.com

Em 1929, Virginia Woolf falava sobre as “dificuldades materiais” de escrever que tinha a mulher sem a emancipação de um teto para chamar de seu, do dinheiro próprio ou da autonomia em dizer que não estava ali pra te servir um chá ou colher as flores da estação. Da mulher incapaz de ter um espaço para a reflexão, sem que o peso de seu sexo não a curvasse perante alguma autorização patriarcal. Seria possível fazer uma associação entre esse ensaio de Woolf e os possíveis entraves editoriais que existem hoje para as escritoras e escritores fora do padrão hegemônico do homem-branco-classe-média-sudestino-heterossexual? Qual a natureza das dificuldades que existiriam agora? A resposta de Luisa Geisler, conhecida após ter levado o Prêmio Sesc de Literatura em 2010, aos 19 anos, e hoje autora de dois romances, não poderia ser mais elucidativa. “A questão toda para mim está nestas duas sinopses:
Martha é uma mulher determinada a descobrir a respeito de seu passado. Entre relacionamentos amorosos frustrados, ela inicia uma pesquisa extensa que a levará a descobrir a sua verdadeira identidade.
Marcos é um homem determinado a descobrir a respeito de seu passado. Entre relacionamentos amorosos frustrados, ele inicia uma pesquisa extensa que o levará a descobrir a sua verdadeira identidade”.
Ela explica: “Note como, só mudando o gênero na sinopse, a história quase parece outra? E eu poderia exagerar mais. Agora imagine falar de uma autora que faz uma história sensível versus um autor que faz uma história sensível. Há um padrão duplo muito claro e precisamos assumir que isso existe para que ele possa ser combatido”. Em suma, o que Geisler aponta quando tenta estabelecer a natureza dos obstáculos para a mulher escritora é essencialmente o mesmo problema sobre o qual Virginia Woolf se lamentava há mais de oito décadas. Às mulheres ainda cabe a carga simbólica do ser passivo, em que pesam mais na sentença acima os “relacionamentos amorosos frustrados”. Enquanto o homem, ativo, se sublinha na ação de sua “pesquisa extensa”. Essas representações socialmente construídas, claro, se estendem também às questões materiais historicamente dadas não apenas às mulheres, mas a todos aqueles destituídos de um teto próprio.
Ninguém vai ler o que escrevo, mas escrevo. É a única maneira
 de voltar inteiramente, se é que ainda dá para fazer meia-volta-volver.
Maria Valéria Rezende, no livro Quarenta dias (Alfaguara)
Os reflexos editoriais dessa perpetuação do papel social estão sendo intensamente discutidos nesses últimos três anos, particularmente após a publicação, dentro e fora do Brasil, de várias antologias da literatura contemporânea, de premiações e feiras literárias que evidenciaram um inegável protagonismo masculino-branco-classe média no corpus literário. O debate coincide (coincide?) também com o resultado da pesquisa desenvolvida pela professora Regina Dalcastagnè, da UnB, lançado em 2012 com o livro Literatura Brasileira Contemporânea: um território contestado (Editora Horizonte), no qual ela conclui que, entre 1990 e 2004, os homens foram três quartos dos autores publicados no Brasil, 70% de todos autores publicados vinham de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul e, ainda mais gritante, 93,9% desses escritores, entre homens e mulheres, eram brancos. A pesquisa vai mais adiante para mostrar como esses números ecoam narrativas predominantemente masculinas. Nos 258 romances estudados, 62,1% dos personagens importantes eram homens e, entre os protagonistas, eles eram uma maioria ainda mais expressiva: 71,1%.
Em resposta à mesma questão que menciona o ensaio de Virginia Woolf, Dalcastagnè é objetiva: “Permanecem muitas dificuldades, inclusive as materiais. Afinal, o fenômeno da dupla jornada de trabalho afeta as mulheres em todas as ocupações profissionais. Elas têm menos tempo livre porque são responsáveis pelas tarefas domésticas, logo, têm menos tempo para escrever também. Há também os filtros quase inconscientes, que fazem com que os escritores homens sejam privilegiados, até mesmo pelo fato de que as confrarias de escritores que se formam são quase exclusivamente masculinas. Mas talvez a principal dificuldade esteja na permanência da ideia de que as mulheres fazem ‘literatura feminina’, o que as aprisiona numa determinada dicção, num círculo de temáticas, em algo que é, já de antemão, uma literatura ‘menor’. Mulheres que resistem a isso têm que estar dispostas a pagar o ônus da estranheza em relação às suas obras”, afirma.
Sua pesquisa, bem como os conflitos apontados por várias escritoras mais confortáveis com as velhas/novas pautas feministas, surgem de uma mesma demanda de representação das identidades fragmentadas da pós-modernidade postulada por Stuart Hall. Mulheres, negros, lésbicas, gays e transgêneros, seres socialmente periféricos de uma maneira geral, exigem os espelhos que lhe são de direito e que permanecem sendo negados a partir do momento em que até para reconhecer Machado de Assis como o grande cânone da literatura brasileira, simbolicamente se extrai dele sua cor negra. Mas, quando uma escritora como Ana Luisa Escorel sobe ao palco para receber o prestigiado Prêmio São Paulo de Literatura de 2014 e aponta em seu discurso que, depois sete edições, o evento finalmente premia uma mulher e, mais ainda, uma “autora tardia” em uma editora pequena, algumas pessoas se mexem desconfortáveis em suas cadeiras. E a literatura, tal como qualquer outra arte, só tem a ganhar com esse atrito.
Porque pouco tempo depois de admitida na empresa já conseguia atrair
 a conversa para os assuntos do trabalho, esotéricos para aquele grupo de amigos e parentes voltado para outros mitos, praticante de outros ritos, fazendo pergunta
atrás de pergunta na curiosidade típica dos não iniciados. As mulheres, então!
- Esteve com ele?!!
- Faz parte...
- Gato, como nos jornais?
- É...
- Te deu bola?
- Casado!
- E daí?
- ...
Ana Luisa Escorel, no livro Anel de vidro (Editora Ouro Sobre Azul)
O que refletem essas premiações (a pontuar que o disputado Prêmio Portugal Telecom de Literatura nunca, em sua condecoração maior, elegeu uma mulher) e antologias como a supermidiatizada Por que ler os contemporâneos? (Dublinense), em que de 101 autores “essenciais”, apenas 14 são mulheres? No campo literário, ainda que o exercício da ficção consista em se colocar no outro, termina havendo uma predominância de um ponto de vista de quem, por questões de projeção, reproduz o que lhe é mais familiar. A dúvida maior parece ser: esse estado das coisas deve ser minimizado por uma gradual “evolução” da condição social da mulher e naturalizado como inevitáveis (in)consequências históricas, ou haveria de fato um mercado editorial (e uma indústria de cinema, da música...) machista? Ou, para além da pauta exclusivamente feminista (ainda que essa pauta se aplique a todas as demais minorias políticas): deveria esse mercado editorial ser tão refém dos padrões socialmente opressores que as estratégias de consumo perpetuam?
Elvira Vigna, escritora veterana e autora de um dos romances mais elogiados de 2014, Por escrito, é incisiva: “O achatamento da fala é feito pelo mercado. Não há nada de ruim em ninguém. Nem em homem, nem em universitário do sudeste ou em heterossexuais. A formatação necessária às ações de marketing(que não se dirigem ao individual, mas sempre a um coletivo) é que é ruim. A formatação necessária desse ‘produto’ (a literatura vista como produto dá um workshopinteiro) é ruim porque corta tudo que não se enquadra nos canais de venda, nos processos de venda já existentes e testados. É o maior atraso de vida, de criação, de tudo. É a morte.”
Mais jovem, Carol Bensimon, autora de três romances e colunista do blog da Companhia das Letras, relativiza: “No mercado editorial brasileiro, mulheres estão sendo publicadas (em número menor, é verdade, não é tão rápido corrigir uma discrepância histórica), estão concorrendo e ganhando prêmios, mas como apontar e quantificar os momentos em que uma escritora é preterida, simplesmente por uma questão de gênero, em favor de um escritor homem, e isso na sala de uma editora, na mesa de um jornalista, na cabeça de um leitor indeciso diante de uma estante? Claro que isso acontece diariamente. Mas é quase impossível perceber quando, onde e de que forma se dá essa diferença de tratamento”.
Em entrevista publicada no fim do ano passado pelo O Globo, uma das mais procuradas e respeitadas agentes literárias do Brasil, Luciana Villas-Boas, ex-diretora editorial da Record, chegou a afirmar que “há no meio editorial a ideia de que toda autora quer ser Clarice Lispector, oferecendo um tipo de pastiche clariciano odiado pelo público”. E que “com um número tão inferior de mulheres publicadas, é natural que elas sejam menos contempladas em premiações”. Curiosamente (contém ironia), a literatura da própria Clarice, com frequência, foi associada pelos próprios críticos literários a uma espécie de bruxaria inerente à autora, como se seus extraordinários poderes de concisão da alma humana não pertencessem ao intelecto, mas, sim, a fenômenos paranormais. No mesmo tópico, é importante notar como, do lado masculino, não se tem conhecimento de nenhum autor contemporâneo vivendo às sombras de fantasmas como Machado de Assis ou Guimarães Rosa.
No dia em que te conheço, você está com uma camiseta em que está escrito
 “Sexo Não Tem Gênero”. Cochicha no meu ouvido outras frases também sem
muito sentido, mas com a aparência de que têm. Fico com a impressão de que
você deve ser muito culto. Só pode. Depois vejo meu duplo engano. A camiseta
 nem é sua. Derrubaram vinho, daquele de garrafa de plástico que ambulante
 vende. Ou foi vômito e você falou que foi vinho. O caso é que
 você arranja outra camiseta, essa. Aquela.
Elvira Vigna, no livro Por escrito (Companhia das Letras)
Ainda no tópico do mercado, tem sido muito publicizado o crescimento de vendas de um gênero agora conhecido como chick-lit, em que mulheres reafirmam esse espaço da figura feminina como uma personagem que orbita a centralidade masculina. Tramas sobre meninas e mulheres à procura de um namorado ou marido são constantes. Esses livros são usados com frequência para endossar a afirmação pueril, para não dizer mal-intencionada, de que existe uma literatura feita para mulheres e uma outra escrita para homens. Quase um prolongamento das divisões cromáticas entre o rosa e o azul numa loja de brinquedos. 
ENTRELINHAS DO ATIVISMO
Como aponta o trabalho de Regina Dalcastagnè, o mesmo discurso das mulheres sub-representadas em escolhas editoriais se aplica também quando o ponto de partida da escrita se dá por um autor fora do protagonismo eurocêntrico. Se as mulheres ainda enfrentam dificuldades materiais para escrever, uma pessoa que vive na periferia das grandes cidades pode passar por problemas ainda maiores: “Não é dificuldade de produzir, mas de existir. Sem participar do “clubinho”, sem tomar cafezinho com os editores, sem ter acesso a esse meio, fica difícil chegar no mercado. Eu fui algo à parte. Sou igual aos grupos de forró, tecnobrega, que chega porque pegou o povo primeiro, depois o mercado e a mídia reconhecem. Esse é um caminho que os autores de periferia estão trilhando”. A opinião é de Ferréz, hoje editado pela editora Planeta e conhecido — rótulo, claro, dado pelo mercado — como ‘o escritor da periferia’” (difícil seria imaginar alguém sendo marcado como “escritor do centro”).
O fato desse aplainamento narrativo ser resultado de um contexto maior, onde diversas minorias terminam sendo reconhecidas apenas quando a elas são reservadas gavetas fechadas — “literatura feminina, literatura de periferia” — não exime a necessidade do debate. “Isso gera narrativas muito parecidas (de homens brancos heterossexuais), o que de certa maneira reflete uma série de mídias que são assim. O que se acaba aprendendo é a vida sob o ponto de vista de um homem. Eu já li narrativas de masturbação masculina várias vezes, já li diversas análises de corpos femininos em livros. A existência da mulher (e de outras minorias) só existe a partir de uma lente masculina. Demorei muito a achar um livro que tivesse masturbação feminina. Por quê? Por que se fala tão pouco de menstruação ou de temas femininos no geral? O que isso acaba, simbolicamente, mostrando é que: é assim que um homem vive e o jeito que um homem vive merece inclusive ter histórias contadas a respeito. O papel da mulher se torna algo “em relação ao” homem, o que é um simbólico terrível. Mesmo quando a protagonista é mulher, um autor homem pode fazer um excelente trabalho, mas nem sempre. Essa variedade de olhares é necessária”, frisa Luisa Geisler, que, no fim de 2014, se viu na berlinda de comentários machistas após um artigo seu publicado no jornal O Globo, com o título de Eu escrevo como mulher, sim.
Nele, a jovem autora chegava a afirmar que já ouviu “elogios” do tipo “você escreve como um homem” ou a variação “você não escreve como outras mulheres”. Luisa, tal como Elvira, a poeta Angélica Freitas, Adelaide Ivánova (leia texto inédito sobre esse mesmo assunto na página 19) e, mais recentemente, a já citada Ana Luisa Escorel, são algumas das que há pouco tempo se afirmaram incomodadas com a supremacia do lugar de fala preponderantemente masculino-branco-classe-média. Freitas, que em 2012 publicou o livro Um útero é do tamanho de um punho (Cosac Naify), reunião de 35 poemas a lidar com a questão da identidade feminina, chega a usar esse conflito de poderes como tema maior de seus versos: “uma mulher incomoda/ é interditada/ levada para o depósito/ das mulheres que incomodam”, escreve. Ao lado de Ricardo Domeneck, Fabiano Calixto e Marília Garcia, Freitas é também editora da revista (impressa e online) Modo de Usar, um espaço literário reservado a narrativas dissidentes, em prosa e poesia, dos padrões hegemônicos do mercado.
Recebi um abraço demorado e um “Paris te fez bem”, frase que achei melhor
 rebater apenas com um sorriso do tipo padrão. A alguns metros de distância,
um homem usando bombachas olhava para a gente com certo interesse triste.
Carol Bensimon, no livro Todos nós adorávamos caubóis (Companhia das Letras)
Questionada sobre se há um exercício político em sua obra, ao escrever usando protagonistas mulheres, Luisa Geisler pondera: “Apesar de essa escolha — assim como escolher um personagem masculino — ser um exercício político, não é a intenção. A ideia de fazer literatura feminista é uma ideia ruim para a autora, porque ‘feminismo’ é uma palavra pouco popular. A ideia de ter uma ideologia incomoda as pessoas, que se sentem parte de um terrível complô, sem que elas percebam que toda a literatura tem alguma forma de ideologia por trás. Ninguém escreve no vácuo. No entanto, não gosto de fazer livros didáticos ou panfletários. Jamais iria querer escrever O mundo de Sofia do feminismo, por exemplo. Não tenho intenção política ou ideológica, mas acaba acontecendo. É impossível pra mim ler um livro e não notar quando uma personagem feminina não apenas está reduzida a um cargo (a mãe, a namorada, a esposa, a amante, a secretária desejada), como também é usada como mera ferramenta narrativa. É incrivelmente comum vermos personagens femininas que não são coerentes, mas que fazem coisas porque essas coisas vão ter um resultado no protagonista, em geral homem. A minha escolha é de fazer personagens mulheres que façam sentido, que tenham começo, meio e fim, que tenham complexidades emocionais que não sejam vistas como ‘mimimi’”.
Já Elvira, diante da mesma questão, é mais uma vez enfática: “Sim. Em 1978, fiz um infantil, o Viviam como gato e cachorro (Editora Dimensão). Ilustrei meu próprio texto. É a história de um casal, transposta para seus dois animais de estimação, um gato e um cachorro. Fiz a menina sempre vestida, e muito vestida, com saias compridas. O menino está sempre nu, o peruzinho pendurado. Nada no texto me autorizava a fazer isso, mas fiz. Era um desafio à coisificação da mulher na mídia. O livro ganhou o prêmio APCA de melhor ilustração e um ‘altamente recomendável’ na Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. As coisas pioraram muito desde então. Duvido profundamente que algum editor topasse publicar essas ilustrações, hoje”, diz ela.
#LEIAMULHERES
As provocações das escritoras da literatura contemporânea brasileira, mais do que qualquer outra minoria política, apontam, sim, para a premência da discussão, mas estão longe de indicarem saídas fáceis. Em comum, essas autoras questionam a invisibilidade da figura da mulher na literatura, mas estão todas longe de sugerir uma solução comum ao problema que não seja o combate ostensivo e intensivo ao machismo nosso de cada dia, dentro e fora das páginas (e o mesmo vale para o brancocentrismo, classemediacentrismo, sudestinocentrismo, e assim por diante). Combate a afirmações do tipo “você escreve como um homem” ou a polemistas como o jornalista André Forastieri que, no mesmo ano de 2014 em que se lançou uma campanha nas redes sociais conhecida como #leiamulheres, publicou um artigo com o título Eu não leio livro escrito por mulher, sugerindo que há, sim, textos pensados para homens e outros direcionados a mulheres, ou a “mulherzinhas”, como ele define a literatura de Jane Austen.
Tenho estranhado o Gilsinho. Ele aceita tudo com tanta mansidão, mas alguma coisa está deixando esse menino mais forte, ele faz o que peço, mas não é mais como antigamente. Ele temia minha voz, minha aproximação, ele está ficando superior. O corpo já poderia me surrar até a morte. Ele já poderia me abandonar por justa causa. Ele já podia ter percebido que sou confusa o suficiente para achar que um aborto ainda é uma possibilidade. Eu o mataria no meio de um descontrole, com um tiro certo, caída no chão depois de um telefonema como o que acabei de receber.
Andrea del Fuego, no livro As miniaturas (Companhia das Letras)
Pergunto então à Regina Dalcastagnè se houve alguma recepção negativa às conclusões de sua pesquisa sobre os “territórios contestados” da literatura brasileira contemporânea. Ela responde com outra questão: “De um modo geral ela foi recebida com muito interesse. Houve algumas leituras equivocadas, como se eu estivesse defendendo uma espécie de patrulha literária ou propondo um manual do romance politicamente correto. Então, alguns escritores e críticos reagiram, brandindo o valor ‘universal’ da literatura. Eu questiono essa ideia de valor universal, a ideia de que uma obra literária é algo fora do tempo e do espaço. Mas mesmo que aceitemos isso, fica a pergunta: por que esse ‘universal’ só é atingido em narrativas sobre intelectuais de classe média? Por que as mulheres pobres, negras, da periferia estão ausentes do ‘universal’?”
Em tempos de identidades manipuladas a favor de neoapartheids e do medo do outro, questionar o que é “universal” e a quem ele serve pode ser o começo de tudo. O elefante começa a se mover na sala de cristal, onde o senhor “universal” repousa inabalado. E para efeito da criação, é sempre bom escutar o barulho das coisas se quebrando.


14 de novembro de 2015

Entrada proibida

Graziele Frederico


                                                          Dagmawy Yimer. Foto de Laura Daudén

Alguns morreram, outros se perderam pelo caminho, mas nós estávamos ali. Os europeus fazem um jogo maquiavélico com os imigrantes. A impressão que eu tenho é como se tudo fosse um teste para que na Europa entrem apenas os mais fortes, aqueles que conseguiram ultrapassar todas as fases.
 Dagmawy Yimer


Em março de 2009, preparando um livro sobre imigrantes africanos na Itália, conheci a história de Dagmawy Yimer. Ele é um etíope alto, esguio, fala um italiano fluente e ainda mantém a retórica desenvolvida no curso de Direito que não chegou a completar. Ele não era pobre em seu país e, apesar das dificuldades na Europa, também não viveu a situação de miséria. Fome, frio e desespero ele viveu pela primeira vez durante a viagem de Adis Abeba até Lampedusa.

“Quando me perguntam qual a minha etnia ou minha religião, insisto sempre em dizer que sou só um homem e basta. Eu nunca esperei ganhar muito dinheiro e, por isso mesmo, nunca tinha pensado em sair do meu país.” Yimer saiu da Etiópia no final de 2005, depois de ter participado de manifestações políticas contra o governo. Primeiro foi até a capital do Sudão e, em território estrangeiro, conseguiu reencontrar seus amigos e organizar a fuga para Europa. A África poderia ser uma alternativa, mas nos países vizinhos a situação política da qual estavam fugindo não era muito diferente. A Eritréia vivia sob o poder de Isaías de Afewerki, desde 1993, a Somália sofria uma guerra civil, o Dijibuti elegeu o presidente Guelleh com suspeitas de eleições forjadas, o Quênia elegeu um presidente pela primeira vez em 2002 e o Sudão vivia sob a ditadura de Omar Hasan Ahmad al-Bashir desde 1989.

Yimer estudava Direito na universidade de Adis Abeba quando o país, em maio de 2005, realizou as primeiras eleições pluripartidárias, desde a proclamação da República Federal Democrata. Há dez anos o primeiro ministro Meles Zenawi estava no poder. Devido às pressões das Nações Unidas, o governo liberou todos os partidos a se candidatarem e manifestarem livremente suas propostas. A Etiópia ganhou movimentação política e os universitários participaram ativamente da efervescência que o país viveu durante os cinco primeiros meses daquele ano. A Coalizão para a Unidade Democrática (CUD) e a Forças Democráticas Unidas da Etiópia (EUDF) tinham como pontos fortes no programa de oposição o combate ao desemprego, a implantação de medidas preventivas à contaminação do HIV e tratamento para esses pacientes, os quais compunham 10% da população adulta do país, e, por fim, a melhor distribuição das terras.

Uma semana antes do tão esperado domingo, 15 de maio, quando seria escolhido o novo parlamento etíope, foi publicado um relatório da organização Human Rights Watch denunciando a violação dos direitos humanos e a repressão política na região de Oromo, onde está situada a capital Adis Abeba. O documento registrava que dirigentes locais prenderam manifestantes da oposição. Alguns dos amigos de Yimer também foram torturados. Mesmo assim, o jovem demorou um pouco para acreditar no que estava acontecendo e pensar em fugir.

Apesar da barbárie documentada pela organização internacional, 90% dos 73 milhões de habitantes foram às urnas. Preparando-se para o que poderia acontecer no país depois da divulgação dos resultados falsos, na noite de 15 de maio, Zenawi retomou o controle da imprensa e proibiu qualquer manifestação de cunho político durante um mês. A vitória de Zenawi e da Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (EPRDF) foi avassaladora, deixando a oposição com menos de um terço das cadeiras no Parlamento. Com esse resultado, os outros dois partidos contrários à EPRDF não poderiam propor a agenda de debates, nem vetar as leis elaboradas pela maioria parlamentar.

Em novembro, a revolta pela fraude nas eleições e o autoritarismo da maioria parlamentar levaram os cidadãos de Adis Abeba a desobedecerem as ordens do primeiro-ministro. Mais de 500 pessoas saíram às ruas para protestar. Elas queriam mostrar ao mundo o que estava acontecendo no país. Outros jovens como Yimer gritavam o nome dos líderes da oposição que haviam sido presos, por terem contestado o novo Parlamento. A Anistia Internacional denunciou que, apesar das manifestação pacífica realizada por estudantes, professores, jornalistas, parlamentares e advogados, os policiais agiram com violência. Duzentas pessoas foram feridas e, 64, mortas. Meles Zenawi declarou, na mesma semana, a pena de morte de 58 cidadãos considerados traidores da pátria.

Yimer entendeu o recado do primeiro ministro: “Tomei a decisão num impulso, como os outros jovens. Nós sabíamos que um dia, de repente, um soldado entraria na nossa casa e acabaria com a nossa vida. E, pior, você estaria morrendo por uma manifestação que não mudou nada, já que não podemos fazer mudanças. É nesse momento que você decide seguir em frente e enfrentar a viagem.”
A viagem deveria ser organizada às pressas. Os estudantes de Adis Abeba eram um grupo visado pela polícia. O primeiro passo de Yimer foi trocar por dólares as economias que tinha para pagar a Universidade de Direito. O dinheiro foi costurado dentro de uma calça jeans, como haviam recomendado outros imigrantes. Ninguém pode deixar à mostra a quantia que leva, caso contrário, a chance de ser roubado ou extorquido é muito maior. As viagens atravessando o Saara até a costa do Mediterrâneo custam, em média, de US$ 1,5 a US$ 3 mil, dependendo do ponto de início, de quantos policiais se encontrem pelo caminho e de quantas vezes você seria preso pelos líbios.

O grupo de partida não poderia ser formado em Adis Abeba. Algum soldado ou funcionário do governo poderia perceber a movimentação e desconfiar que se organizava, ali, a fuga. O ponto de encontro foi a capital sudanesa, Cartum. Este é um dos mais importantes centros comerciais do Sahel – região do extremo sul do Saara, que vai do Senegal ao Sudão ligando os agricultores dos campos meridionais aos nômades do deserto, ao norte. A cidade conta com 2,7 milhões de habitantes, de maioria árabe e muçulmana. A semelhança cultural, étnica e religiosa contribui para que os sudaneses consigam negociar o tráfico de imigrantes, criando a rota de entrada na Líbia pelo deserto.

Yimer descreve essa etapa da viagem com tranquilidade. Era apenas o início, nenhum deles sabia ao certo o que encontrariam no caminho. Eles ainda tinham comida e água suficiente para o percurso. Já estavam mais longe de casa e, não corriam perigo de serem presos pelos homens de Zelawi. Os traficantes sudaneses que fazem a travessia não pertencem na sua maioria a grandes redes ou organizações. São imigrantes que tentaram esse caminho outras vezes e, por motivos diversos, ou não conseguiram chegar à Europa ou foram deportados para a África. Nesse complexo sistema formado ao longo das rotas de imigração, criou-se uma variedade de atividade profissionais que vão de conselheiro para preparação da viagem até vendedor de documentos falsos e agenciador de casas-dormitórios para imigrantes.

O grupo dos 22 etíopes passou um mês no Sudão, à espera da chegada de todos para se organizarem e encontrarem um traficante. O contrato com o contrabandista previa que ele os entregaria nas mãos dos líbios por US$ 200 cada um. A partir daquela fronteira os etíopes deveriam pagar mais US$ 300 por pessoa aos intermediários para atravessarem o Saara. O destino final seria a costa do país, nas cidades de Bengasi ou Trípoli – os dois polos mais importantes da Líbia.

Os etíopes conheciam apenas uma parte dos riscos da viagem. Yimer enfatiza que devido à perseguição política, tudo foi decidido num impulso. Nenhum deles calculou ou planejou os perigos. Um cineasta italiano que o jovem conheceu em Roma anos mais tarde dizia que antes que você viva alguma coisa, você nunca acredita direito naquilo. E depois, quando a única possibilidade é aquela, ninguém pensa muito no que poderá acontecer. Há anos, o documentarista Andrea Segres trabalha com as questões dos imigrantes e refugiados e, por muitas vezes, ouviu histórias repetidas sobre o sonho de fugir da pobreza, da guerra e buscar uma vida melhor.

Quando o traficante encheu sua camionete com 32 pessoas, incluindo Yimer e os outros etíopes, começou para eles o percurso no deserto. O espaço no carro era pequeno e nenhum dos passageiros podia se mexer. Ninguém conseguia fazer com que o motorista parasse porque estava se sentindo mal, quisesse comer ou precisasse ir ao banheiro. A condição das “estradas” no Saara fazia com que o carro balançasse muito, sendo difícil manter o equilíbrio, principalmente porque viajavam com mais do que o dobro da capacidade ideal da Ranger. Muitas pessoas caiam durante o caminho e os passageiros imploravam a tal ponto que o motorista se via obrigado a parar para que pudessem subir novamente.

Faltando 154 quilômetros para chegarem a cidade de Bengasi, o carro parou e o traficante disse que não poderia prosseguir a viagem. Ele os deixaria nas mãos dos policiais que faziam a ronda na cidade de Agedabia. Seria a primeira extorsão oficial dos líbios. Todos ficaram muito assustados e o terror tomou conta do grupo. Apesar de serem uma autoridade local e terem sido designados para bloquear a imigração no pais, os policiais também trabalham com o tráfico de imigrantes. Quando passaram às mãos dos novos intermediários, os jovens refugiados ficaram sabendo que deveriam pagar mais US$ 300 se quisessem prosseguir com a viagem. “A primeira coisa que fiz foi dizer que não tinha esse dinheiro porque comecei a entender que se pagasse sempre eu não chegaria nunca”, lembra revoltado Yimer.

Em Agedabia, passadas algumas horas de negociação pouco cordial com os policiais, o acordo foi que cada um pagaria US$ 100 e todos seriam levados para Bengasi. Sorte ou não, na mesma noite foi mandado um táxi até o local que conduziu todos à costa líbia. Os intermediários não disseram mais nada e o taxista não falou para onde estavam indo. Antes de chegar ao destino final, o motorista deu algumas voltas em torno da cidade, para que os imigrantes não percebessem qual o caminho que haviam percorrido. Mais tarde, descobririam que estavam tão perto de Bengasi, que a viagem de táxi até ali custa normalmente dez dinares ou oito dólares.

O taxista os deixou em uma pensão já conhecida pelos traficantes em Bengasi. Naquela semana estavam lá muitos eritreus, à espera de uma oportunidade para chegar à Trípoli e de lá a Lampedusa, na Europa. Durante uma semana, os jovens etíopes se instalaram no local, pagando US$ 2 por noite para dormirem no chão, enquanto esperavam a vinda de outros intermediários. Depois de sete dias foram para a casa do novo contrabandista responsável por eles.

Yimer pediu a seu pai e irmãos que lhes mandassem os US$ 300 exigidos pelo novo intermediário, para ser levado de Bengasi até Trípoli. A transferência é feita em nome dos contrabandistas. A única segurança oferecida é um código passado ao imigrante para que o dinheiro possa ser retirado. A senha chegou um dia depois que o depósito foi efetuado. Durante a noite os imigrantes passaram ao líbio os números que davam acesso aos dólares vindos da Etiópia. Antes do amanhecer a polícia fez uma blitz na casa onde estavam hospedados e levou todos os jovens presos.

A polícia líbia começou a reforçar o controle da imigração a partir do ano 2000. Centenas de africanos foram presos e, desde aquele ano, a Itália começou a patrocinar oficialmente, através de acordos de cooperação, a vigilância nas fronteiras do país. Apesar da represália contra os estrangeiros, a história líbia deixa claro como a presença de imigrantes vem desde a década de 60 e teve um papel importante no seu desenvolvimento econômico. As polícias imigratórias da União Europeia também interferiram na segurança e bloqueio das rotas. Marrocos, Tunísia e Líbia receberam recursos de países europeus para intensificarem a vigilância de suas fronteiras.

Yimer foi preso pela polícia de Bengasi em casa e, revoltado, conta que “foram pessoas comuns que nos impediram de fugir. Eles passavam rasteiras na gente só porque éramos estrangeiros. Os motoristas abriam as portas dos carros para trancar nosso caminho. Umas senhoras colocaram todo tipo de objeto para dificultar nossa passagem. Eram nossos vizinhos. Foi pior do que ver a polícia nos caçando.”

A experiência dos cárceres líbios é para os refugiados um dos maiores traumas da viagem. Muitos não conseguem exprimir em palavras a experiência, outros contam o que se passou em flashes, é difícil reviver mentalmente aqueles momentos. Yimer tentou ser prático ao narrar esta etapa da viagem, mas assim como quase todos os imigrantes, não conseguiu. A primeira lembrança foi de que, apesar de tudo, teve sorte na prisão de Bengasi. Por lá passou apenas uma noite. Logo em seguida, o olhar do etíope fixou-se sob um ponto longínquo e tocando em algo que deixou marcas profundas disse que do presídio de Bengasi foi levado dentro de um container para o cárcere de Kufra, no meio do deserto. Ele dividiu a viagem sufocante de retorno ao Saara com Adam, um menino de apenas quatro anos.

Antes de partir para o deserto, Yimer pediu para pegar seus pertences e a resposta dos policiais foi violenta. O jovem foi espancado. Ninguém poderia levar uma peça de roupa além daquela que estava usando. Sapatos também eram vetados. Os prisioneiros deveriam ficar descalços, porque uma das torturas praticadas é fazer com que o detento permaneça de pé, durante as horas mais quentes do dia, sobre as areias escaldantes do Saara.

Quando foram presos na casa do traficante, ninguém explicou aos imigrantes o que estava acontecendo. Eles não sabiam para onde estavam sendo levados e nem por quanto tempo ficariam detidos. Nos cárceres líbios, quando a quantidade de presos atinge um determinado número estipulado pelas autoridades, os imigrantes são mandados para as prisões situadas no Saara. Esta é uma medida para esvaziar as prisões e contribui também com o trabalho dos contrabandistas e policiais, uma vez que o ciclo da viagem recomeçaria e os imigrantes deveriam pagar novamente pela travessia do deserto. Em Bengasi o número limite de detentos era de 110. Quando os etíopes foram capturados, o cárcere já contava com outros 100 presos, isso explica porque Yimer ficou apenas uma noite na prisão.

Na manhã seguinte, os detentos foram enfileirados e obrigados a entrar no container. Quando olharam, os jovens não acreditaram. Como percorreriam o deserto totalmente fechados, enclausurados, por mais de 20 horas? O meio de transporte com que dessa vez atravessariam o Saara era muito pior que os caminhões dos traficantes. Yimer não consegue disfarçar o terror quando relembra das horas dentro do container. Eles não sabiam, mas seriam levados para o centro de detenção de Kufra, na fronteira da Líbia com o Sudão. Todo o caminho e as dificuldades enfrentadas até ali foram em vão. O dinheiro gasto na viagem até a costa líbia tinha sido jogado fora, porque agora estavam mais uma vez distantes do Mediterrâneo. Por um dia e meio, ficaram trancados sem comida nem água, viajando pelo deserto. Yimer conta que pior do que a fome, era o barulho enlouquecedor do choque entre os ferros do caminhão e as areias do Saara. “O calor e aquele zumbido constante davam a impressão de que já havia enlouquecido, já não era mais um ser humano”. Tudo isso, somada a falta de circulação de ar, fez com que quase todos os passageiros ficassem inconscientes por alguns períodos. Na mesma situação de Yimer estavam nove mulheres e Adam, o menino de 4 anos. “Por que a brutalidade de prender aquela criança? Que mal uma mulher com seu filho fez para a sociedade? Eu, quando olhava para Adam, não me lamentava de nada, seria egoísta demais. Não vou esquecer nunca os olhos daquele menino. Ele nem sabia para onde a mãe o estava levando, imagina o que vai pensar quando crescer?”

Os momentos de maior tensão eram quando o motorista muçulmano parava para fazer suas orações. O caminhão era deixado sob o sol, fazendo com que o calor e a falta de ar aumentassem. Todos se agitavam dentro do container e a primeira coisa que faziam era levar a criança do grupo o mais próximo possível de um pequeno buraco nas portas. Conforme o tempo passava, a situação piorava, porque alguns levantavam e aqueles que estavam no fundo do furgão começavam a gritar. O ar não chegava mais até eles.

No cárcere de Kufra, em pleno deserto do Saara, poderiam comer apenas uma vez por dia, geralmente um punhado de arroz para ser dividido entre três ou quatro detentos. O sistema de distribuição de água para os prisioneiros era feito em barris, que chegavam às celas através de mangueiras. Para Yimer era só mais uma das humilhações que sofriam. O banheiro ficava no meio da cela e não havia privacidade ou papel higiênico. Apesar disso, os presos tentaram se organizar. Cortaram uma garrafa de plástico ao meio e, em uma das partes, separavam a água para o asseio, a outra serviria como copo para beber a água das mangueiras. O refugiado contou que prefere nem imaginar quantas vezes teriam trocado as duas partes e, bebido água num copo que minutos antes poderia ter sido usado para a higiene de algum outro prisioneiro. Os imigrantes sentiam que a vontade dos militares era que eles se convencessem de que não mereciam ser tratados como seres humanos. Como não havia janelas nas celas, todos procuravam manter-se a maior parte do tempo em pé, próximos das saídas de ar. A sujeira também fazia com que ninguém quisesse se deitar no chão para descansar. Os imigrantes se encostavam pelas paredes e adormeciam como dava. A temporada de Kufra durou apenas uma semana para Yimer. Aquele era o período de comemorações pelo aniversário do líder do país, coronel Khadafi. Nas cidades pelas quais a comitiva de festa passaria não deveria haver vestígio da existência de imigrantes: todos deveriam ser presos. Com blitz policial nas casas, comércios e fábricas, rapidamente todos os cárceres estavam cheios, inclusive o de Kufra. Era também o momento em que os militares ganhavam algum dinheiro com os estrangeiros.

No final daquela semana, os policiais colocaram os prisioneiros em fila e os deixaram em exposição para os contrabandistas. Todos foram vendidos. “Os traficantes chegaram, contaram quantos éramos e ofereceram 30 dinares (18 euros) por cada um. Somos mercadorias, somos o lucro dos militares. Por isso toda essa coisa de nos levar para a cadeia e nos trazer de volta para o deserto”, concluiu Yimer. Os policiais mandaram todos de volta para celas e, durante a noite, carregaram as camionetes com os prisioneiros. A estratégia era fingir que aquela era uma missão de deportação. Ao invés disso, quando saíram da cidade os estrangeiros foram abandonados em algum ponto do deserto pré-estabelecido com o traficante.

O novo proprietário dos imigrantes chegou após algumas horas e esclareceu a situação: quem quisesse tentar novamente a viagem para a costa, em Trípoli ou Bengasi, deveria pagar US$ 300. Aos que não concordassem seriam necessários, no mínimo, US$ 50 para que fossem liberados. “Somos vendidos como escravos. É tudo um jogo, uma armadilha, porque você não pode voltar para trás, já que estamos no deserto e ninguém te levaria embora. Mesmo para os que escolhem voltar para casa, ninguém lhes dá essa oportunidade”, denuncia Yimer.

Havia quem tivesse enfrentado esse ciclo até por sete vezes: foram vendidos, pagaram a viagem, foram presos, devolvidos para o deserto em Kufra, vendidos novamente. Muitos refugiados contam que foram comprados por contrabandistas que os traíram outras vezes e se recusavam a viajar com eles. Quando isso acontecia, tinham que pagar o mínimo de US$ 50 para ganharem a liberdade. Yimer não foi enganado e chegou a Trípoli depois de alguns dias. Uma vez desembarcado na costa mediterrânea, o jovem e os poucos companheiros que ainda restaram do seu grupo procuraram o mais rápido possível embarcar para Lampedusa, a ilha italiana situada no outro lado do Mediterrâneo.

Quando os imigrantes entram em Trípoli a peregrinação até a Europa começa a se transformar numa sensação de euforia, de quem está quase chegando. O último desafio seria enfrentar o mar, depois disso já estariam em solo europeu. Atualmente, o mesmo Mediterrâneo vê conectadas suas duas pontas por um gasoduto que percorre, nas profundezas, o mesmo caminho que os barcos clandestinos. Tanto o gás e o petróleo, como os imigrantes, serviram de moeda de troca nas relações de Khadafi com os países europeus. A primeira assinatura do contrato de cooperação no combate ao terrorismo, tráfico de drogas e imigração ilegal da Líbia com a Itália foi em 2000 e levou Khadafi a romper relações com seu vizinho Sudão e fechar militarmente as fronteiras dos dois países, situadas no Saara. Dali em diante, os sudaneses que sempre procuraram trabalho temporário do outro lado do deserto teriam que se sujeitar aos postos de controle de imigrantes. A rota dos imigrantes subsaarianos passou a ser controlada e manipulada pelos homens de Khadafi. Em troca, foi iniciada a campanha italiana para que o embargo da ONU contra a Líbia chegasse ao fim. O que de fato aconteceu em 2004, as últimas sanções ao comércio e às relações diplomáticas com a Líbia caíram naquele ano. Entre outubro de 2004 a março de 2005, mais de 1500 imigrantes foram expulsos da Itália para os centros de detenção na Líbia.

Das pessoas que partem da Líbia e da Tunísia em direção à Sicília, 12% não chegam à Europa. Algumas caem no mar, outras são jogadas, há aquelas que morrem de fome e sede perdidas na rota pelo Mediterrâneo. Ao voltar para Trípoli a única coisa que Yimer buscava era fugir dali o quanto antes. O jovem ligou pedindo US$ 1.300 a seu pai para pagar o contrabandista que organizaria o embarque para Lampedusa. Foram 30 dias à espera.

Após os acordos assinados entre a Itália e a Tunísia para o controle da imigração ilegal, a rota do Mediterrâneo foi transferida para a Líbia e ali o tráfico de imigrantes ganhou traços de uma grande empresa. O número de passageiros por embarcações aumentou, uma vez que os contrabandistas contam com a proteção dos policiais e não precisam disfarçar a saída. Os intermediários procuram reunir o máximo de pessoas por viagem para ganharem mais, com os mesmos custos. As travessias podem ser feitas até por 300 imigrantes. Os barcos, porém, continuam sendo os mesmos que saiam das praias de Sfax, na Tunísia. A cidade é a segunda mais importante do país e tem sua economia baseada na pesca e na produção e exportação de óleo de oliva. Nos últimos anos os pescadores encontraram mais uma forma de sustento: os barcos e canoas fora de uso, por não estarem em condições seguras para enfrentar o mar, são vendidos aos traficantes líbios. Além disso, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, instituiu a obrigatoriedade das guardas costeiras prestarem socorro a qualquer vida em perigo nas águas territoriais. Os contrabandistas, sabendo disso, passaram a lançar em alto-mar embarcações sem condições de completar a viagem.

Enquanto os etíopes viajavam, a Caritas relatou que pelo menos 677 corpos estariam dispersos no fundo das águas mediterrâneas. Quando aparece ao longe, a ilha siciliana emociona os imigrantes. É para muitos o mito que perseguiram nos últimos meses. Desde que saíram de seus países, atravessaram o deserto e enfrentaram a Líbia, Lampedusa era vislumbrada como a única esperança. “Alguns morreram, outros se perderam pelo caminho, mas nós estávamos ali. Os europeus fazem um jogo maquiavélico com os imigrantes. A impressão que eu tenho é como se tudo fosse um teste para que na Europa entrem apenas os mais fortes, aqueles que conseguiram ultrapassar todas as fases”, conclui Yimer.

A situação na Líbia após a derrocada e o assassinato de Khadafi é ainda mais instável e os imigrantes continuam a mercê de contrabandistas e traficantes, agora não apenas do governo, mas também da oposição. O Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) estima que no final de 2014 eram cerca de 59,5 milhões o número de deslocados à força – desse total, 86% estão abrigados em países pobres e menos de 4% na Europa Ocidental. Da guerra civil na Síria, por exemplo, a Acnur aponta que antes de chegarem na Europa a maioria dos refugiados passa meses ou anos nos campos da Turquia ou do Líbano, ambos em situações cada vez mais difíceis. Ambos servindo de moeda de negociação política. Enquanto os países desenvolvidos ainda bloqueiam a chegada dos imigrantes e a política comum de acolhimento e gestão do fenômeno reflete em policiais atirando em crianças nas fronteiras, a violência para selecionar os refugiados que conseguirão passar por essas barreiras e conseguir o status humanitário na Europa é cada vez maior, com ou sem a demagogia xenófoba de cada país.

Este texto é uma versão modificada de trabalho publicado originalmente no livro Entrada proibida: uma história do combate à imigração africana na Itália. Rio de Janeiro: Multifoco, 2011.

31 de outubro de 2015

A criminalização do pensamento crítico

Luis Felipe Miguel

                                                                      Imagem: Serban Savu
Entre as múltiplas ameaças de retrocesso que surgem do Congresso Nacional hoje, uma das mais graves é a voltada à educação. O espantalho da “doutrinação” dos alunos por professores esquerdistas é um pretexto para a criminalização do pensamento crítico em sala de aula, frustrando o objetivo pedagógico de produzir cidadãos e cidadãs capazes de reflexão autônoma, respeitosos das diferenças, acostumados ao debate e à dissensão, conscientes de seu papel, individual e coletivo, na reprodução e na transformação do mundo social. Em seu lugar, voltamos à ultrapassada compreensão de uma educação limitada à transmissão de “conteúdos” factuais, dos quais o professor é um mero repetidor e o aluno, receptáculo passivo. O slogan vazio da “escola sem partido” busca passar a ideia de que o ensino acrítico é “neutro”, quando, na verdade, ao naturalizar o mundo existente e inibir a discussão sobre suas contradições internas, é um mecanismo poderoso de reprodução do status quo.

São diversos projetos em tramitação no Congresso, que partem do veredito comum de que haveria um esforço de doutrinamento em curso, seja pelo PT, seja pela esquerda de modo geral, que faria com que as escolas tivessem se tornado centros de difusão do socialismo e/ou do feminismo. É uma reação ao arejamento – na verdade, ainda muito insuficiente – das práticas pedagógicas; uma reação que não vem de hoje, mas que se intensificou com a ofensiva diretista dos últimos anos. Alguns talvez se lembrem que, nos anos finais da ditadura militar, pré-escolas alternativas eram acusadas de adotar cartilhas marxistas. É o mesmo tipo de paranoia, mas agora vendo o pretenso doutrinamento como política de Estado, que está por trás das fantasias do movimento Escola Sem Partido, do repúdio a Paulo Freire nas manifestações públicas da direita ou da reação histérica à recente prova do ENEM.

Cada vez que a escola se desloca, por pouco que seja, de seu papel tradicional de aparelho ideológico reprodutor da ordem social, erguem-se as bandeiras de “doutrinamento”. A manobra argumentativa é evidente. A reprodução transita como “não ideológica” porque a ordem social vigente é naturalizada. É como se ela não fosse o fruto de processos históricos, de conflitos sociais com ganhadores e perdedores, mas um dado da realidade que existe por si só. A “neutralidade” do discurso que não questiona o porquê do mundo social ser como é, nem indica que essa ordenação não é uma necessidade, é falsa: ele é um elemento ativo de perpetuação, uma maneira de bloquear as potencialidade de mudança presentes do mundo em que vivemos.

Na atual ofensiva da direita brasileira, há dois alvos simultâneos. Permanece o ódio ao marxismo e, de modo mais geral, a qualquer forma de questionamento à desigualdade de classe. É sustentado por uma leitura delirante da teoria de Gramsci, difundida pelo astrólogo Olavo de Carvalho, em que a ideia de uma luta pela produção de sentido no mundo social é transformada num plano diabólico de lavagem cerebral em massa.

Mas há uma grande ênfase também na denúncia contra qualquer tentativa de desnaturalizar os papéis estereotipados atribuídos a mulheres e homens. É a “ideologia de gênero”, termo que foi cunhado pelos setores conservadores da Igreja Católica, mas adotado também por denominações protestantes, e colocada em curso em vários países do mundo, entre eles o Brasil, como forma de organizar a oposição aos avanços – mais lentos do que gostaríamos, mas inquestionáveis – na direção de maior igualdade entre os sexos e maior respeito a gays e lésbicas. Ao afirmar que “ideológica” é a luta contra a discriminação de gênero, fica implícito que a desigualdade e a intolerância seriam naturais.

O rótulo “ideologia de gênero” foi rapidamente incorporado à linguagem destes grupos. Sintético, ele permite que se descarte, sem discussão, tudo aquilo que já se sabe sobre a produção social do feminino e do masculino. Quando militantes conservadores reagem à frase de Simone de Beauvoir incluída na prova do ENEM escrevendo coisas como “eu nasci mulher sim, nasci com vagina”, como se viu nas redes sociais, revelam, mais do que apenas uma ignorância brutal e constrangedora, uma impermeabilidade deliberada a qualquer discussão sobre o tema.
Ao lado da ameaça que a emancipação feminina e a conquista dos direitos de gays e lésbicas de fato representa aos privilégios de homens e de heterossexuais, e ao lado também do fundamentalismo religioso de alguns, há no destaque dado à “ideologia de gênero” uma demonstração de oportunismo político. Como afirmei em outro lugar, hoje a homofobia é o ópio do povo

Deslocando o eixo do conflito para as questões “morais” (que, na verdade, são questões de direitos individuais), a direita se põe em sintonia com uma parcela do eleitorado que, sobretudo a partir das políticas compensatórias do governo Lula, se movimentava na direção de seus adversários. Também por isso, para as forças da esquerda a luta pela igualdade de gênero e contra a homofobia não pode ser considerada uma pauta secundária.

Entre os projetos em tramitação no Congresso, vários têm o fantasma da “ideologia de gênero” como alvo. O PL 7180/2014 e o PL 7181/2014, ambos de autoria de Erivelton Satana (PSC/BA), determinam a mesma coisa: que “os valores de ordem familiar [têm] precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas”. O primeiro projeto visa instituir esta regra na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o outro, redundantemente, quer torná-la obrigatória nos parâmetros curriculares (que já devem obedecer à LBDE).

A intocabilidade da família, como sujeito coletivo com direitos próprios, irredutíveis aos de seus integrantes, é o que fundamenta tal proposta. Muitas vezes, mesmo os grupos mais progressistas têm receio de discutir o status atribuído à unidade familiar, preferindo deslocar a luta para a necessidade de pluralizar o entendimento do que é família. Claro que que é importante dar a todos que o queiram a possibilidade de buscar formar famílias, no formato que desejem, mas ainda precisamos dessacralizar a “família”. A família é também um lugar de opressão e de violência. A defesa de uma concepção plural de família não pode colocar em segundo plano a ideia de que, em primeiro lugar, estão os direitos individuais dos seus integrantes. E entre estes direitos está o de ter acesso a uma pluralidade de visões de mundo, a fim de ampliar a possibilidade de produção autônoma de suas próprias ideias.

As propostas do deputado baiano impedem a educação sexual e o combate ao preconceito e à intolerância nas escolas, sob o argumento de preservar a soberania da família na formação “moral” dos mais novos. Com isso, retiram da escola a possibilidade de contribuir para disseminar os valores de igualdade e de respeito à diferença, que são cruciais para uma sociedade democrática. E retiram dos jovens o direito de ter acesso a informações que são necessárias para que eles possam refletir sobre sua própria posição nesse mundo e avançar de maneira segura para a vida adulta.

Ainda mais bisonho, o PL 1859/2015, de autoria de Izalci Lucas (PSDB/DF), Givaldo Carimbão (PROS/AL) e outros, propõe que a LDBE inclua dispositivo que proíba as escolas de apresentar conteúdo “que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”. A política linguística destes deputados incorpora ao vocabulário legislativo o termo “ideologia de gênero”, inventado recentemente pela direita fundamentalista, e veta do vocabulário escolar os termos “gênero” e “orientação sexual”, impedindo assim que vastos setores do conhecimento produzido na sociologia e na psicologia cheguem ao ensino. O objetivo é evitar qualquer questionamento da percepção naturalizada dos papéis sexuais. É por isso que, quase 70 anos depois, Simone de Beauvoir ainda causa arrepios.

Na mesma linha, o PL 2731/2015, de Eros Biondini (PTB/MG), quer incluir, no Plano Nacional de Educação, uma proibição à “utilização de qualquer tipo de ideologia na educação nacional, em especial o uso da ideologia de gênero, orientação sexual, identidade de gênero e seus derivados, sob qualquer pretexto”. Para além do absurdo do texto (uma “ideologia” é “utilizada” na “educação nacional”?), o PL é significativo pelas punições previstas. O profissional de educação que descumprir a norma, isto é, que tematizar a desigualdade de gênero ou a homofobia, perderá o cargo e estará sujeito às punições previstas, no Estatuto da Criança e do Adolescente, àqueles que submetem “criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento ilegal”, isto é, seis meses a dois anos de prisão.

O projeto mais ambicioso, porém, é o PL 867/2015, novamente de Izalci Lucas, que é representante da ala do PSDB mais despreparada intelectualmente e retrógrada politicamente. Seu objetivo é incluir, nas diretrizes e bases da educação nacional, um programa intitulado “Escola sem Partido”. De fato, o deputado simplesmente apõe seu nome à iniciativa do “movimento” de mesmo nome. Assim, a educação deve ser baseada na “neutralidade política” e a escola não pode desenvolver nenhuma atividade que possa “estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”. Embora escolas confessionais privadas possam exercer seu proselitismo, desde que contem com a anuência dos pais. O artigo 5º prevê que serão afixados cartazes nas escolas para que os estudantes saibam que podem denunciar seus professores. O programa se aplica ao material didático e a todos os níveis de ensino, incluindo o superior.

Os dois pilares são, portanto, a soberania da família, que se sobrepõe ao direito do estudante de obter elementos para produzir de forma autônoma sua visão de mundo, e uma ideia de “neutralidade” que se baseia na ficção de um conhecimento que não é situado socialmente. Um relato da história do Brasil ou do mundo que se limite a nomes ou datas, como no ensino do regime militar, pode parecer “neutro”, por não assumir expressamente juízos de valor. Mas, ao negar ao aluno as condições de situar os processos históricos e de compreender os interesses em conflito, cumpre um inegável papel conservador.

Se a “neutralidade” não existe, uma vez que toda produção de conhecimento parte de um lugar social específico, qual é o contrário da doutrinação? É o pensamento crítico, aquele que permite que os estudantes sejam não objetos, mas sujeitos da aprendizagem, refletindo sobre os conteúdos e construindo suas próprias percepções, no diálogo com professores e colegas. É esse pensamento crítico que assusta os promotores da “Escola sem Partido”. Seu discurso ensaiado não disfarça o fato de que são eles que desejam uma escola doutrinária, que imponha aos estudantes um pensamento fechado – o conformismo – e os impeça de pensar com as próprias cabeças e, pensando, quem sabe inventar um mundo novo.


Este texto foi publicado originalmente no blog da Boitempo