Maria Clara Machado
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Fotografia de Carolina Maria de Jesus |
No capítulo “Negros”, do livro Diário de
Bitita, de Carolina Maria de Jesus, a protagonista conta, entre outras
coisas, a história de seu avô, que tinha sido escravo: “O meu avô era um vulto
que saía da senzala alquebrado e desiludido, reconhecendo que havia trabalhado
para enriquecer seu sinhô português” (1986: 60). O trabalho escravo a que gerações de pessoas negras
foram submetidas durante três séculos no Brasil não fez jus a qualquer
reparação aos ex-cativos quando de sua libertação. Ao contrário, a Lei que
aboliu a escravidão há apenas 133 anos, a 13 de maio de 1888, instituiu
simplesmente: “É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no
Brasil”, sem qualquer previsão de medida de inserção socioeconômica para a
população de escravizados liberta. Cada um que seguisse seu caminho, um
percurso que começara no século XVI, quando os primeiros africanos escravizados
foram traficados para o Brasil.
Quando a abolição finalmente foi proclamada, um
domingo, a capital do Império, o Rio de Janeiro, entrou em festa. “Todos
respiravam felicidade, tudo era delírio”, relatou Machado de Assis (1893)
alguns anos depois em crônica publicada na Gazeta de Notícias. Mais jovem que Machado, Lima Barreto, nascido
no mesmo 13 de maio, mas sete anos antes da abolição, lembrou na crônica “Maio”
o clima de festa e liberdade que experimentou quando criança:
Em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou em casa e
disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e
nós fomos esperar a assinatura no largo do Paço [...] Afinal a lei foi assinada
e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à
janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço, vivas... Fazia sol e o dia
estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e
os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da
vida inteiramente festa e harmonia (BARRETO, 4/5/1911).
As comemorações na capital e em outras cidades uniram
em festa conhecidas figuras da época e toda a gente, entre os quais, muitas
pessoas negras que sustentaram na carne o regime escravista. Após os festejos,
no entanto, muitos continuaram trabalhando para os antigos proprietários como
conta Helena Morley em seu diário escrito entre 1893 e 1894:
Na chácara, moram ainda muitos negros e negras do tempo do
cativeiro, que foram escravos e não quiseram sair com a Lei de 13 de maio. Vovó
sustenta todos... As negras, as que não bebem, são muito boas e para terem seus
cobres fazem pasteis de angu, sonhos e acarajés para as festas de igreja e para
a porta do teatro (MORLEY, 1998: 52) .
O governo Republicano, proclamado no país um ano
após a abolição, adotara carta constitucional em 1891 que aparentemente ampliava
direitos, como o acesso ao voto. No entanto, a CF impedia o mesmo exercício a
mendigos e analfabetos que até 1881 podiam votar; assim como determinava que o
acesso aos cargos públicos deveria se dar por mérito, mas, novamente, sem
prever meios de acesso à educação formal à imensa população negra. Os avanços,
portanto, não ultrapassaram a letra constitucional. Em verdade, buscou-se
criar, na certeira interpretação de Luís Felipe de Alencastro (2010), “um
ferrolho que barrasse o acesso do corpo eleitoral à maioria dos libertos”, numa
situação de “infracidadania”, só alterada em 1985.
A extrema miséria, a falta de assistência à
saúde e o mínimo acesso à educação formal, se não impediam por completo,
dificultavam que negras e negros se libertassem de fato de todas as
consequências do regime da escravidão recém-abolida. Quatro décadas mais tarde,
Carolina Maria de Jesus revisita as consequências do pós-abolição. Neta de
escravos, a protagonista Bitita relata sua experiência no interior de
Minas Gerais: “Nas fazendas não havia escolas, havia
enxadas em abundância” (1986: 112).
Se pensarmos nos três séculos de escravidão
antes de a abolição ser proclamada no Brasil, e consideramos que a
independência de Portugal ocorrera em 1822, sem colocar fim ao sistema de
exploração escrava – que só ocorreria em 1888 –, concluímos que a liberdade e a
igualdade que se buscavam era apenas para os brasileiros brancos de posses, como
ficou institucionalizado com o texto constitucional de 1824. Os escravizados
permaneceram sem qualquer direito civil estabelecido e eram tidos como objetos
de direito, embora tivessem deveres. De modo que os pretos pareciam não fazer
parte do mesmo país que os brancos, conforme diz a protagonista Kehinde, em Um
defeito de cor, ao narrar o dia da independência:
Em uma manhã de primavera, e de setembro, primeiro chegou o
barulho de rojões e de tiros de canhão, e depois a notícia de que o Brasil
estava livre de Portugal... O sinhô José Carlos mandou também que o Cippriano
explicasse que nada tinha mudado para os escravos, que os pretos não eram um
país. (GONÇALVES, 2019: 164)
Assim como a independência do Brasil não ensejou
a emancipação dos escravizados, também a independência norte-americana em 1776
só levara inicialmente à abolição da escravidão em algumas das colônias do
Norte. No caso da Revolução Francesa, os revoltosos não somaram a suas demandas
os direitos das populações negras e mestiças escravizadas nas colônias, sequer
incluindo em sua Declaração os diretos das mulheres francesas, como denunciado
por Olympe de Gouges (1791) . Observar essas realidades torna mais fácil
compreender que as revoluções liberais europeias, bem como os ideais
iluministas que as inspiraram, não implicavam necessariamente em rupturas
estruturais do sistema de produção da época, mantido pela escravidão de
africanos negros não só no Brasil, mas na maior parte das Américas e do Caribe,
regiões invadidas e dominadas por ingleses, franceses, espanhois e portugueses.
Nesse contexto, a universalidade dos ideais
revolucionários de inspiração iluminista só foi largamente posta em questão
pela luta por liberdade de mulheres e homens escravizados no Caribe e na
América Latina, sobretudo em função de uma revolução que levaria à
independência da colônia francesa de São Domingos. O autoproclamado Haiti se
tornou, em 1804, a primeira nação livre da escravidão, do tráfico e do jugo
colonial por ação de negras e negros. Entre as figuras revolucionárias, Toussaint
Louverture emergiu como líder negro que finalmente derrotara as até então imbatíveis
tropas napoleônicas que fizeram tremer a Europa.
Essa revolução de tamanha importância, no
entanto, ainda que tenha influenciado em certa medida as literaturas em línguas
francesa e inglesa, não chegou a povoar com força a literatura brasileira em
formação. É verdade que, segundo o crítico Sydney Chalhoub (2018), a literatura
brasileira do século XIX foi dominada por obras que criticavam a escravidão,
embora tenha sido esse o século que sedimentou a noção de cor como marcador
social e que solidificou o “racismo científico” como legitimador do
preconceito.
Muitas vezes, na avaliação de Chalhoub, é
necessário um trabalho de interpretação para depreender da tessitura superficial
do texto camadas mais críticas ao sistema vigente da época. De fato, podemos
ler em Machado de Assis, senão a crítica apaixonada contra a escravidão,
elogios à emancipação dos escravizados, como no livro Memorial de Aires
(1908), em que o protagonista, um diplomata brasileiro aposentado, comemora em
seu diário a abolição no 13 de maio:
Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista
da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube... Estava na rua
do ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral (ASSIS, 1994: 24).
É importante frisar também que, mais tarde, a
República brasileira foi proclamada durante o apogeu das teorias raciais que
serviram, entre outras coisas, para legitimar mudanças em território nacional
que, novamente, privilegiavam e preservavam o poder econômico e político das
elites brancas. Assim, ainda que o Brasil tenha passado por avanços importantes
ao longo dos séculos, com destaque nos tempos mais recentes para a Lei 12.711,
de 2012, que reserva vagas para
estudantes egressos das escolas públicas, a criação da Secretaria Nacional de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (em 2011) e da Lei nº 11.645, de 2008, que torna obrigatório o ensino de
história e cultura afrodescendente e indígena nas escolas, sua história é
marcada pelo racismo e pela desigualdade. Nesse percurso do “quem somos nós”,
na prática, negras e negros sempre estiveram bem longe de alcançar o exercício
de direitos plenos de cidadania, experiência vivida por Bitita que reivindica
“um Brasil para os brasileiros”,
uma posição que clamava por emancipação, liberdade e igualdade efetivas para as
populações negras que ainda não goza(va)m dos mesmos direitos que a população
branca, excluídos do ideal de nação ao longo da nossa história.
Para além da individualidade da protagonista, o Diário
de Bitita expõe, entre outras coisas, as condições das populações negras e
reflete sobre elas, evidenciando, por exemplo, o genocídio institucionalizado
do negro, denunciado por Abdias Nascimento (1978) em O genocídio do negro
brasileiro. Bitita, por sua vez, conta que “já estava [se] habituando com a
morte, porque a mortalidade no estado de Minas Gerais é assustadora”. Ela revela
ainda a banalização da morte:
O policial deu-lhe voz de prisão; ele era da roça, saiu correndo.
O policial deu-lhe um tiro. A bala penetrou dentro do ouvido. O soldado sorria,
dizendo: – Que pontaria que eu tenho! Com o pé, ele movia o corpo sem vida
[...] Quem é que vai chorar por ele? (JESUS,1986: 95)
Enquanto os números vultosos da violência
policial contra as populações negras impedem a identificação empática com cada
indivíduo morto e violentado pelo Estado, as narrativas afrodescendentes podem
salvar do esquecimento identidades esfaceladas, conferindo ao não dito
histórias e reflexões e disputando com o discurso hegemônico da normalização da
morte interpretações possíveis, por meio da edificação de existências
narrativas que superam e suplantam o silenciamento imposto. Bitita, assim como
outras personagens que povoam a literatura das margens e periferias, longe do
cânone branco de inspiração europeia, pode nos fornecer perspectivas muito
enriquecedoras para compreendermos as formações complexas, desiguais e racistas
da nossa sociedade.
As memórias dos negros, indígenas, mulheres,
entre outros sujeitos subalternizados, são fonte vigorosa, senão da verdade dos
documentos históricos, da construção de alteridades há muito reprimidas que
precisam emergir a fim de que possamos repensar os padrões de civilidade, em
termos de acesso a direitos, que buscamos para nossos povos. Dentro desse
processo de reivindicação de histórias, memórias e heranças, é fundamental
reelaborarmos os processos de emancipação dos escravizados, em que as agências
de heróis negros, como Toussaint Louverture, para citar um nome caribenho – finalmente
ganhem a medida de importância de seus feitos dentro do passado compartilhado
que nos une. Assim como precisamos evocar nesta data a agência de
personalidades negras brasileiras importantes para a libertação de escravizadas
e escravizados, como a do poeta e advogado Luís Gama, ou dos abolicionistas
José do Patrocínio e André Rebouças. Neste 13 de maio, precisamos também ouvir
Carolina Maria de Jesus e nos somar a ela, quando registra, no dia 13 de maio
de 1958, no Quarto de despejo, que “lutava contra a escravatura atual –
a fome!” (JESUS, 2014: 32).
Na esfera da vida privada, assim como Carolina
Maria de Jesus lutou contra a fome de seus filhos, as mães escravizadas tiveram
papel preponderante na sobrevivência dos filhos durante o regime, o que se
configura como forma de resistência e preservação das famílias e comunidades
negras (Maria Helena MACHADO, 2019: 334-340). E elas também participaram da luta abolicionista na esfera
pública. Ângela Alonso (2011) mapeou 26 associações antiescravistas, sendo 18
exclusivamente femininas, em metade das 20 províncias do Império.
Hoje, 133 anos após a proclamação da abolição,
ainda vivemos a criminalização do corpo negro e a reatualização diária do
genocídio das populações negras brasileiras. De modo que pensar o heroísmo do
povo negro, a agência e a solidariedade negras dentro de seus contextos
históricos e de suas possibilidades e limitações nos permite vislumbrar um
futuro que se forja na luta e na reelaboração da vida que nega a vida, mas que
brota, que insiste, que persiste, que resiste. Essas reelaborações ampliam e
atualizam o conhecimento sobre nós mesmos e sobre nossas heranças partilhadas
com a América Latina, o Caribe e a África. Nós, afinal, não estamos sós e somos
muitas e muitos.
Mas para que essa coletividade emerja, é preciso
que uma ampla divulgação de memórias da escravidão e do período pós-abolição
atravesse o ensino nas escolas e universidades, inspire uma renovada atuação de
sindicatos e associações e se some às disputas nas esferas políticas para a
edificação de outros mundos, a fim de celebrarmos duradouramente a liberdade
ampla e irrestrita.
Referências:
ALENCASTRO, Luiz Felipe
de. “O pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira”. Novos Estudos,
n. 87, p. 5-11, CEBRAP, São Paulo, 2010.
ALONSO, Ângela.
“Associativismo avant la lettre: as sociedades pela abolição da escravidão
no Brasil oitocentista”. Dossiê Sociologias, ano 13, n. 28, Rio Grande
do Sul, set/dez. 2011, p. 166-199.
ASSIS, Joaquim Maria
Machado de. Gazeta de Notícias. 14 de maio de 1893.
ASSIS, Joaquim Maria
Machado de. Obra completa. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, (1908) 1994.
BARRETO, Lima. Crônicas.
Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bi000173.pdf.
JESUS, Carolina Maria
de. Quarto de despejo. Ática, São Paulo, 2014.
JESUS, Carolina Maria
de. Diário de Bitita. Nova Fronteira, 1986.
MORLEY, Helena. Minha vida de
menina, Companhia das Letras, São Paulo, 1998.
NASCIMENTO, Abdias. O
genocídio do negro brasileiro, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1978.
CHALHOUB, Sidney.
“Literatura e escravidão”. Dicionário escravidão e liberdade. Companhia
das Letras, São Paulo, 2018, p. 298-304.
GONÇALVES, Ana Maria. Um
defeito de cor. Record, Rio de Janeiro, 2006.
GOUGES,
Olympe de. Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne, 1791.
MACHADO, Maria Helena
Toledo Pereira. “Mulher, corpo e maternidade”. Dicionário Escravidão e
Liberdade. Companhia das Letras, São Paulo, 2018, p. 334-340.