Leocádia Aparecida Chaves
Imagem: Thor Lindeneg |
Peter Pál Pelbart em Vida Capital : Ensaios sobre biopolítica
(2011), ao discutir sobre as agonias da contemporaneidade, nos lembra de que
não há um espaço privilegiado para resistência. De acordo com as reflexões do
filósofo, em todo e qualquer lugar pode-se provocar reviravoltas, disparar algo
que atravesse a totalidade; dessa perspectiva, afirma: não é preciso genialidade no gesto de resistir!
Pois bem, tomando essas
concepções como ponto de partida, trago para este ensaio o convite feito por Glória
Anzaldúa – mulher lésbica, intelectual e ativista – às mulheres escritoras do
terceiro mundo (2000): escrevam! Ao fazê-lo, enuncia em que
medida concebe a escrita do subalternizado como ato de resistência:
Escrevo para registrar o que os
outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim,
sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me
descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os
mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para me
convencer de que tenho valor e o que tenho para dizer não é um monte de merda
(ANZALDÙA, 2000, p. 232)
Destaco que essas
cartas, datadas dos anos de 1980, para além de nos convidarem a pensar sobre a
potência política do gesto de escrever a si mesmo, revelam o fortalecimento de
um feminismo Outro – o não branco –, elemento fundante para a implosão da
concepção universalizante do gênero feminino bem como para as discussões sobre identidade
de gênero e sexualidade expandidos pela teoria queer a partir dos anos de 1990, conforme análise de Sara Salih em Judith Butler e a teoria queer (2013).
Dessa forma, não é
gratuito que tenhamos na década de 1980, aqui no Brasil, um marco histórico no
campo literário: a publicação das primeiras autobiografias marcadas pelo
trânsito identitário quanto ao gênero, e, por isso, territorializadas como
“dissidentes”, pois rasuradoras do padrão normatizador para a vivência do
masculino e feminino. Estamos nos referindo às obras: A queda para o alto (1982) de Anderson Herzer, publicada pela Editora
Vozes; Erro de Pessoa: João ou Joana?
de João W. Nery (1984), publicada pela Record e Meu corpo, minha prisão: Autobiografia de um transexual (1985) de
Loris Ádreon, pela Marco Zero, que revelam tanto o trânsito identitário do
masculino para o feminino como a obra de Loris Ádreon, quanto o do feminino
para o masculino, como as obras de Anderson Herzer e João W. Nery.
Também não é gratuito
que essas obras tenham sido publicadas pelas editoras citadas, pois como
analisa Flamorion Maués no artigo Livros,
Editoras e oposição à Ditadura (2014), essas entre outras, se constituíram,
em fins da década de 1970, em núcleos de resistência à ditadura civil militar
brasileira (1964-1985), fazendo de seus projetos editoriais front literário para uma
(...) literatura política:
obras de parlamentares de
oposição, depoimentos de exilados e ex-presos políticos, livros-reportagem,
memórias, romances políticos, romances-reportagem, livros de denúncias contra o
governo, clássicos do pensamento socialista. (MAUÉS, 2014, p. 91)
Nesse sentido é que situo a publicação dessas autobiografias,
pois ainda que não possam ser consideradas como “literatura política” no estrito
senso, acredito que seja inegável o gesto de combatividade política tanto por
parte de seus escritores quanto por parte de seus publicadores, pois em suas
respectivas agências rompem com um silenciamento histórico imposto aos corpos
“dissidentes”.
Entretanto, conforme
Amara Moira analisa em De quando elas e
eles contam suas histórias: Uma breve genealogia das autobiografias trans
mostra a potência dessas obras (2018), embora esses projetos editoriais tenham
sido concebidos sob o estigma cissexista
e patologizante quanto essas experiências identitárias e dessa forma serem lidos como transfóbicos,
indago aqui os paradoxos dessa
empreitada no tempo em que “nasceram”.
Nesse contexto de
reflexão, importa lembrar, por exemplo, que somente em 01/03/2018 o Supremo
Tribunal Federal em julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
4275 reconhece juridicamente que a auto-definição quanto ao gênero é um direito
inalienável circunscrito à autonomia de cada uma/um de nós independente de
laudo médico. Portanto, tornar públicas, na década de 1980, narrativas que
atravessam o discurso de totalidade quanto ao “ser homem” e “ser mulher” numa
sociedade sob o domínio militar, no meu entendimento, também pode ser lido como
um gesto de resistência.
Quanto a esse paradoxo,
saliento, em especial, a “subversividade” da feminista e ativista Rose Marie
Muraro, em responder pela publicação de duas dessas três obras: a de Herzer e a
de Loris; quanto à última, já nos derradeiros suspiros do regime militar.
Destaco que a atuação de Muraro, na Vozes, é reconhecida como fundamental na
resistência ao regime; registra-se, inclusive, que mesmo “pós-ditadura”, em 1986, foi “expulsa”
da editora pelo Vaticano em função da publicação de sua obra Por uma Erótica Cristã, conforme
entrevista a Ainà Vietro.
Sob essa perspectiva,
destaco que a obra de Anderson Herzer, para além de dizer sobre o seu trânsito
identitário, denunciará o regime de exceção que o cerca por meio das violências
que sofreu nos últimos três anos de sua vida na FEBEM, um dos panópticos do
regime militar. Salienta-se, sobretudo, que as torturas inflingidas ao seu
corpo lido como dissidente eram mais severas do que as efetivadas sobre os
corpos reconhecidos como “normais”:
O diretor da
unidade (...) não me aceitava tal qual eu era, ele queria que eu fosse como as
outras meninas, que usasse roupas diferentes (...) queria, de qualquer modo,
que eu raspasse as pernas e usasse vestido, isso sem contar as humilhações que
ele me fazia passar perante todas, com palavras de baixo calão, como por
exemplo, (...) – Machão sem saco, machão
sou eu que tenho duas bolas. (HERZER,1982, p. 72)
Herzer era reconhecido
na instituição como “ameaçador” tanto por “borrar” os padrões identitários
quanto ao seu gênero – pois registrado como Sandra, reconhecia-se como Anderson,
quanto por escrever poemas. Sobre eles cito aqui um trecho do Esquecido poeta
morto: E meu nome negro será terra ressecada
/ como a colheita que morreu sem dar o fruto / e na distância do azul vou ser
imagem / e embaçado pelas nuvens, serei luto (...) (HERZER,1982, p. 152). Quanto
a esse ato de resistência – escrever suas dores e o meio que o violenta – denuncia
em seu relato o confisco de seus escritos pelo Diretor da Unidade da FEBEM de
Santa Maria, Sr. Humberto Marini Neto, que justifica a “recolha” do material tendo em
vista um projeto de publicação em andamento.
Sobre essa engenharia
de tortura estatal, Ana Flauzina – intelectual e mulher negra ativista, em
entrevista ao jornal online El País em 18/03/2018, nos lembra que
foi estruturalmente arquitetada e implementada no século XVI pelo projeto
colonizatório escravagista dito “modernizador”. Porém, também salienta que ainda
na atualidade o sistema capitalista, sexista, racista, cisheteronormativo se
sustenta nessa mesma engrenagem de extermínio de minorias identitárias. Nesse
contexto, é fundamental destacar o aumento dos registros quanto aos crimes de
ódio em nosso país, em especial, os de transfobia, que em geral, conforme demonstra Felipe Bruno
Martins Fernandes em Assassinatos de
travestis e “pais de santo” no Brasil: homofobia, transfobia e intolerância
religiosa (2014), são cometidos com requintes de crueldade – pioneiramente
denunciados por Herzer.
A
queda para o alto, portanto, é um marco quanto a
enunciação de sujeitos cujas identidades ao fim e ao cabo colocam em xeque um modelo hegemônico de identidade e desse lócus
fraturado (LUGONES, 2014) acabam por garantir espaço para rebeldias múltiplas,
inclusive a da memória: Um homem jamais
morre, enquanto sua existência for recordada (HERZER, 1982, p. 152).
Destaca-se que Herzer morre poucos meses antes da publicação de seu livro como
relata Eduardo Matarazzo Suplicy (HERZER, 1982, p. 15-16), que apresenta dúvidas
quanto a causa de sua morte: suicídio ou provocado
por terceiros? Nesse sentido, a publicação
de sua obra, por decisão de Muraro, intuo, parece se vincular, em alguma
medida, ao projeto Brasil: Nunca mais!
(1985), viabilizado pela mesma Editora, que de acordo com Janaína de Almeida
Teles em Ditadura e repressão: locais de recordação
e memória social na cidade de São Paulo (2015) teve como norte um conjunto
de operações de memória sobre a ditadura no período de redemocratização.
Já a obra Meu corpo, minha prisão: Autobiografia de um
transexual publicada três anos após
a de Herzer, permitirá ao leitor uma outra aproximação com a experiência de
trânsito identitário, embora ambas as
narrativas se contextualizem no mesmo período – meados dos anos de 1960 e
década de 1970. Loris, diferentemente de Herzer, branca, oriunda de uma família
nuclearmente estruturada e com recursos materiais, se circunscreve num outro
lugar de fala; essa localização social lhe permitirá, por exemplo, mudar-se
para Manaus e lá completar os seus estudos bem como acessar leituras e
informações sobre “casos como o seu” na biblioteca de um médico da família. Por
meio de seu relato, portanto, seremos confrontados, com uma voz que ao buscar
uma “verdade sobre si” se entenderá “nascida em um corpo errado”, perspectiva
que flerta, principalmente, com o título da primeira autobiografia de João W.
Nery em Erro de Pessoa: João ou Joana?, ressignificada em sua segunda obra Viagem solitária : memórias de um transexual trinta anos depois (2011),
aspecto discutido por Moira (2018).
No entanto, ainda que a
escritora tivesse outra realidade familiar e outros acessos ao mundo, sua
existência na “diferença”, fatalmente, foi marcada por violências e torturas
desde a mais tenra infância. Quanto a sua vivência escolar, em fins da década
de 1970, em Manaus, relata:
Quando se iniciaram as aulas no
meu último ano de ginásio, foi que as coisas se agravaram a um ponto
insuportável para mim. (...) – “Veja, ele não tem pelos nas pernas! Olhe, as
coxinhas dele como são redondas e
macias, são como as de meninas! Escutem a fala dele! É fala de mulher! O
bumbum dele não é de homem nem aqui, nem na China!” (...) Uma vez, lembro-me
fui reclamar ao professor de português sobre um aluno que se sentava atrás se
mim, pois cada vez que eu levantava para apanhar alguma coisa, passava a mão em
meu traseiro. O professor olhou para a classe, depois para mim por sobre os
óculos e disse: “ É simples a solução para esse caso: casa-se com ele”.
(ÁDREON, 1985, p. 59)
Destacamos, inclusive,
que se por um lado, a sua condição econômica lhe permitiu finalizar seus
estudos e, posteriormente, com a herança da família, realizar a cirurgia de confirmação
de gênero (LANZ,2017, p. 403), também permitiu que seus pais lhe impusessem um
tratamento hormonal na adolescência visando acelerar o desenvolvimento de evidências
reconhecidas como masculinizantes em seu corpo. “Recurso” médico que operou
como tortura sobre Loris, catalisando um quadro de sofrimento mental agudo levando-a
a uma tentativa de suicídio na juventude:
Impelido pela dor e pelo ódio que
fervia em meu coração, soltei um agudo grito, um tolo desabafo perante os
demais, visto que não tinha outra forma de extravasar minha revolta. Prof. Normand apertou fortemente meu braço
dizendo: - “Calma, calma menino, o mundo não vai se acabar por causa de uma
injeçãozinha dessas, na vida existem coisas piores!” (ÁDREON, 1985, p. 54)
Destaca-se que a
narrativa de Loris nos aproximará, fundamentalmente, do espaço doméstico e dessa
perspectiva permitir ao leitor vislumbrar como o espaço pequeno-burguês da
família, socialmente reconhecido como de aconchego e confiança, também pode ser
lido como panóptico, pois espaço de vigilância e tortura para os corpos dissidentes
como o seu o que ainda hoje localizamos em nossa sociedade.
Essas obras, portanto, como
que “aceitando” o convite de Alzandúa (2000), dizem suas dores e angústias com língua de fogo e por esse meio desnudam
- sob regime militar - a banalização do mal em que viveram, desde o íntimo do
lar ao cotidiano das instituições estatais. Escrituras-prova que o
que têm para dizer não é um monte de merda e dessa forma se configurarem
como espaço de resistência tanto pela memória do passado, quanto por nos permitir
desnudar o nosso presente - tempo em que
dezenas de pessoas, diariamente, ainda são exterminadas por serem “diferentes”:
velhas-novas ditaduras.