Vanessa Maranha
Lygia Fagundes Telles |
Com uma
carreira vasta, pontuada por uma produção admirável e com a rara qualidade de
ser quase unanimemente reconhecida por público e crítica, dois livros da
produção mais tardia de Lygia Fagundes Telles e que passaram quase
desapercebidos, tal a magnitude de sua obra pregressa, merecem destaque: A noite escura e mais eu e Conspiração de nuvens.
Em A noite escura e mais eu, belo livro de
contos de 1995, reeditado pela Companhia das Letras em 2009, tem-se quase uma
síntese estilística de sua obra: estão ali o fantástico, a crueldade humana, o
narrador insólito (em “O crachá nos dentes”, a autora apresenta um conto sob o
ponto de vista de um cão narrador e, em “Anão de Jardim”, a estátua de pedra é
quem conduz a trama).
“Uma branca
sombra pálida”, que evoca a canção “Whiter Shade of Pale”, de Credence
Clearwater, é das narrativas mais geniais de todo o seu acervo de contos,
revisitando seus temas íntimos: a tocar no suicídio de uma jovem, na
ambiguidade sexual; uma mãe que é quase o desdobramento descritivo da pulsão de
morte freudiana.
Nesse
conto, a autora tangencia a loucura trabalhando com maestria a caracterização
psicológica a partir das ações e pensamentos das personagens. Com Conspiração de nuvens, Lygia fecha o
ciclo memorialístico iniciado em 1980 com A
disciplina do amor; retomado em 2000, no volume Invenção e memória e continuado em 2002, com Durante aquele estranho chá.
Conspiração de nuvens, nesse arremate, segue a linha de engajamento
pela escrita límpida e inconfundível de Lygia e permite a ficcionalização das
memórias, demonstrando a tênue fronteira a separar (ou não) a ficção da
realidade, na ideia heideggeriana que indica ser a arte o “pôr-se em obra da
verdade”.
Esse o
ponto mais impactante de toda a escrita de Lygia Fagundes Telles: adensar-se em
busca de alguma “verdade” sem aferrar-se a nenhum sistema rígido de verdades.
Se a ideia de “clássico” baseia também o estatuto de autores que conseguem ser
plurais mantendo sua identidade literária mesmo quando se debruçam sobre suas
lembranças pessoais, Lygia é, sem dúvida, um clássico.
O livro agrega dezenove crônicas bem alinhavadas de lembranças sem
ordenação cronológica, no mote explicitado pela própria escritora: “a memória
enleada de invenção”. Em “A quermesse”, ela faz uma viagem de volta à infância
repleta de imagens, perguntas e temores, confirmando a tese de Santo Agostinho,
que dizia ser a memória a casa da alma.
No livro,
a autora não se furta às reminiscências do amor por seu marido, já falecido,
Paulo Emílio Salles Gomes, o crítico “de voz flamante” e que em pelo menos três
crônicas será afetuosamente citado.
O texto
“Conspiração de nuvens”, a emprestar o título para a antologia, narra a moção
encabeçada em 1976 por Rubem Fonseca, ladeada por Nélida Piñon, entre outros,
durante a fase mais sombria da ditadura militar no Brasil e denominada “O
Manifesto dos Mil”, para se opor à censura que vinha mutilando
indiscriminadamente obras literárias de grande valor, quando não as vetava e
também contra os horrores que surdamente ecoavam dos porões do regime de
exceção.
Lygia
Fagundes Telles relembra ainda amigos caros como Décio de Almeida Prado e Érico
Verissimo. Dedica páginas quase líricas a Machado de Assis e Álvares de
Azevedo, amalgamando, na forma, o acento ensaístico ao da contística.
“Tunísia”,
talvez o mais literário dos textos que escolheu para compor a obra, é também o
mais sinestésico de todos e, por isso mesmo, leve como um cartão-postal: nele o
leitor alucina cantos berberes, olhos núbios, perfume de jasmim, suks e
tapeçarias magníficas.
Finalmente,
num texto impecável, intitulado “O chamado”, a autora de Ciranda de pedra discorre sobre questões que julga relevantes para
o seu êxito nas letras. A principal delas, a disciplina adquirida na prática de
esportes, em especial, a esgrima. Sobre a vocação, escreveu: “obedecer à
vocação seria simplesmente exercer o ofício da paixão, era o que me ocorria
quando diante da pequena mesa abria o estojo com as canetas, escolhia a pena
preferida, molhava no tinteiro e começava a escrever minhas histórias (...) Na
vocação não está incluída a glória, tantas vocações verdadeiras e o silêncio,
ninguém leu, ninguém viu”, avisa.