1 de abril de 2020

Literatura numa hora dessas?


 Bruna Kalil Othero[1]


Homem chorando no colo de Carlos Drummond de Andrade. Foto: divulgação.


Há algumas noites, sonhei que uma pessoa muito querida negava que meu trabalho – literatura e arte – tivesse alguma utilidade ou função no mundo. Desesperada, passei o sonho todo tentando convencê-la do valor inestimável da arte para a humanidade. Mais que uma forma do inconsciente me mostrar as minhas preocupações, o sonho me pareceu uma metáfora para o Brasil hoje, essa ficção distópica na qual falamos obviedades a quem se recusa a ouvir pela racionalidade. Em tempos de crise, as preocupações da sociedade recaem em assuntos mais “essenciais”, e essa curadoria, frequentemente, não inclui a arte e a cultura. É comum que nós, artistas – hoje quase criminalizados socialmente, acusados de viver na “mamata” como “vagabundos” – ouçamos: arte numa hora dessas? No entanto, a produção artística e cultural é um dos pilares imprescindíveis para a vida humana. Este ensaio, portanto, pretende explorar os argumentos que usei no meu sonho, de forma a expandi-los e desenvolvê-los.
Para estruturar esses argumentos, me inspiro em Italo Calvino, que apresentou suas quatorze razões para ler os clássicos, e trago treze motivos pelos quais a literatura, a arte e a cultura são vitais para a humanidade existir e continuar respirando. Nesse contexto, a palavra que utilizarei para me referir ao assunto será “literatura”, como representante de toda e qualquer produção ficcional de um povo, aproveitando sua definição dada por Antonio Candido, no célebre ensaio “O direito à literatura”, que será constantemente citado:
Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações.

            “Vista deste modo”, continua Candido, “a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação.” A partir dessa consideração belíssima de um dos nossos mais poderosos ensaístas, passo a trazer alguns motivos pelos quais a ficção e a cultura são pilares essenciais para a construção do mundo e da sociedade.

  1. Em tempos de crise, a ficção nos salva da vida.

Livraria móvel com soldados leitores. Foto: divulgação.


Quando, como sociedade, não estivemos em crise? Quando não houve injustiças, violência, barbárie? A arte é luxo em tempos de crise, como andam dizendo? Pelo contrário – é ela quem nos salva do desespero absoluto. O Grande Gatsby (1925), de Fitzgerald, por exemplo, se tornou best-seller, entre outras razões, por ser intensamente lido por soldados nas frentes da Segunda Guerra Mundial – naquelas páginas, eles encontravam um oásis ficcional, um respiro em meio a tanto horror. Pessoalmente, só sobrevivi a 2018 porque me lembrava, constantemente: este é o país de João Gilberto, Conceição Evaristo, Fernanda Montenegro. Em meio a tanto ódio e aflição, ler obras-primas é o que nos mantém firmes na vida, restaurando, nos instantes de leitura, nossa esperança na humanidade – ou nos lembrando que a beleza existe, apesar de tudo.

  1. A literatura é um exercício de empatia.

A ficção é, entre várias coisas, a expansão dos horizontes de visão. Entrar em contato com as aventuras de um personagem é uma maneira de, no momento da leitura, o eu se colocar no lugar do outro. Ler um livro ou ver um filme é prazeroso pois nos descolamos de nós mesmos por alguns instantes e temos a possibilidade de ver o mundo pelos olhos de pessoas diferentes. É uma maneira de nos fazer reconhecer nossos privilégios e nos ajudar a compreender, afetiva e emocionalmente, as dores e as sensações dos outros. É o que acontece, por exemplo, na leitura de Carolina Maria de Jesus no potente Quarto de despejo (1960). Mesmo que o leitor, como indivíduo, não tenha passado fome e não faça ideia dessa sensação desesperadora no seu corpo, o texto apresenta, nos instantes da leitura atenta, esses sentimentos e essas reflexões. Assim, quando se fecha o livro, se abre uma nova perspectiva de ver o mundo e as pessoas ao redor: dificilmente, saímos ilesos de narrativas tão impactantes. Isso influencia a nossa maneira de se relacionar, de observar as diversas situações e de nos posicionar politicamente.
O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.

Ler um trecho como esse nos faz contestar absolutamente tudo: a importância vital da comida para o corpo humano (coisa que quem tem acesso irrestrito à alimentação quase não pensa, já que está sempre disponível), a ausência de comida como educação social, a própria definição de política como algo relacionado à empatia, as crianças como representação máxima da alteridade e da vulnerabilidade, etc. A literatura, portanto, é uma mudança radical de perspectiva: uma maneira de sair do nosso próprio corpo pelo exercício constante da empatia.

  1. Compreender um texto literário é compreender a linguagem.

A linguagem está relacionada à comunicação. Quando nos tornamos leitores – de livros, de músicas, de produções audiovisuais, de ditados populares –, aprendemos a apurar a nossa capacidade de nos comunicar com o outro. Isso é uma habilidade importantíssima para a vida em sociedade, seja para arrumar um emprego, para convencer alguém da nossa opinião ou para nos declararmos ao ser amado. Tudo na vida humana passa pela linguagem – e dominá-la é tomar as rédeas das nossas relações e da nossa posição no mundo.

  1. Quando compreendemos a linguagem, compreendemos o discurso.

Compreender a linguagem é um passo importante para compreender os discursos – das pessoas e das instituições. Assim, aprendemos que o hábito de reclamação de alguém, por exemplo, faz parte, de forma consciente ou inconsciente, do discurso social daquela pessoa, sendo um componente da sua personalidade e da sua existência no mundo. Porém, mais do que em nível individual, essa habilidade é essencial para entender e criticar as instituições: a família, a mídia, a escola. Dominar a linguagem é conseguir se desprender da visão limitada dos discursos prontos, e compreender o que, realmente, significam os símbolos familiares, midiáticos ou educacionais.
Quando entendemos isso, conseguimos encarar, a certa distância, os discursos mais tradicionais, a exemplo: 1) para uma mulher ser feliz, é preciso casamento e filhos (discurso familiar patriarcal); 2) para ser feliz, é preciso ser magro/a e ter o celular mais avançado (discurso da indústria cultural); 3) para ser validado intelectualmente, é preciso acertar um número determinado de questões em uma prova, valorizando mais a quantidade que a qualidade do conhecimento (discurso da escola e do vestibular). Tudo isso são discursos passados socialmente, e validados simplesmente pela sua repetição ao longo do tempo. Compreender isso é também compreender que eles não são verdades absolutas, e ter a consciência de escolha: posso seguir esse discurso, mas só se eu quiser, não preciso, necessariamente, tomá-lo como definitivo.

  1. Quando compreendemos o discurso, compreendemos a política.

Com o entendimento do poder dos discursos, o discurso mais importante a ser compreendido é o discurso político. Entendemos, a princípio, a sua estrutura: uma pessoa em um palanque, com sua voz amplificada pelo microfone, proferindo crenças e valores – argumentos – com o objetivo de convencer o povo que a sua visão é a certa. Analisamos, também, as estratégias argumentativas utilizadas pelos candidatos: seja o que se veste de “profissões comuns” para se aproximar do povo; seja o que cria bordões de modo a se fixar melhor na cabeça dos eleitores. Todas essas táticas fazem parte do grande discurso político, no qual a busca pelo poder é o motor basal – e é dela que vêm as corrupções e manipulações. Compreender o discurso político é, logo, uma maneira de nos tornarmos cidadãos mais críticos e conscientes – e o auge dessa compreensão é, além da capacidade de criticar os políticos da oposição, conseguir fazer a autocrítica entre os representantes da sua própria vertente ideológica. Isto é, se distanciar o suficiente para entender que mesmo o candidato que gostamos também faz uso de estratégias argumentativas para convencer a massa. Contudo, o entendimento discursivo da política e dos políticos não é incentivado num país como o Brasil, no qual, segundo Darcy Ribeiro, a crise na educação não é uma crise, mas um projeto. Claro: é mais fácil dominar e controlar ignorantes homogêneos, e não uma população pensante.

  1. O poder de registro da literatura é o que nos salva da morte pela história.

Uma produção escrita ou gravada não é só uma obra a ser contemplada através dos milênios – os humanos morrem, seus textos permanecem –, mas também um poderoso registro do passado. Entrar em contato com produções feitas na ditadura militar, como o quadro O Herói (1966), de Anna Maria Maiolino, nos ajuda a compreender, em nível subjetivo, estético e emocional, as reivindicações e sentimentos daquele momento – informação que falta aos livros de história, por exemplo.

O Herói (1966), de Anna Maria Maiolino. Foto: MASP.


Olhar o passado através da literatura é uma maneira importantíssima de entender o que veio antes de nós de forma a evitar erros já feitos e sedimentar melhor as estradas do futuro. Seguindo esse mesmo pensamento, a literatura também nos possibilita rever o passado mais criticamente, buscando entender, por exemplo, absurdos e violências naturalizados em determinado momento histórico, mas que hoje devem ser repensados. É o que faz MC Carol na canção “Não foi Cabral”:
Professora me desculpe
Mas agora vou falar
Esse ano na escola
As coisas vão mudar
Nada contra ti
Não me leve a mal
Quem descobriu o Brasil
Não foi Cabral

Esse texto poderoso já se inicia com uma mudança de epistemologia de pensamento: negando a visão tradicional repassada pelas instituições de ensino, o eu-lírico rejeita o mito do “descobrimento” do Brasil de modo a revê-lo criticamente.
Pedro Álvares Cabral
Chegou 22 de abril
Depois colonizou
Chamando de Pau-Brasil
Ninguém trouxe família
Muito menos filho
Porque já sabia
Que ia matar vários índios
Treze Caravelas
Trouxe muita morte
Um milhão de índio
Morreu de tuberculose

A revisão histórica e estética feita aqui, portanto, pretende compreender a formação do Brasil colonial como um processo violento e eurocêntrico, voltado ao extermínio físico e cultural dos povos nativos. A metáfora utilizada pela autora traz a caravela – símbolo das grandes navegações – como o meio pelo qual as doenças europeias chegaram e devastaram os indígenas brasileiros.
Falando de sofrimento
Dos tupis e guaranis
Lembrei do guerreiro
Quilombo Zumbi
Zumbi dos Palmares
Vítima de uma emboscada
Se não fosse a Dandara
Eu levava chicotada

Por fim, o eu-lírico termina o texto com uma compreensão lúcida e simultânea do ontem e do agora: ao relembrar a resistência dos povos quilombolas, liderados por Dandara e Zumbi, conclui que “se não fosse a Dandara / eu levava chicotada”. Esses dois versos, aparentemente simples, trazem consigo um entendimento muito profundo da história racista do Brasil, pautada em séculos de pensamento escravocrata, demonstrando que a situação presente é resultado direto das injustiças e das lutas do passado.

  1. A literatura nos humaniza.

Segundo Candido, há
conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver.

Assim, a partir da apresentação do bem e do mal, a literatura nos coloca frente às feridas e complexidades humanas, alargando a nossa compreensão da experiência de estar vivo e viver em sociedade. Ler os romances de Machado de Assis, por exemplo, nos ensina que o “bem” e o “mal” existem em cada um de nós, e que essa contradição essencial faz parte da condição humana, é um dos motores que movem a nossa existência. Machado nos lembra que, mais que as certezas, devemos nos atentar às dúvidas – afinal, a única certeza absoluta é a morte, e é preciso conviver com ela. A literatura nos humaniza, portanto, expandindo o nosso entendimento do que é ser humano, por meio da convivência com personagens – parecidos ou diferentes de nós.

  1. A representação ficcional é importante para a construção da nossa própria identidade.

Representatividade é o fenômeno de ver-se representado em algum personagem e, através dessa representação fabulada, constituir e entender melhor a nossa identidade pessoal. Isso acontece tanto em escala universal como em nível particular: por meio da literatura, universalmente, primeiro nos entendemos como seres humanos, depois como o nosso gênero, nossa etnia, nossa nacionalidade. Já de modo particular, vamos nos constituindo como indivíduos a partir das imagens que recebemos nas diversas narrativas do cotidiano. Se me for permitido, dou como exemplo uma anedota pessoal. Quando criança, fiquei alucinada pelo filme Branca de Neve e os sete anões (1937), assistindo-o repetidamente. Hoje entendo que essa fascinação veio, entre outros fatores, da minha semelhança física com a personagem: uma menina branca de cabelos pretos curtos e maçãs do rosto vermelhas. Ver Branca de Neve me ajudou, na infância, a constituir minha autoimagem – e, com isso, vieram coisas boas (autopercepção e identificação) mas também coisas ruins. Afinal, o filme de 1937 propaga valores patriarcais – é necessário sempre aguardar o príncipe – e isso foi, por muito tempo, uma crença que levei para a minha vida e meus relacionamentos, tornando-me uma moça que acreditava ser obrigatório esperar a iniciativa dos homens em vez de correr atrás dos próprios desejos. Claro, isso não aconteceu de forma consciente, além de contar com inúmeros fatores externos, como os constantes discursos machistas propagados pelas instituições sociais. Mas esse pensamento só mudou, também, devido à literatura: passei a refletir melhor sobre o assunto após ter contato com outros textos, filmes, músicas, que me mostraram outras narrativas e possibilidades de existir no mundo como mulher.


Uma pequena Bruna no seu aniversário de 2 anos. Foto: acervo pessoal.


  1. A literatura é um exercício constante de sensibilidade e de escuta.

Carlos Drummond de Andrade começa o conto “Flor, telefone, moça” (em Contos de Aprendiz) assim: Não, não é conto. Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que outras não escuta, e vai passando.
Essa é uma das definições mais precisas (e despretensiosas) do exercício ficcional. Ouvir o outro, estar sensível às dores e delícias do outro, e convocá-lo, também, à escuta. Hilda Hilst explica, no primeiro texto da série “Dez chamamentos ao amigo”:
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

            Este poema, um dos mais belos escritos em língua portuguesa, fala do jogo amoroso entre amantes, lembrando no seu título as cantigas de amigo medievais[2], mas outra interpretação possível é que seja um poema sobre a própria literatura. Há, na série, um chamamento constante a esse amigo, que pode se referir, além da pessoa amada, a nós, os leitores. Por ser o primeiro que abre a obra Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974), é um texto que também diz sobre o próprio livro. Nessa leitura, o eu-lírico/a poeta insiste para que a olhemos com dedicação, embora ela pareça noturna e imperfeita, embora tenhamos diferenças essenciais: terra versus água, eu versus outro, pastor versus nauta. Olhei-me a mim como se tu me olhasses, eis aí outra definição precisa da ficção: sair de si, experimentar o olhar do outro para ver o mundo – e a si mesmo. Propondo a troca de perspectiva entre o eu e o outro, este poema propõe também um olhar atento ao próprio livro, à própria poesia; não à toa, circular, termina repetindo o clamor inicial com mais intensidade: Olha-me de novo. Com menos altivez. / E mais atento. Não compreendeu este poema, este livro, na primeira leitura? Sem problemas. Leia de novo. Com menos altivez – saindo de si, deixando o eu um pouco de lado – e mais atenção. Hilda Hilst nos lembra que ler poesia é reler: e ouvir.

  1. Precisamos dos poetas para dar coerência aos sonhos OU a literatura é o oposto de solidão.

Essa primeira frase é dita por um personagem de Pirandello na peça Os Gigantes da Montanha, que assisti em montagem do Grupo Galpão e Gabriel Villela, em 2013. Desde então, guardei-a fundo no peito: precisamos dos poetas para dar coerência aos sonhos. A literatura, essa sala imensamente povoada, nos dá uma maior compreensão sobre nós mesmos, nossos desejos, nossos sonhos. Se não consigo organizar em linguagem o que sinto, algum artista já fez isso antes. A arte nos dá uma noção de pertencimento, um alívio de fazer parte da raça humana, da nação brasileira, de determinado gênero ou etnia, etc. Ler é fugir da solidão. Manuel Bandeira, no “Poemeto Erótico”, nos ajuda a fazer declarações a quem amamos pois descreve, pela organização concisa do sentimento no ritmo da redondilha maior (sete sílabas poéticas), o desejo por uma única pessoa:
Teu corpo claro e perfeito,
– Teu corpo de maravilha,
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha…
[...]
A todo o momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...

Da mesma forma, a música “Largado às Traças”, composição de Pancadinha, André Vox e Victor Hugo, cantada por Zé Neto e Cristiano, expressa a saudade que sentimos da pessoa amada por meio de versos alexandrinos (com doze sílabas poéticas):
Afogando a saudade num querosene
Vou beijando esse copo, abraçando as garrafas
Solidão é companheira nesse risca faca
[...]
A falta de você bebida não ameniza
Tô tentando apagar fogo com gasolina

Quem nos explica porque isso é importante é, de novo, Antonio Candido, quando comenta alguns versos de Tomás Antônio Gonzaga:
[...] na experiência de cada um de nós esses sentimentos e evocações são geralmente vagos, informulados, e não têm consistência que os torne exemplares. Exprimindo-os no enquadramento de um estilo literário, usando rigorosamente os versos de dez sílabas [no caso de Gonzaga], explorando certas sonoridades, combinando as palavras com perícia, o poeta transforma o informal ou o inexpresso em estrutura organizada, que se põe acima do tempo e serve para cada um representar mentalmente as situações amorosas deste tipo. [...] [Os recursos rítmicos e sonoros] criaram uma ordem definida que serve de padrão para todos e, deste modo, a todos humaniza, isto é, permite que os sentimentos passem do estado de mera emoção para o da forma construída, que assegura a generalidade e permanência.

Ou seja, quando o eu-lírico de Bandeira afirma querer possuir o ser amado no leito / estreito da redondilha, faz uma autoreferência à estrutura rítmica do poema (redondilha maior), abrangendo, ao mesmo tempo, o corpo do texto (de forma metalinguística) e o corpo sexual (como declaração amorosa). Ele resume o sentimento universal do tesão criando a imagem do desejo como um oceano, e do corpo amado como a única ilha presente nesse vasto espaço. De maneira similar, os versos de “Largado às Traças” trazem, organizados em alexandrinos, a metáfora do álcool, primeiro como entorpecente para esquecer as desventuras, depois como o querosene e a gasolina que inflamam, num típico paradoxo amoroso (tô tentando apagar fogo com gasolina), a ardência da saudade e do desejo. Nesse texto, a solidão é companheira – e na literatura, também. O artista organiza em linguagem os nossos sentimentos, nossas emoções. E, por causa disso, nos sentimos menos sozinhos.

  1. Enquanto vive um poeta, o homem está vivo.

Ezra Pound, em ABC da literatura, afirma que o poeta é a antena da raça, numa referência aos órgãos sensitivos dos insetos, responsáveis pelo seu sistema sensorial. A metáfora dá a entender que os poetas são capazes de sentir por toda a raça humana e expressar esse sentimento através da linguagem. Hilda Hilst, em um poema da série “Poemas aos homens do nosso tempo”, também em Júbilo, memória, noviciado da paixão, resume a importância do artista para que a humanidade exista:
Tudo vive em mim. Tudo se entranha
Na minha tumultuada vida. E porisso
Não te enganas, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,
O olhar aguado, todos eles em mim,
Porque o poeta é irmão do escondido das gentes
Descobre além da aparência, é antes de tudo
Livre, e porisso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem os olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo.

O eu-lírico desse poema, identificado como poeta, diz que tudo vive em mim, ou seja, seu eu não é individual, mas coletivo: Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam / Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza, / O olhar aguado, todos eles em mim. Assim como a antena da raça de Pound, o poeta de Hilst não é só um sujeito, mas carrega na sua subjetividade as sensações universais de cada ser humano, sabendo de cada um / A própria fome. Justamente porque o poeta é irmão do escondido das gentes, está sempre ao lado do oprimido e nunca do opressor, é antes de tudo / Livre, e porisso conhece. A liberdade, oposto essencial da censura, é condição essencial para a criação literária: é preciso ser livre para conhecer a experiência humana por completo. E a fala do poeta não é generalista no palanque, como a dos políticos, mas íntima e intensa – ele fala do seu quarto, com os olhos no espírito do homem. E o que o poeta pede em troca de tudo isso? Hilst repete aqui seu famoso chamamento: Escuta-me. Olha-me. É só isso o que a literatura deseja: uma escuta profunda, feita com atenção e afeto. Pois enquanto respirar um poeta, um artista, a humanidade continuará vivendo, pulsando no seu peito, no seu texto, resistindo ao esquecimento da história.

  1. A literatura é uma forma de amor.

            Em 1998, quando foi perguntada pelos Cadernos de Literatura Brasileira se a literatura melhora as pessoas, Lygia Fagundes Telles respondeu:
Pode melhorar, sim. Pode desviar do vício, da loucura. Pode estancar a loucura através do sonho. Eu tenho um impulso, que talvez seja um impulso cristão, pelo próximo. Eu tenho vontade de servir ao próximo, verdadeiramente. E a literatura me proporciona isso. E o que eu faço, acredito, com o máximo da competência que me é possível e com amor, com paixão, acaba chegando, de algum modo, no outro. Nunca vou me esquecer de um jovem que ligou pra mim, isso na década de 70, dizendo que estava lendo meus livros e, por causa deles, não queria mais se matar. Eu comecei a chorar no telefone, perguntei o que ele tinha lido para pensar assim, em que texto ele sentiu que não queria mais morrer, e tal, eu estava muito nervosa, e o rapaz, muito emocionado também, respondeu que não sabia, só sabia que não queria mais se matar. Eu perguntei: "O que é que eu posso fazer por você?" Ele respondeu: "A sra. já fez". E desligou o telefone. Nunca mais ligou, mas eu tenho certeza que ele está por aí, em algum lugar. Esse episódio me comove até hoje. Eu fico relendo às vezes meus textos, procurando, procurando, qual a palavra, meu Deus, qual a palavra que foi capaz daquilo? Nunca vou saber. Mas essa certeza de que posso servir ao próximo, essa esperança, não vai desaparecer enquanto eu for viva. É uma forma de amor. Acho que é isso. No fundo, a literatura é uma forma de amor.

            Não é preciso dizer mais.

  1. Pra que serve a literatura? Não serve pra nada.

            Por fim, o último motivo é: para nada. Sem literatura vamos morrer, como morremos sem oxigênio, sem comida? Não. Mas sem ela morremos de outras formas. Leminski resume:
A poesia é o inutensílio. A única razão de ser da poesia é que ela faz parte daquelas coisas inúteis da vida que não precisam de justificativa. Porque elas são a própria razão de ser da vida. Querer que a poesia tenha um porquê, querer que a poesia esteja a serviço de alguma coisa é a mesma coisa que querer que o orgasmo tenha um porquê, que a amizade e o afeto tenham um porquê. A poesia faz parte daquelas coisas que não precisam de um porquê.

            A literatura é tão poderosa justamente porque a sua essencialidade não é utilitarista. Ela não serve a nenhum fim específico, e por isso serve a todos os fins. Ela não pactua com nada, não se alia a nada, e também não precisa de nada. Um texto que está no coração de um leitor, no corpo de um performer, na parede de algum grafiteiro, não precisa do livro para existir. Para que serve a literatura? Ela não serve a nada, a ninguém. É o oposto absoluto de servidão.

Para encerrar, retomo Italo Calvino, evocado no início desse ensaio. Assim ele termina a introdução de Por que ler os clássicos:
A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos. E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran [...]: "Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. 'Para que lhe servirá?', perguntaram-lhe. 'Para aprender esta ária antes de morrer' " .

            Falando com Calvino e expandindo para além dos clássicos, ler é melhor do que não ler. Ouvir uma música é melhor que não ouvir. Assistir a um filme, uma novela, uma série, é melhor do que não assistir. Para quê? Para ler, ouvir e assistir esses textos – ter esse prazer – antes de morrer. Simples assim.
A literatura, a arte, a cultura, são o motor da existência humana. Sem elas, não existimos. Se expulsarem os poetas da república, como queria Platão, não haverá mais república, país, nação. Não haverá nada. Sem a arte e a literatura não somos seres humanos: somos uma massa orgânica que nasce e morre. Não há “hora”, portanto, para a literatura. A sua hora é ontem, hoje, agora: sempre.





[1] Escritora, pesquisadora e mestranda na UFMG.
[2] Textos poéticos comuns na Idade Média nos quais um eu-lírico feminino declara o seu amor e sua fidelidade ao homem amado.