26 de maio de 2021

NOTA DOS EDITORES DA REVISTA ESTUDOS DE LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

 

A revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, comunica que está encerrando definitivamente suas atividades devido à falta de financiamento. Em circulação desde 1999, foram publicados 62 números até este ano, sem interrupções nem atrasos. A revista é qualificada como A1 na avaliação da Capes e indexada no Scielo, Scopus, Redalyc e em inúmeros outros indexadores nacionais e internacionais, sendo reconhecida pelos pesquisadores da área, no Brasil e no exterior. Sempre foi editada com recursos insuficientes, contando com a colaboração gratuita de professores e estudantes, que roubavam tempo de seu descanso para produzi-la, por acreditarem em um projeto de reflexão crítica e plural sobre a literatura e o campo literário brasileiros atuais.

Com o desaparecimento dos editais de apoio a publicações no Brasil e sem suporte institucional (ainda que a Estudos tenha sido um dos únicos três periódicos da UnB a receber nota máxima na última rodada de avaliação da Capes), não há como dar continuidade ao trabalho. Esta é uma das consequências do desmonte da educação pública e da pesquisa no país, especialmente na área de Humanas. Os reflexos do fechamento de uma revista desse porte para os programas de pós-graduação em literatura são grandes. Só no último ano, a revista publicou 50 textos, de pesquisadores ligados às mais diferentes instituições brasileiras e também do exterior.

A inviabilização de uma revista como a Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, que comunga dos ideais da ciência aberta, não é uma situação isolada. Em nome da “sustentabilidade”, há uma pressão imensa para que os periódicos acadêmicos cobrem dos autores a publicação de seus artigos. Caso contrário, na ausência de outras formas de apoio, teriam que repassar os custos aos leitores. Existem revistas estrangeiras cobrando o equivalente a R$ 15.000,00 ou até mais para um brasileiro publicar seu texto; revistas nacionais que já se submeteram à ideia cobram valores também na casa dos milhares de reais. Uma vez que a publicação em periódicos acadêmicos, além de garantir a circulação do conhecimento, é importante para a formação do currículo do pesquisador e para a qualificação dos programas de pós-graduação, cabe perguntar: quem pagará por isso?

Certamente não serão os pesquisadores sem dinheiro ou as instituições mais periféricas. Recursos de universidades públicas, que poderiam ser utilizados para financiar as revistas brasileiras, já estão sendo empregados para pagar editoras acadêmicas comerciais que, na outra ponta, cobram valores exorbitantes para que as bibliotecas universitárias possam disponibilizá-las a seus professores e alunos (comprometendo o orçamento das bibliotecas e, portanto, a atualização dos acervos de livros). Trata-se de um negócio muito lucrativo. Não por acaso, nos últimos anos a Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea recebeu – e rechaçou, evidentemente – várias propostas de venda de sua “marca” para editoras predatórias.

Diante desse quadro, decidimos que não podemos nos impor mais sacrifícios para continuar a editar a revista – um trabalho que não “dá pontos” no currículo, não conta na carga horária, não é remunerado e não recebe praticamente nenhum apoio ou mesmo reconhecimento. Juntaremos nossas forças para resistir em outras frentes, em defesa da democracia, da justiça social, da ciência e da educação pública. Agradecemos enormemente a colaboração de centenas, talvez milhares de colegas pesquisadores nesses mais de 20 anos, que nos enviaram artigos, deram pareceres, ajudaram na divulgação da revista. Foi um lindo trabalho coletivo.

 

Brasília, 26 de maio de 2021.

 

 

Regina Dalcastagnè, Universidade de Brasília (editora-chefe)

Patrícia Trindade Nakagome, Universidade de Brasília (editora científica)

Laeticia Jensen Eble, Universidade de Brasília (editora-executiva)

Leocádia Aparecida Chaves (secretária executiva)

Paula Queiroz Dutra, Instituto Federal de Brasília (editora da seção temática)

Paulo César Thomaz, Universidade de Brasília (editor da seção temática)

Sandra Assunção, Université Paris Nanterre (editora da seção temática)

Anderson da Mata, Universidade de Brasília (editor da seção de tema livre)

Igor Ximenes Graciano, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (editor da seção de tema livre)

Leila Lehnen, Brown University (editora da seção de tema livre)

Milton Collonetti, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (editor da seção de resenhas)

Edma Cristina Alencar de Góis, Universidade do Estado da Bahia (editora da seção de resenhas)

13 de maio de 2021

Pela liberdade e igualdade negras

                                                                                                     Maria Clara Machado


Fotografia de Carolina Maria de Jesus

 

No capítulo “Negros”, do livro Diário de Bitita, de Carolina Maria de Jesus, a protagonista conta, entre outras coisas, a história de seu avô, que tinha sido escravo: “O meu avô era um vulto que saía da senzala alquebrado e desiludido, reconhecendo que havia trabalhado para enriquecer seu sinhô português” (1986: 60).  O trabalho escravo a que gerações de pessoas negras foram submetidas durante três séculos no Brasil não fez jus a qualquer reparação aos ex-cativos quando de sua libertação. Ao contrário, a Lei que aboliu a escravidão há apenas 133 anos, a 13 de maio de 1888, instituiu simplesmente: “É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil”, sem qualquer previsão de medida de inserção socioeconômica para a população de escravizados liberta. Cada um que seguisse seu caminho, um percurso que começara no século XVI, quando os primeiros africanos escravizados foram traficados para o Brasil.

Quando a abolição finalmente foi proclamada, um domingo, a capital do Império, o Rio de Janeiro, entrou em festa. “Todos respiravam felicidade, tudo era delírio”, relatou Machado de Assis (1893) alguns anos depois em crônica publicada na Gazeta de Notícias.  Mais jovem que Machado, Lima Barreto, nascido no mesmo 13 de maio, mas sete anos antes da abolição, lembrou na crônica “Maio” o clima de festa e liberdade que experimentou quando criança:

Em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura no largo do Paço [...] Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço, vivas... Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente festa e harmonia (BARRETO, 4/5/1911).

As comemorações na capital e em outras cidades uniram em festa conhecidas figuras da época e toda a gente, entre os quais, muitas pessoas negras que sustentaram na carne o regime escravista. Após os festejos, no entanto, muitos continuaram trabalhando para os antigos proprietários como conta Helena Morley em seu diário escrito entre 1893 e 1894:

Na chácara, moram ainda muitos negros e negras do tempo do cativeiro, que foram escravos e não quiseram sair com a Lei de 13 de maio. Vovó sustenta todos... As negras, as que não bebem, são muito boas e para terem seus cobres fazem pasteis de angu, sonhos e acarajés para as festas de igreja e para a porta do teatro (MORLEY, 1998: 52) .

O governo Republicano, proclamado no país um ano após a abolição, adotara carta constitucional em 1891 que aparentemente ampliava direitos, como o acesso ao voto. No entanto, a CF impedia o mesmo exercício a mendigos e analfabetos que até 1881 podiam votar; assim como determinava que o acesso aos cargos públicos deveria se dar por mérito, mas, novamente, sem prever meios de acesso à educação formal à imensa população negra. Os avanços, portanto, não ultrapassaram a letra constitucional. Em verdade, buscou-se criar, na certeira interpretação de Luís Felipe de Alencastro (2010), “um ferrolho que barrasse o acesso do corpo eleitoral à maioria dos libertos”, numa situação de “infracidadania”, só alterada em 1985.

A extrema miséria, a falta de assistência à saúde e o mínimo acesso à educação formal, se não impediam por completo, dificultavam que negras e negros se libertassem de fato de todas as consequências do regime da escravidão recém-abolida. Quatro décadas mais tarde, Carolina Maria de Jesus revisita as consequências do pós-abolição. Neta de escravos, a protagonista Bitita relata sua experiência no interior de Minas Gerais: “Nas fazendas não havia escolas, havia enxadas em abundância” (1986: 112).

Se pensarmos nos três séculos de escravidão antes de a abolição ser proclamada no Brasil, e consideramos que a independência de Portugal ocorrera em 1822, sem colocar fim ao sistema de exploração escrava – que só ocorreria em 1888 –, concluímos que a liberdade e a igualdade que se buscavam era apenas para os brasileiros brancos de posses, como ficou institucionalizado com o texto constitucional de 1824. Os escravizados permaneceram sem qualquer direito civil estabelecido e eram tidos como objetos de direito, embora tivessem deveres. De modo que os pretos pareciam não fazer parte do mesmo país que os brancos, conforme diz a protagonista Kehinde, em Um defeito de cor, ao narrar o dia da independência:

Em uma manhã de primavera, e de setembro, primeiro chegou o barulho de rojões e de tiros de canhão, e depois a notícia de que o Brasil estava livre de Portugal... O sinhô José Carlos mandou também que o Cippriano explicasse que nada tinha mudado para os escravos, que os pretos não eram um país. (GONÇALVES, 2019: 164)

Assim como a independência do Brasil não ensejou a emancipação dos escravizados, também a independência norte-americana em 1776 só levara inicialmente à abolição da escravidão em algumas das colônias do Norte. No caso da Revolução Francesa, os revoltosos não somaram a suas demandas os direitos das populações negras e mestiças escravizadas nas colônias, sequer incluindo em sua Declaração os diretos das mulheres francesas, como denunciado por Olympe de Gouges (1791) . Observar essas realidades torna mais fácil compreender que as revoluções liberais europeias, bem como os ideais iluministas que as inspiraram, não implicavam necessariamente em rupturas estruturais do sistema de produção da época, mantido pela escravidão de africanos negros não só no Brasil, mas na maior parte das Américas e do Caribe, regiões invadidas e dominadas por ingleses, franceses, espanhois e portugueses.

Nesse contexto, a universalidade dos ideais revolucionários de inspiração iluminista só foi largamente posta em questão pela luta por liberdade de mulheres e homens escravizados no Caribe e na América Latina, sobretudo em função de uma revolução que levaria à independência da colônia francesa de São Domingos. O autoproclamado Haiti se tornou, em 1804, a primeira nação livre da escravidão, do tráfico e do jugo colonial por ação de negras e negros. Entre as figuras revolucionárias, Toussaint Louverture emergiu como líder negro que finalmente derrotara as até então imbatíveis tropas napoleônicas que fizeram tremer a Europa.

Essa revolução de tamanha importância, no entanto, ainda que tenha influenciado em certa medida as literaturas em línguas francesa e inglesa, não chegou a povoar com força a literatura brasileira em formação. É verdade que, segundo o crítico Sydney Chalhoub (2018), a literatura brasileira do século XIX foi dominada por obras que criticavam a escravidão, embora tenha sido esse o século que sedimentou a noção de cor como marcador social e que solidificou o “racismo científico” como legitimador do preconceito.

Muitas vezes, na avaliação de Chalhoub, é necessário um trabalho de interpretação para depreender da tessitura superficial do texto camadas mais críticas ao sistema vigente da época. De fato, podemos ler em Machado de Assis, senão a crítica apaixonada contra a escravidão, elogios à emancipação dos escravizados, como no livro Memorial de Aires (1908), em que o protagonista, um diplomata brasileiro aposentado, comemora em seu diário a abolição no 13 de maio:

Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube... Estava na rua do ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral (ASSIS, 1994: 24).

É importante frisar também que, mais tarde, a República brasileira foi proclamada durante o apogeu das teorias raciais que serviram, entre outras coisas, para legitimar mudanças em território nacional que, novamente, privilegiavam e preservavam o poder econômico e político das elites brancas. Assim, ainda que o Brasil tenha passado por avanços importantes ao longo dos séculos, com destaque nos tempos mais recentes para a Lei 12.711, de 2012,  que reserva vagas para estudantes egressos das escolas públicas, a criação da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (em 2011) e da Lei nº 11.645,  de 2008, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afrodescendente e indígena nas escolas, sua história é marcada pelo racismo e pela desigualdade. Nesse percurso do “quem somos nós”, na prática, negras e negros sempre estiveram bem longe de alcançar o exercício de direitos plenos de cidadania, experiência vivida por Bitita que reivindica “um Brasil para os brasileiros”[1], uma posição que clamava por emancipação, liberdade e igualdade efetivas para as populações negras que ainda não goza(va)m dos mesmos direitos que a população branca, excluídos do ideal de nação ao longo da nossa história.

Para além da individualidade da protagonista, o Diário de Bitita expõe, entre outras coisas, as condições das populações negras e reflete sobre elas, evidenciando, por exemplo, o genocídio institucionalizado do negro, denunciado por Abdias Nascimento (1978) em O genocídio do negro brasileiro. Bitita, por sua vez, conta que “já estava [se] habituando com a morte, porque a mortalidade no estado de Minas Gerais é assustadora”. Ela revela ainda a banalização da morte:

O policial deu-lhe voz de prisão; ele era da roça, saiu correndo. O policial deu-lhe um tiro. A bala penetrou dentro do ouvido. O soldado sorria, dizendo: – Que pontaria que eu tenho! Com o pé, ele movia o corpo sem vida [...] Quem é que vai chorar por ele? (JESUS,1986: 95)

Enquanto os números vultosos da violência policial contra as populações negras impedem a identificação empática com cada indivíduo morto e violentado pelo Estado, as narrativas afrodescendentes podem salvar do esquecimento identidades esfaceladas, conferindo ao não dito histórias e reflexões e disputando com o discurso hegemônico da normalização da morte interpretações possíveis, por meio da edificação de existências narrativas que superam e suplantam o silenciamento imposto. Bitita, assim como outras personagens que povoam a literatura das margens e periferias, longe do cânone branco de inspiração europeia, pode nos fornecer perspectivas muito enriquecedoras para compreendermos as formações complexas, desiguais e racistas da nossa sociedade.

As memórias dos negros, indígenas, mulheres, entre outros sujeitos subalternizados, são fonte vigorosa, senão da verdade dos documentos históricos, da construção de alteridades há muito reprimidas que precisam emergir a fim de que possamos repensar os padrões de civilidade, em termos de acesso a direitos, que buscamos para nossos povos. Dentro desse processo de reivindicação de histórias, memórias e heranças, é fundamental reelaborarmos os processos de emancipação dos escravizados, em que as agências de heróis negros, como Toussaint Louverture,  para citar um nome caribenho – finalmente ganhem a medida de importância de seus feitos dentro do passado compartilhado que nos une. Assim como precisamos evocar nesta data a agência de personalidades negras brasileiras importantes para a libertação de escravizadas e escravizados, como a do poeta e advogado Luís Gama, ou dos abolicionistas José do Patrocínio e André Rebouças. Neste 13 de maio, precisamos também ouvir Carolina Maria de Jesus e nos somar a ela, quando registra, no dia 13 de maio de 1958, no Quarto de despejo, que “lutava contra a escravatura atual – a fome!” (JESUS, 2014: 32).

Na esfera da vida privada, assim como Carolina Maria de Jesus lutou contra a fome de seus filhos, as mães escravizadas tiveram papel preponderante na sobrevivência dos filhos durante o regime, o que se configura como forma de resistência e preservação das famílias e comunidades negras (Maria Helena MACHADO, 2019: 334-340). E elas também participaram da luta abolicionista na esfera pública. Ângela Alonso (2011) mapeou 26 associações antiescravistas, sendo 18 exclusivamente femininas, em metade das 20 províncias do Império.

Hoje, 133 anos após a proclamação da abolição, ainda vivemos a criminalização do corpo negro e a reatualização diária do genocídio das populações negras brasileiras. De modo que pensar o heroísmo do povo negro, a agência e a solidariedade negras dentro de seus contextos históricos e de suas possibilidades e limitações nos permite vislumbrar um futuro que se forja na luta e na reelaboração da vida que nega a vida, mas que brota, que insiste, que persiste, que resiste. Essas reelaborações ampliam e atualizam o conhecimento sobre nós mesmos e sobre nossas heranças partilhadas com a América Latina, o Caribe e a África. Nós, afinal, não estamos sós e somos muitas e muitos.

Mas para que essa coletividade emerja, é preciso que uma ampla divulgação de memórias da escravidão e do período pós-abolição atravesse o ensino nas escolas e universidades, inspire uma renovada atuação de sindicatos e associações e se some às disputas nas esferas políticas para a edificação de outros mundos, a fim de celebrarmos duradouramente a liberdade ampla e irrestrita.

 

Referências:

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “O pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira”. Novos Estudos, n. 87, p. 5-11, CEBRAP, São Paulo, 2010.

ALONSO, Ângela. “Associativismo avant la lettre: as sociedades pela abolição da escravidão no Brasil oitocentista”. Dossiê Sociologias, ano 13, n. 28, Rio Grande do Sul, set/dez. 2011, p. 166-199.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Gazeta de Notícias. 14 de maio de 1893.  

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, (1908) 1994.

BARRETO, Lima. Crônicas. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000173.pdf.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. Ática, São Paulo, 2014.

JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. Nova Fronteira, 1986.

MORLEY, Helena. Minha vida de menina, Companhia das Letras, São Paulo, 1998.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1978.

CHALHOUB, Sidney. “Literatura e escravidão”. Dicionário escravidão e liberdade. Companhia das Letras, São Paulo, 2018, p. 298-304.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Record, Rio de Janeiro, 2006.

GOUGES, Olympe de. Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne, 1791.

MACHADO, Maria Helena Toledo Pereira. “Mulher, corpo e maternidade”. Dicionário Escravidão e Liberdade. Companhia das Letras, São Paulo, 2018, p. 334-340.



[1] A autora Carolina Maria de Jesus pretendia inclusive dar o título Um Brasil para os brasileiros aos manuscritos, de cuja edição resultou o Journal de Bitita e a sua versão para o português brasileiro, Diário de Bitita, publicados postumamente.

19 de abril de 2021

Lygia Fagundes Telles e a experiência feminina

 Regina Dalcastagnè


Poucos escritores alcançam a unanimidade, entre público e crítica, de que Lygia Fagundes Telles desfruta. Hábil fabuladora, exímia construtora de personagens e com amplo domínio do estilo, ela é uma narradora completa. Não se furta a utilizar, em seus romances e contos, técnicas narrativas sofisticadas, mas jamais apela para o vanguardismo hermético que aliena o leitor comum. Os traços distintivos da literatura contemporânea – a pluralidade de vozes, a fragmentação e, em especial, a ambiguidade, que a autora maneja com maestria – estão presentes em toda a sua obra. Mas há muito mais ali. Sem tampouco ter cedido ao panfletarismo, Lygia Fagundes Telles sempre mostrou ser uma escritora comprometida com o seu tempo e com o seu país. Esta postura é mais evidente no romance As meninas, lançado em 1973, retrato de uma geração violentada pela ditadura militar e que contém uma denúncia pioneira da prática da tortura política no Brasil. Porém, a sensibilidade para as transformações nas relações de gênero, de geração e familiares, bem como para os mecanismos de exclusão social, é uma constante em sua obra.

O medo, a confusão diante de tantas transformações, as ilusões perdidas, os sonhos que nunca param de se renovar – as personagens de Lygia Fagundes Telles vivem intensamente nossos dramas cotidianos, por pequenos que sejam. Dramas muitas vezes com contexto preciso. Ninguém pode ignorar o autoritarismo dos anos 1970, que dá contorno às existências de Lia, Lorena e Ana Clara, em As meninas, por exemplo; mas as vicissitudes do período e do local específicos em que a trama se situa mesclam-se à experiência do tornar-se adulto, com tudo o que essa passagem implica em termos de escolhas e decisões – o que faz com que o romance mantenha sempre vivo o interesse das novas gerações.

Sejam jovens, como as protagonistas desse romance, de Ciranda de pedra ou de Verão no aquário; crianças, como as dos muitos contos ao longo dessas décadas de produção; mulheres maduras ou já idosas, como a atriz de As horas nuas, ou as do belo A noite escura e mais eu – a condição feminina ocupa um espaço fundamental na obra da autora, o que também é um dos motivos de sua atualidade. Afinal, o último século foi, para as mulheres, um período de transição. Transição entre os papéis tradicionais de mãe e esposa, do passado, e uma nova situação, que ainda não atingimos plenamente, mas pela qual continuamos lutando, de igualdade – quando poderemos realizar nossas vidas das mais diferentes maneiras, sem as pressões e os constrangimentos que tão bem são retratados nos livros da autora.

Isto não quer dizer que a figura masculina não tenha espaço ali. Às vezes, o homem é retratado justamente em sua ausência: o desinteresse em relação aos filhos, a distância, o alcoolismo, até a morte. Quase sempre, ele se mostra confuso diante de mulheres que já não se adaptam tão naturalmente às funções que seriam destinadas a elas. Fica claro que, mesmo quando incorpora as vivências, as angústias e os sonhos dos homens em suas narrativas, a autora fala de uma perspectiva feminina. O que não limita, absolutamente, o alcance de sua obra. Séculos de literatura em que as mulheres permaneciam nas margens nos condicionaram a pensar que a voz dos homens não tem gênero e por isso existiam duas categorias, a “literatura”, sem adjetivos, e a “literatura feminina”, presa a seu gueto. Da mesma forma, aliás, que por vezes parece que apenas os negros têm cor ou somente os gays carregam as marcas de sua orientação sexual. Lygia Fagundes Telles nos ajuda a romper com estes esquemas de pensamento. Sua obra é feminina (porque traz a perspectiva feminina) e é por isso, e não “apesar” disso, que amplia nossa compreensão e nossa sensibilidade para a humanidade como um todo.

Em A noite escura e mais eu, volume de contos publicado em 1995 – na maturidade literária da escritora –, temos quase que uma súmula de sua obra. Entre as nove narrativas que compõem o livro, sete possuem foco narrativo ou a narração em primeira pessoa de mulheres. Nos outros dois, a autora cede voz a um cachorro e a um anão de jardim. Nada a se estranhar para quem já está familiarizado com seu trabalho. Afinal, os animais domésticos e insetos (especialmente gatos e formigas) percorrem seus livros com a desenvoltura de quem está em seu lugar. Às vezes se convertem mesmo em personagens, quando não em protagonistas de algumas narrativas. “Crachá entre os dentes” é sobre um cachorro que vira homem, se apaixona, é abandonado e se transforma em cachorro outra vez, amargando sua solidão.

Também os anões de jardim estão sempre presentes em suas histórias, reaparecendo aqui e ali, como testemunhas inanimadas, observando calados, servindo para compor o cenário, mas também, talvez, para ser a marca da presença de outro olhar, totalmente estranho – o leitor? – dentro do texto. Neste livro, pela primeira vez temos a narração feita pelo anão de pedra. Ele é um pouco como Lorena, de As meninas, gostaria de ser, espectadora distante e fria:

Bom é ficar olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante, as pessoas tão inofensivas na rotina. Comem e não vejo o que comem. Falam e não ouço o que dizem, harmonia total sem barulho e sem braveza. Um pouco que alguém se aproxime e já sente odores. Vozes. Um pouco mais e já nem é espectador, vira testemunha. Se abre o bico para dizer boa-noite passa de testemunha para participante. E não adianta fazer aquela cara de nuvem se diluindo ao largo porque nessa altura já puxaram a nuvem para dentro e a janela-guilhotina fechou rápida. Eram laços frouxos? Viraram tentáculos.

Mas, como ela, nem o anão consegue ser só espectador. Aos poucos, as histórias penetram seu corpo que não sente nem vê. E racham-lhe o peito de pedra.

Já nesses dois contos – o terceiro e o último do livro –, encontramos a tônica do volume inteiro e, na verdade, da obra de Lygia Fagundes Telles como um todo: a ambiguidade. Nunca temos muita certeza do que querem e do que dizem as suas personagens. Muitas vezes nem elas próprias têm certeza de coisa alguma. E se essa ambiguidade aparece como uma consequência natural em alguns discursos, em outros podemos notar que é finamente trabalhada, tomando o centro da cena: como em “Papoulas em feltro negro” ou em “Uma branca sombra pálida”, por exemplo.

As mulheres que habitam esse livro vivem diferentes idades – são meninas, moças, mulheres maduras e velhas senhoras – e diferentes situações, quase sempre conflituosas. A ambiguidade permeia as narrativas, seja pela situação em que essas mulheres se inserem, seja pelo discurso que estabelecem, para si ou para os outros. Em alguns dos textos podemos ficar em dúvida sobre o que aconteceu de fato, mas é possível tirar conclusões, lidar com os nossos preconceitos e valores e obter nossas respostas parciais, como em “Boa noite, Maria”. Mas há ainda aqueles em que qualquer definição desmerece a narrativa, que foi construída exatamente para ser a incógnita que é, como “Dolly” e mesmo “Papoulas em feltro negro”.

Reembaralhando os contos, separando-os de acordo com os objetivos da discussão, podemos organizar alguns blocos. O primeiro já foi visto (inclui as histórias do cachorro e do anão), e está vinculado a toda uma linha de narrativas fantásticas, ao estilo de Edgar Allan Poe, que compõe parte da obra de Lygia Fagundes Telles. O segundo reúne os dois contos que têm como protagonistas e narradoras meninas: “O segredo” e “A rosa verde”. “O segredo” tem um recorte bem preciso, da menina que, sozinha, se encontra diante de um mundo diferente, dentro do próprio ambiente familiar. Talvez se possa dizer que ela descobre a ideia de “segredo”, ou seja, ter algo que é só e exclusivamente seu, marcando a separação da criança com os pais, estabelecendo, em suma, o início da formação da sua individualidade, de sua identidade.

Já no segundo, temos outra menina, que poderia ser a mesma – mesma idade, mesmo espírito observador, mas vivendo outra situação: ela é órfã, mora com os avós na casa dos tios, só com um primo, sem irmãos. É dali de dentro que ela enxerga os ressentimentos, as mentiras, a dor; que percebe como as pessoas se relacionam de modo enviesado, machucando-se. Faz também a descoberta de uma palavra, que é o encontro de um mundo novo: “órfã”. Palavra que serve, mais diretamente, para mostrar que ela está, de algum modo, sozinha no mundo. A designação lhe dá identidade. Primeiro ela sofre com isso, é o momento da ruptura. Ela não chora na morte dos pais, mas quando a professora pronuncia a palavra que a define. No fim, ela usa a expressão em seu proveito, quer os benefícios da orfandade, os privilégios da situação: o amor do avô, a lupa só para ela, o direito de investigar as miudezas do mundo sem prestar contas a ninguém.

Depois, em outro bloco, poderíamos reunir três contos bastante violentos. “Dolly”, narrado por uma jovem de 22 anos; “Você não acha que esfriou”, com o foco de uma mulher de 45; e “Boa noite, Maria”, que traz a perspectiva de uma mulher de 65 anos. Três histórias angustiantes, com protagonistas dilaceradas. No primeiro não sabemos se ela é simplesmente uma pessoa fria ou se só está jogando para fora, na forma de imaginação (até literária, uma vez que diz querer se tornar escritora), toda a raiva que guarda dentro de si. No segundo, temos uma mulher ferida, que se torna cínica e cruel. No último, a mulher só, que teve uma infância feliz, mas que nunca conseguiu construir um relacionamento que a satisfizesse de fato. Ao envelhecer, foi sendo colocada de lado. A violência aqui está ligada à certeza de que a morte a encontrará completamente só.

Os dois últimos contos, “Papoulas em feltro negro” e “Uma branca sombra pálida”, poderiam ser lidos como uma espécie de frente e verso, apesar das situações e personagens serem bem diferentes. Já a partir dos títulos, talvez apenas uma coincidência curiosa, temos a inversão das cores, mas o mesmo número de palavras e sonoridade parecida. Nesses dois contos, e muito especialmente no segundo, a ambiguidade é trabalhada em detalhe. São discursos em primeira pessoa de duas mulheres mais ou menos da mesma idade, uma professora de piano e, a outra, uma burguesa. No primeiro ainda temos uma narrativa a se desenrolar, no segundo somos despejados em um grande monólogo permeado pela culpa e pela tentativa de responder ao olhar alheio que a acusa. Se no primeiro há a presença concreta de uma outra personagem a nos indagar quem, afinal, está mentindo, no segundo esse jogo é ainda mais complexo.

Não precisamos de outra personagem para desencadear o processo da dúvida. Tudo se dá no discurso-debate da própria narradora. É ela que, tentando parecer fria e razoável, acaba dando voz ao seu sentimento de culpa. Culpa por não ter sido uma boa mãe, por não ter sido cúmplice da filha, por não ter podido evitar que ela se matasse. É claro que esse sentimento de culpa não é verbalizado pela personagem, ele aparece justamente em meio ao que essa mãe se recusa a pronunciar. Toda a narrativa é uma exposição da culpa dos outros – do pai da moça, que era um fraco; de Oriana, a amiga e possível amante da garota; da própria filha, Gina, uma espécie de anjo pervertido (tudo sob o ponto de vista da narradora, é claro). Mas por mais que grite as falhas alheias é das suas que ela está falando. São os seus preconceitos burgueses, sua impossibilidade de dar afeto, sua culpa, enfim, que estão sendo expostos, polemizados.

Neste livro não temos uma autora produzindo um manifesto, nem fazendo experimentos. Ela já tinha 72 anos ali, era reconhecida como grande escritora, não precisava provar nada a ninguém. Fica a sensação boa de alguém trabalhando em pleno domínio de sua técnica, contando belas histórias, se deslocando pelo universo que melhor conhece: as mulheres, com seus conflitos, suas descobertas e suas mágoas, com sua crueldade, inclusive. Depois disso, ela ainda publicou vários outros livros, recebeu prêmios, foi traduzida para diversos países, teve toda a sua obra republicada pela Companhia das Letras e se manteve coerente com suas escolhas estéticas e políticas. É por isso que só temos a comemorar sua existência no dia de hoje, quando ela completa 98 anos. Porque Lygia Fagundes Telles nos lembra de tudo aquilo que acreditamos essencial para o Brasil devastado que nos espreita ali de fora – criatividade, ética, responsabilidade, empatia, delicadeza.


31 de março de 2021

As certezas autoritárias em festa

 

Berttoni Licarião

Certos tipos de trauma que se abatem sobre os povos são tão profundos, tão cruéis, que, ao contrário do dinheiro, da vingança, e até mesmo da justiça, ou dos direitos, ou da boa vontade dos outros, apenas escritores são capazes de traduzi-los, transformando em significado e afiando nossa imaginação moral.

– Toni Morrison

Imagem: Shadow Chamber, Roger Ballen

Em 2018, quando se completavam 50 anos do AI-5, o Brasil elegeu para presidente da república Jair Bolsonaro, notório representante do pensamento necropolítico segundo o qual “a violência constitui a forma original do direito, e a exceção proporciona a estrutura da soberania”.[1] Durante o primeiro ano na chefia do Poder Executivo, o presidente brasileiro afirmou ter informações sobre as circunstâncias da morte de Fernando Augusto de Santa Cruz, preso por agentes do DOI-Codi no Rio de Janeiro em 1974, em provocação ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, filho do desaparecido. Ainda em 2019, por meio do decreto nº 9.759, que extinguiu conselhos e comissões que permitiam a participação da sociedade civil no governo federal, Bolsonaro encerrou os Grupos de Trabalho “Perus” e “Araguaia” responsáveis, respectivamente, pela identificação de corpos de desaparecidos políticos da ditadura em valas clandestinas do Cemitério Dom Bosco (São Paulo/SP) e pela busca e identificação de restos mortais de guerrilheiros assassinados na região do Araguaia. Através de outro decreto, nº 9.831, assinado em 10 de junho de 2019, o presidente da república alterou o funcionamento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) suspendendo, entre outras mudanças, a remuneração dos peritos da comissão que trabalhavam monitorando denúncias de maus tratos em presídios brasileiros.[2]

Em 29 de fevereiro de 2020, por meio de um vídeo divulgado em suas redes sociais, Bolsonaro se dirigiu novamente às vítimas de perseguição política durante a ditadura: “tortura é cascata para ganhar indenização”. Em meio à pandemia mundial do vírus COVID-19, no dia 4 de maio de 2020, Bolsonaro recebeu como “herói nacional” no Palácio do Planalto Sebastião Curió, oficial do exército denunciado seis vezes pelo Ministério Público Federal por homicídio e ocultação de cadáveres durante a repressão militar à Guerrilha do Araguaia. Curió é um dos 377 agentes das Forças Armadas reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade como autores de crimes contra os direitos humanos. Em 2009, ao ser entrevistado pelo jornal Estado de São Paulo, o militar abriu seus arquivos e confirmou a responsabilidade do Exército na execução de 41 vítimas da ditadura.[3] Em 17 de março deste ano, fomos surpreendidos com a notícia de que o Tribunal Regional Federal da 5ª Região aprovara um recurso da Advocacia-Geral da União que garantia o direito do governo federal de comemorar o golpe militar de 1964.

Na última terça-feira, 30 de março, o Ministério da Defesa emitiu uma ordem do dia alusiva ao 31 de março de 1964. Pelo terceiro ano consecutivo, uma declaração oficial das forças armadas é publicada — na contramão de toda a produção historiográfica e científica produzida nos últimos anos — embasada no argumento pífio e abertamente mentiroso de uma luta contra “a ameaça à democracia” e pela “responsabilidade de pacificar o país”. Ora, nas palavras do professor Mateus Gamba Torres, do Departamento de História da Universidade de Brasília, “junto a poderosas corporações de empresários, aos Estados Unidos da América, a políticos antidemocráticos, a Igreja Católica e ao STF, as Forças Armadas, entre 31 de março e 1 de abril de 1964, descumpriram sua função institucional de defensores da ordem constitucional e depuseram um presidente legal e legitimamente eleito para se perpetuarem no poder por 21 anos. [...] Foram os militares que acabaram com a democracia! O que se pleiteava eram reformas sociais que foram descartadas pela ditadura após 1964”.[4]

O rosário necropolítico acima é apenas uma amostra dos absurdos que compõem o horizonte simbólico do atual governo. É indigesto repeti-los e quase impossível reunir sob um mesmo teto cada ocorrência nos mais de vinte anos de vida pública da família Bolsonaro. Ainda assim, o percurso pode nos ajudar a perceber como o apagar e o reescrever, a manipulação do discurso, o gesto de desprezo e o desrespeito à memória são algumas das armas de que dispõem os inimigos da verdade. Esses elementos foram muito bem representados no romance O corpo interminável (2019),[5] de Claudia Lage, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2020.

Na obra em questão, Lage entrelaça a narrativa de Daniel, filho de uma vítima da repressão no presente democrático, à de uma (ou mais) mulher(es) na sala de tortura, no aparelho clandestino, nas horas de silêncio e espera ocupadas com a certeza da queda dos companheiros e do fracasso do projeto político pelo qual lutava. Daniel cresce “imerso no silêncio do avô” (p. 25), com uma única fotografia da mãe e um quarto mantido da mesma forma à espera de sua ocupante original, um esforço de congelar o tempo que contagia o restante da casa: “o avô sabia o lugar de tudo na casa. [...] O que para outra pessoa é detalhe, como o enfeite sobre a mesa, a posição das caixas nos armários, para o avô não é. Por isso eu precisava prestar muita atenção. Como se cada coisa que eu tirava do lugar deixasse uma marca da sua ausência” (p. 38).

Ao romper com o regime melancólico imposto pelos gestos e obsessões do avô, Daniel busca a história de sua mãe pelas margens do silêncio, mas esbarra em mecanismos de repressão ainda em pleno funcionamento e dos quais se sente herdeiro: “as mesmas forças que aniquilaram minha mãe, que anestesiaram o meu pai, estão aqui, a mesma dinâmica a mover o mundo, os mesmos motivos de revolta, de lutas, estão aqui, cresci aqui, eu nasci disso, eu emergi disso” (p. 76). Atento às intersecções entre diferentes gerações vitimadas pela ditadura, o processo de busca e aprendizagem de Daniel é atravessado pelo fracasso da representação, pelos limites da imaginação para dar conta daquilo que forças institucionais (e também, no romance, patriarcais), desejam reprimidas. Logo, transformar a luta daqueles mortos e desaparecidos em narrativa a partir de um presente falsamente pacificado ganha os contornos caricaturais de uma farsa:

Me sentia como se cometesse um equívoco. Um grande equívoco. Como se forçasse aquelas pessoas, tão reais, tão vivas dentro de suas lutas, desaparecimentos e mortes, a se tornarem meras referências em um texto, ou pior, personagens, meus personagens, como se impusesse a elas, depois de tudo o que viveram, algo tão frágil, capaz de desmantelar ao menor sopro, à mínima insistência, uma farsa, uma representação (p. 24).

A necessidade de narrar para compreender acompanha Daniel desde os tempos de escola, quando escreve uma redação sobre a morte da mãe que deixa perplexas professora e diretora. Mas diferente do que se poderia supor, Daniel escreve “a partir do esquecimento” (p. 22): aguarda até que imagens e palavras ajam sobre o corpo pelo tempo necessário para, só então, colocar qualquer coisa no papel. Esse tempo de depuração representa não a busca idílica, “imagem literária de uma sofrida e bela esperança”, mas sinaliza para o debate tardio da sociedade brasileira e para o reconhecimento de que “até os restos são abandonados, escondidos ou destruídos” (p. 43). O que sobra é a armadilha da verossimilhança.

No primeiro encontro entre os protagonistas, Daniel e Melina buscavam em uma biblioteca a única edição disponível de um livro sobre a ditadura brasileira — exemplar solitário que é, também, sintoma do estado precário em que se encontra essa memória nos espaços públicos. Melina deseja “ver aquilo que seus pais não viram, abrir os olhos para o que eles fecharam” (p. 23), enquanto Daniel dedica-se à leitura e à escrita, esta última “uma necessidade” para “desdobrar a imagem presa em [sua] mente” (p. 121), gesto essencial do trabalho de luto. Através dessas duas personagens, a pós-memória (incorporada por Daniel) e a responsabilidade social (representada por Melinda) veem na fotografia que assombra o romance a possibilidade de devolver a dignidade do foro íntimo a um corpo torturado — “Ela nua tremia de nervos, era inverno e ela tremia, não soube porque pensou em chocolate quente” (p. 121) — ao mesmo tempo em que expõe os mecanismos de repressão que mascaram a verdade. O romance de Lage faz isso por meio da reconstrução, em detalhes, da cena fotografada: 

O último corte que sentiu foi abaixo da axila, próximo aos seios. O mais doloroso foi na barriga, na altura do fígado, foi esse que a matou. Colocaram uma arma em sua mão, atiraram em seu corpo, mas ela não sentiu. Depois que constataram a sua morte levaram o seu corpo para uma sala. Na sala havia uma cama pequena e ali o puseram. Alguém veio e observou os ferimentos. Alguém veio e limpou o sangue espalhado pela pele. Alguém veio e mexeu na posição dos braços, cabeça, pés. Alguém veio e passou pó bege nos ferimentos à faca. Alguém veio e arrumou novamente os braços, cabeça, pés. Alguém veio e fez anotações num caderno. Alguém veio e não fechou os olhos. Alguém veio e tirou uma foto (p. 172).

Segundo Roland Barthes em A câmara clara, “a foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que estou aqui”.[6] Observá-la e percebê-la são, portanto, atitudes que permitem aprofundá-la como uma ferida e dela extrair o advento de si mesmo como outro, o punctum — i.e., aquilo que suplementamos à fotografia e que, todavia, já se encontrava nela. Para Barthes (p. 73), “toda fotografia é um certificado de presença”, ela nega o esquecimento e se torna símbolo de resistência. Apesar de falsa no nível da percepção (o que está lá deixa de existir como tal depois que a foto é produzida), a fotografia é verdadeira no nível do tempo: sua retórica repete indefinidamente que aquele passado existiu de fato, ainda que não seja mais acessível.

Mas o que dizer da retórica de uma foto encenada? Questões de autenticidade, manipulação e enquadramento sempre fizeram parte do horizonte discursivo da fotografia.[7] Muito mais que índice de uma presença, a fotografia encenada evoca um esforço narrativo com veleidades de verdade irrefutável. A memória da ditadura brasileira é este corpo torturado no romance de Claudia Lage. Uma memória conspurcada por inúmeros gestos de manipulação, limpeza, preparo, controle narrativo e apagamento de indícios — ecos da famosa foto do suicídio forjado de Vladimir Herzog. Ecos reiterados há menos de dois dias pelo Ministério da Defesa. A cada período da citação acima, Lage revela novos punctums, retira da fotografia camadas de silêncio institucional, reconstrói a cena de tortura descrita no parágrafo anterior do romance. Para além do corpo, há sempre alguém que mexe, observa, arruma, olha, faz anotações, fotografa: inúmeras testemunhas (como a do próprio leitor ou leitora) da “impossibilidade de sair daquele lugar” (p. 29).

A literatura brasileira há muito que não silencia sobre a ditadura. Pelo contrário, a ficção incorpora o rastro de incertezas plantado pelas técnicas do esquecimento e age como “memória insatisfeita que nunca se dá por vencida e perturba a vontade de sepultamento oficial da história vista apenas como depósito fixo de significados inativos.”[8] Novas narrativas continuam a surgir e a se multiplicar — a exemplo das publicações recentes de Sob os pés, meu corpo inteiro (2018) de Marcia Tiburi, Pesadelo (2019) de Pedro Tierra, Um corpo ainda quente (2020) de Sheyla Smanioto, Júlia nos campos conflagrados do Senhor (2020) de Bernardo Kucinski, No fundo do oceano, os animais invisíveis (2020) de Anita Deak, Elas marchavam sob o sol (2021) de Cristina Judar, dos romances que compõem a Trilogia infernal de Micheliny Verunschk [Aqui, no coração do inferno (2016), O peso do coração de um homem (2017) e O amor, esse obstáculo (2018)] e da trilogia ainda incompleta O lugar mais sombrio (2017, 2019, 2021) de Milton Hatoum. Seguimos e seguiremos, sociedade civil, auxiliados pela imaginação e como vaga-lumes, a desassossegar as comemorações das certezas autoritárias.



[1] MBEMBE. Achille. Necropolítica. Trad. Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2019. p. 38.

[2] Em resposta, o Comitê contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU emitiu um relatório em novembro de 2019 acusando o presidente Jair Bolsonaro de violar o tratado de 1984, do qual o Brasil é signatário. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-%C3%A9-denunciado-%C3%A0-onu-ap%C3%B3s-exonerar-equipe-antitortura/a-49165399>. Último acesso em: 29 mar. 2021.

[3] “No dia 21 de junho de 2009, em reportagem de Leonencio Nossa para O Estado de S. Paulo, divulgou-se informações dos arquivos pessoais do major Sebastião Curió Rodrigues de Moura, um dos principais repressores da Guerrilha do Araguaia. Os documentos contidos nesses arquivos informam que 41 guerrilheiros foram executados depois de presos – o que representa mais de 60% do total dos combatentes – e fornece dados sobre os momentos finais de vida de dezesseis deles, sobre os quais não se tinha nenhuma informação” (TELES, J. 2010, p. 292).

[4] Texto publicado nas redes sociais do professor (Instagram, Facebook) em 31 de março de 2021.

[5] LAGE, Claudia. O corpo interminável. Rio de Janeiro: Record, 2019.

[6] BARTHES, Roland. A câmara clara. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 70.

[7] Susan Sontag em Diante da dor dos outros chama a atenção para muitos desses exemplos em fotografias de guerra, como o caso do conflito entre sérvios e croatas, durante o qual as mesmas fotos de crianças mortas no bombardeio de um povoado eram distribuídas com diferentes legendas entre sérvios e croatas para fomentar o ódio ao inimigo.  

[8] RICHARD, Nelly. “Políticas de la memoria y técnicas del olvido”. In: RESTREPO, Gabriel et al. (Orgs.). Cultura, política y modernidad. Santafé de Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 1998. p. 65.

 


1 de março de 2021

PARA SEMPRE, CAIO F.

 

Nelson Barbosa



Passados 25 anos da morte do escritor Caio Fernando Abreu (1948-1996), de uma forma não tão usual entre a maioria dos escritores brasileiros, que infelizmente acabam caindo num incompreensível esquecimento, a obra e a persona de Caio F. ainda surpreendem por sua vivacidade e possibilitam um lugar de reflexão e encantamento não só no público jovem que o descobre, como também nos seus leitores de tempos em que suas obras iam sendo compostas e publicadas.

Não é aleatória essa relação entre a obra e a persona do seu autor, tampouco essa percepção está ligada a uma necessidade “antiga” de se associar autor e obra pelo vínculo do biografismo, que durante muito tempo pautou esses estudos literários envolvendo o autor e sua obra como determinantes um do outro, como se os dados factuais fossem então os causadores dessa obra produzida.

Decididamente, não é esse o caso de Caio e sua permanência na nossa literatura. Não é o caso, porque a obra de Caio, por mais que a crítica tradicional tenha tentado lê-la por esse prisma, procurando inclusive determiná-la como “literatura gay” porque o autor se declarara gay, rompeu o paradigma da representação literária tradicional para dar lugar à experiência como matéria literária. Não aleatoriamente, também, essa conjuntura da experiência veio abrir caminhos para que a literatura deixasse de ser uma escrita, digamos, de “gabinete” ou de assunto de classes dominantes, para se tornar efetivamente a expressão de liberdades e vivências antes sufocadas e desacreditadas até mesmo como passíveis de ficcionalização ou de pertencerem ao universo da literatura tout court: as escritas femininas/feministas, as escritas de segmentos segregados e de guetos, negros, gays, marginalizados em geral... Enfim, a grande abertura da literatura para existências que antes apenas apareciam, se quando, nos bastidores das obras literárias, jamais assumindo seu protagonismo como literatura.

E no caso específico de Caio F., reconhecemos em suas criações o caráter autoficcional, procedimento que coloca autor e leitor no cerne dessas construções literárias tanto “reais” quanto “ficcionais”, ora embreando ou desembreando dados documentais, ora embreando e desembreando criações ficcionais, alternando-os e amalgamando-os, produzindo um aproximar-se cada vez mais potente do leitor e da obra, e não gratuitamente, também do autor. É, portanto, nesse entrecruzamento de experiências, reais e ficcionais, que a obra de Caio se constrói e se apresenta como uma grande novidade no cenário das nossas letras, “novidade” que vai se perpetuando justamente por essa característica que a torna sempre à mão, como se diz, sobretudo nos tempos atuais de domínio das redes sociais e da internet. Claro que, por vezes, sofrendo o risco do esgotamento ou esvaziamento do excesso que se atribui a tudo que possa minimamente lembrar uma escrita de Caio, exatamente como acontece com sua madrinha literária, sua grande inspiração, Clarice Lispector.

Hoje esse assunto ou esse tema da autoficção nos estudos literários já corre facilmente por inúmeros estudos críticos, mas não era ainda o que se produzia em termos de crítica na época de Caio, o que certamente foi objeto de equívocos de leitura dessa obra que já se construía sobre novas bases de criação literária. É curioso pensar que a obra de Caio não surgiu, assim, intencionalmente dessas discussões em voga na França justamente nos anos 1970, quando Caio já tinha produzido um romance (Limite branco, 1970) e alguns contos nessa “pegada” autoficcional. Ou seja, avesso aos academicismos literários, o que lhe permitia até mesmo eleger Caetano Veloso e a Gilberto Gil como seus guias na escrita literária, Caio não acompanhava essas discussões que, ao fim e ao cabo, acabaram servindo como privilegiado rumo para depois se estudar a sua produção.

E nessa característica ímpar de sua obra reside, acreditamos, um dos primeiros elementos identificadores da empatia com gerações posteriores e, sobretudo, entre os jovens que hoje o encontram e se enredam com sua escrita, e se emocionam ou o escolhem como leitura privilegiada dentro de nossa literatura.

Nesse caso, borrando todo limite e fronteiras entre a escrita ficcional e sua persona, entram também nessa escolha de leituras suas cartas abundantemente publicadas, compondo com autor e obra esse amalgama de literatura e vida real e concreta que parece encantar os novos leitores. Na intersecção entre a ficção dos contos e a realidade das cartas, o gênero híbrido ao qual Caio passou a se dedicar com mais frequência nos últimos anos de vida, a crônica, cumpre um papel primordial realizando nelas, ainda mais sem amarras de gênero ou fronteiras, sua leitura mais completa do mundo que ainda nos chega como uma manhã a cada leitura.

Sempre angustiado com a vida concreta a ter que ganhar, como jornalista freelancer, revisor/preparador de livros e autor de resenhas (as “costuras para entregar”, como gostava de dizer retomando o universo do trabalhador “braçal”), em meio a despejos de apartamentos e dificuldades financeiras imensas, Caio se via por vezes descolado de sua realidade mais funda produzindo literatura em meio a esse caos pessoal, político e social de seu tempo (que curiosamente parece agora novamente ganhar força não por acaso por um projeto político de miséria e morte). Levava essas questões muito íntimas, desgastantes, ao psicanalista que o acompanhava, revelando-se cansado e insatisfeito com o que escrevia, sempre na busca de uma literatura que, esperava, pudesse ser cada vez mais concreta e tangível por sua experiência, que tocasse, pretendia, no que seria exatamente o sentimento das pessoas. Seu psicanalista, certa vez, ao ouvir essas questões para ele tão doloridas, procurou tranquilizá-lo quanto a isso dizendo que, na verdade, num tempo futuro, quando alguém quisesse de fato saber ou sentir o que acontecia em sua época, logo, em sua obra, não seria nos jornais que iria encontrar essa resposta mais claramente colocada, mas especificamente em sua obra literária em construção, em seus textos colhidos na convivência das redações, dos vários “bicos” de trabalho, dos bares noturnos, da rua, na sua incessante busca de amor, de prazer, em meio ao trânsito caótico, nos bares escuros, nas boates e nos amores rápidos que vivia, no centro nervoso das cidades de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro por onde circulava em pleno coração de uma sempre improvável América do Sul. Foi por isso mesmo que seu psicanalista o definiu como “o biógrafo da emoção”, aquele que com sua escrita capturava as emoções das experiências então vividas. Vemos aqui que a “profecia” parece mesmo ter se consumado.

E, de fato, essa característica de sua obra percebida por seu psicanalista parece definidora na sobrevivência de sua escrita para muito além de sua época e vida. São esses mesmos ambientes, esses mesmos espaços, concretos ou psicológicos, escuros ou iluminados, dolorosos ou de uma alegria incontida, então inusitadamente frequentados na sua literatura, que hoje se revelam próprios a seus leitores mais jovens: o ambiente da busca, da escolha, da desesperança, da descoberta, ou mesmo da espera de um encontro determinante, revelador, na espera de uma “pequena epifania” que revelasse no positivo aquele sentimento que se construía no negativo de sua alma, num jogo de troca de sinais entre o positivo e o negativo como dele já falou José Castelo em Inventário das sombras.

Embora marcada por esses mergulhos em sua realidade, Caio jamais cedeu às armadilhas de tornar sua obra um grande panfleto, como, já dissemos, muitas vezes a crítica o viu. Não haveria por que se ocupar de um panfleto quando a criação literária e linguística o tomava por inteiro na escrita e audição de sua própria produção ficcional. Nem mesmo quando sua vida teve a “verossimilhança” atravessada pelo real ao se descobrir contaminado pelo HIV que já matara quase todos os seus amigos, Caio abriu mão de tratar também dessa sua experiência eminentemente nas linhas da literatura, construindo nela o caminho que se lhe abria em direção à morte. Nesse momento, como grande escritor que foi, até mesmo sua morte veio a ser “vivida” em sua obra, longe de se tornar um panfleto que o vitimasse por uma sentença tão extrema.

Há, equivocadamente, até mesmo entre alguns de seus contemporâneos, quem, embalado pela leitura redutora de sua produção, declare que Caio não teria tido o tempo necessário para seu amadurecimento como escritor, a ponto de vir a “superar” sua questão primordial da sexualidade sempre vista como determinante em sua obra. Isso é um tremendo equívoco de leitura, como se a pauta fosse sempre a “evolução” para uma sexualidade padrão determinada pela sexualidade heterossexual que assim o avalia. Esse equívoco nos levaria prontamente a perguntar se esses contemporâneos que sobreviveram a seu tempo acaso superaram em suas próprias obras as questões de sua sexualidade padrão heteronormativa sempre presente em seus contos e romances? Evidentemente que não se trata disso, e nem isso seria o marcador de um amadurecimento da produção literária de um autor que, ao que vemos, sempre teve plena consciência de construção de sua obra a cada novo livro lançado.

Caio se ocupava da literatura em toda a sua extensão, e por ela se fazia existir por sua experiência, confundindo-se com ela, livre de bandeiras identitárias ou outras quaisquer, como a da aids, o que consideramos ter sido o grande trunfo de sua obra.

Quem hoje se encontra com suas narrativas depara no seu cotidiano com realidades tão violentas quanto as situações contidas em seus contos “Creme de alface” (Ovelhas negras), “Garopaba mon amour” (Pedras de Calcutá) e “Terça-feira gorda” (Morangos mofados); em situações tão delicadas quanto as descobertas contidas em “Aqueles dois” (Morangos mofados); em reflexões tão profundas e tocantes como no delicado conto “Corujas” (Inventário do ir-remediável); em dúvida em relação à realidade política de um país perdido como em “Oásis” (O ovo apunhalado); em abandono e desorientação como em “Sem Ana Blues” (Os dragões não conhecem o paraíso)... São muitas e diversas as passagens de Caio que nos trazem sua experiência atrelada às nossas, de leitores deste século XXI, século que infeliz e estranhamente ele não conheceu, mas anteviu tão bem, porque sua literatura fala de nós, fala do humano em nós.