Mirian Hisae Yaegashi Zappone
Imagem: Regina Dalcastagnè
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Embora esteja mais diretamente
relacionada à instituição escolar e com ela, à formação e à prática de
professores, o problema da leitura no Brasil abarca outros espaços (do privado
de cada lar até as livrarias, das bibliotecas à internet, do gabinete de
ministros até a banca da esquina) sobre os quais nem sempre, ou melhor, quase
nunca, o leitor pode interferir. Isso porque se relacionam às questões do
acesso ao livro e ao impresso que permeiam o político e permitem matizar a
questão da leitura como prática que depende exclusivamente das escolhas do
leitor e de sua “capacidade de leitura”.
Talvez, para alguns, eu não saia
do lugar comum, mas acho que vale a pena tentar enxergar a questão da leitura
em nosso país através de uma ótica que leve em conta dados numéricos sobre as
condições de acesso ao livro e ao impresso e que se colocam como questões
sociais que afetam diretamente as práticas de leitura dos indivíduos. Na
verdade, fico muito desconfiada do discurso que tende a analisar nossa condição
cultural, onde se insere a prática da leitura, como reflexo de um suposto
desafeto que o brasileiro nutre pelas “coisas do espírito”. Seríamos nós
preguiçosos em potencial, desinteressados pela leitura e realmente inaptos para
ler e entender o que lemos ou os resultados de tantos testes de leitura e mesmo
o desempenho de nossos estudantes em avaliações institucionais (ENEM, ENADE,
Prova Brasil) em parte, são resultados de anos de ausência de uma política
efetiva para o desenvolvimento da leitura e de facilitação de acesso ao livro?
Fico, é claro, com a segunda possibilidade, para a qual arrolo alguns dados.
Desde 2001, um grupo de
instituições formado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), pela Associação
Brasileira de Celulose e Papel (BRACELPA), pelo Sindicato Nacional dos Editores
de Livros (SNEL) e pela Abrelivros realiza uma das maiores pesquisas de leitura
no Brasil, a Retratos da Leitura. Ela
cobre todos os estados a fim de identificar a penetração da leitura de livros
no país, o acesso dos brasileiros a livros e impressos e os leitores efetivos.
Essa pesquisa tem servido, em suas
várias versões (2000, 2007, 2011 e 2016) para que se relativize a ideia
corrente entre nós de que brasileiro é um não-leitor e de que não gosta da leitura. Desafiando
este estereótipo, a pesquisa mostra que a leitura é uma prática bastante
presente na vida do brasileiro. Dentre o universo pesquisado (população com 5
anos ou mais e que correspondeu a 187 milhões de pessoas), os leitores efetivos
(aqueles que leram ao menos um livro nos últimos 3 meses anteriores à pesquisa)
representaram 56% da amostra, o que projeta uma estimativa populacional de 104
milhões de leitores! Pessimistas de plantão podem achar esses dados pouco
contundentes para uma população que ultrapassa os 200 milhões de habitantes.
Por isso, um paralelo com outros países pode ser frutífero. Na França, uma
pesquisa semelhante realizada em 1989 detectou um índice de 49% de leitores
efetivos, o que equivalia a 23,5 milhões de leitores. Portugal, em 1995, tinha
um índice de 37% dessa mesma categoria de leitores. Como se vê, nossos 56% de
leitores efetivos são expressivamente numerosos.
Mas, o que gostaria de destacar
dessa pesquisa é que os índices de todos os tipos de leitores têm uma relação
direta com os fatores escolaridade e classe econômica. Os resultados de 2016
reforçam uma tendência percebida desde 2007: quanto maior a escolaridade e a
renda, maior é o hábito de leitura de livros, assim como também é maior entre
aqueles que ainda são estudantes, evidenciando como questões econômicas e
culturais relacionam-se diretamente com a leitura. Isso leva a duas conclusões
óbvias, mas que parecem não ser levadas em conta quando se coloca o peso do
nosso mau desempenho em leitura na inépcia dos estudantes: 1) que a escola,
mesmo com todas as suas arestas, ainda é a principal formadora de leitores e
divulgadora da leitura; 2) que as condições econômicas de uma população têm
relação direta com seus hábitos culturais, nos quais se inclui a leitura.
Sem entrar na questão da escola, o
que muitos já fizeram para debater a leitura, detenho-me na questão econômica.
Parece-me pouco provável que, num país onde a vergonhosa desigualdade social
produz 53 milhões de pobres dentre os quais 22 milhões vivem em estado de
miséria, as pessoas canalizem seus recursos para a compra de materiais de
leitura quando o grande dilema é, ainda, sobreviver. Some-se a isso o alto
preço dos livros no Brasil devido às baixas tiragens. Ora, se não se pode ler
por não se poder comprar o que ler, pensa o cético, por que não emprestar
livros de uma biblioteca?
Aí reside outro problema que ajuda
a pensar nas dificuldades da leitura neste país. O Brasil possui,
inacreditavelmente, um número irrisório (também derrisório) desses lugares de
culto à leitura. Espalhadas num território de 8.511.996 Km2, salpicado
de cidades, há, segundo dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas -
SNBP , aproximadamente 6.102 bibliotecas no país. Destaque-se que esse número
cresceu vertiginosamente a partir de 1996, quando o Minc implantou, em 2009, o Programa Uma Biblioteca em Cada Município e
os números passaram de 3.500 para o número atual. Indicadores internacionais
apontam que o número ideal de bibliotecas é de uma para cada cinco ou seis mil
habitantes o que, no caso brasileiro, coloca a demanda de pelo menos 18 mil bibliotecas!!!
Esse, contudo, é um problema
apenas de quantidade, pois quando se fala em qualidade, são outras as questões.
Com exceção da Biblioteca Nacional (a décima biblioteca do mundo) e de algumas
centenas de bibliotecas de centros universitários, as insuficientes bibliotecas
brasileiras carecem de acervo atualizado, de espaço físico adequado para
atender o público, bem como de pessoal especializado para garantir seu bom
funcionamento, mesmo com a implantação de algumas políticas públicas bastante
férteis como o Programa Nacional Biblioteca na Escola, mas que atinge apenas
bibliotecas escolares.
Mesmo quando o problema não é
dinheiro para aquisição de livros e impressos, as condições não são muito
favoráveis. Poucos são, ainda, os pontos de venda. Segundo informações da
Associação Nacional de Livrarias e da Distribuidora de Bancas da Editora Abril
(Dinap), as livrarias somavam 3.095 pontos em 2014 e as bancas de jornais e
revistas em torno de 32 mil. Cidades como a minha, Maringá, no Paraná, com
direito à megastore e livrarias de
bom porte são raridades comparadas aos tantos rincões do gigante Brasil.
Some-se a esse estado de coisas o
longo período de ausência de campanhas mais efetivas de incentivo à leitura.
Leitores não se formam de uma hora para outra e um “país letrado” tem muito a
ver com ações políticas de seus dirigentes. O Brasil tem dado saltos
importantes em relação à sua maturação como país de letras: profissionalizou
seus escritores, conta com um parque gráfico considerável capaz de atrair empreendedores
estrangeiros para seu mercado livreiro e consolidou, finalmente, um público
leitor. O que resta a fazer?
A resposta está na ampliação do
número de leitores e no seu aprimoramento. É nesse sentido que entram as
campanhas governamentais e a busca de uma política para o livro e a leitura que
possam ser levadas a sério. A escola tem, como se viu, papel fundamental, mas
não consegue agir sozinha. Acabo de realizar uma pesquisa sobre práticas de
leitura na escola e o que constatei é que os professores conhecem, como a
sociedade, a importância da leitura, mas as confusões teóricas permanecem e se
refletem em atividades de ensino pouco produtivas. Culpa do professor? Muito
pouco.
É preciso relembrar que há
determinadas áreas de nossa vida social que demandam uma ação mais direta do
Estado. Penso que a leitura é uma delas: há espaço para ações individuais, mas
o essencial precisa ser feito pelo Governo, através de investimentos na
formação dos profissionais ligados à educação, através da melhora das condições
gerais de acesso ao livro e ao impresso e de um movimento sólido que justifique
e mantenha a leitura na escola como meio para a formação de indivíduos letrados, no sentido do termo letramento, exposto pela professora
Magda Soares, que abarca não só o domínio das técnicas de leitura e escrita,
mas também seu uso frequente e competente no âmbito das práticas sociais
desenvolvidas pelos indivíduos.
Nesse sentido, justifica-se uma luta
pelo direito à leitura, nos mesmos moldes como se luta pelo direito ao ensino
gratuito de qualidade, por condições dignas de vida, de segurança, de saúde, de
igualdade. Lugares comuns nos discurso sobre leitura? Alguns sim, outros não,
mas que servem para matizar um pouco mais a questão e discordar do ponto de
vista dominante, que vê simplesmente na “indisposição” e na “inépcia” do
brasileiro os pingos para todos os “is”.