Regina Dalcastagnè
Foto: Regina Dalcastagnè |
Os espaços urbanos são lugares habitados
por narrativas. Nos pontos de ônibus ou nos palcos, nas livrarias ou nas bancas
de revistas, nos muros das cidades ou nas galerias, nos cafés ou nos
supermercados elas circulam, se expandem e se desfazem, muitas vezes, sem merecer
atenção. Ao mesmo tempo em que se constituem na fricção com esses espaços, elas
nos dizem deles e daqueles que os frequentam, ou dos que não estão autorizados
a frequentá-los. Acompanhar esses deslocamentos pode nos ajudar a entender
melhor tanto o surgimento de algumas temáticas urbanas na produção literária
recente quanto a sua visibilização e legitimação dentro de nossa sociedade. Isso
porque pensar o espaço implica pensar a maneira como os sujeitos o praticam,
observando suas hierarquias e seus constrangimentos.
A escritora Carolina Maria de Jesus tinha
uma percepção aguda dessa relação já nos anos 1960, em seu Quarto de despejo: “Quando estou na cidade tenho a impressão de que
estou na sala de visitas com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludo,
almofadas de cetim. E quando estou na favela tenho a impressão de que sou um
objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. É especialmente
reveladora, aqui, a aproximação entre espaço e corpo. O fato de ser obrigada a
morar num lugar feio e sujo faz com que ela se perceba como um trapo
descartado. Talvez porque, como dizia Pierre Bourdieu, em La misère
du monde, “as imposições mudas dos espaços
arquitetônicos se dirigem diretamente ao corpo, obtendo dele a reverência e o
respeito que nascem do distanciamento”.
Em nossa literatura é comum que os contatos entre personagens de diferentes estratos sociais sejam apenas episódicos.
Quando representados, quase sempre estão marcados pela violência – mas, aí,
costuma-se privilegiar a violência aberta com que por vezes se expressam
integrantes das classes subalternas, em detrimento da violência silenciosa,
estrutural, que é exercida sobre os dominados. Desaparecem as humilhações
sofridas pelas personagens pobres, que saem da periferia tomando vários ônibus
para chegar a uma cidade que não lhes pertence, nem as acolhe. Desaparecem os
constrangimentos diários, as ofensas miúdas, o embate com as autoridades, a
necessidade constante de explicações para a sua simples presença.
Daí a importância de se observar tanto o
desconforto vivido por essas personagens nesses espaços hostis quanto as
respostas de corpos insubmissos que decidem ocupar lugares que não lhes são
destinados. Afinal, o confronto entre corpos socialmente construídos para
ocuparem espaços diferentes é um aspecto central estão em cena membros de
grupos sociais – mulheres, negros, pobres, velhos, homossexuais, deficientes
físicos – que costumam ser marcados pelo discurso dominante justamente por suas
características corporais. Discurso que constrói esses corpos como o
“diferente” e, a partir daí, os assinala como “feios, sujos, manchados,
impuros, contaminados ou doentes”, forçando-os a lidar, muitas vezes em
silêncio, com a aversão ou a condescendência dos grupos privilegiados, como
lembrava Iris Marion Young em Justice and
the politics of difference.
Um lugar interessante para se observar o
impacto do espaço físico nos corpos de personagens pobres é o supermercado.
Local de excessos, por onde os consumidores de classe média transitam com a
desenvoltura que o dinheiro lhes oferece, ele se apresenta como acessível a
todos, embora não passe de mais um território cercado, com regras rígidas e
etiqueta própria, como todo estabelecimento comercial. Não é um lugar para quem
não tem dinheiro – o que pode ser denunciado muito antes de se chegar ao caixa,
seja pela forma como se está vestido(a), seja pelos gestos, demasiado
expansivos ou excessivamente constrangidos. Mas também não é um espaço
impermeável, como algumas lojas caras de um shopping center, por exemplo.
Justamente por isso é o ambiente ideal para se analisar as inúmeras
possibilidades de representação das experiências de inadequação vividas por
personagens pobres em determinados espaços, nas poucas obras literárias que se
detêm a narrá-las.
Em Guia
afetivo da periferia (2009), Marcus Vinícius Faustini nos leva para o
supermercado no fusca do seu padrasto, logo que chega o salário do mês. O autor
conta da alegria que era para ele, menino, entrar no carro com o padrasto e a
mãe, sair de Duque de Caxias e ir para a Casas da Banha na Avenida Brasil, no
Rio de Janeiro, para fazer as compras. No caminho, o padrasto contava a mesma
história, todas as vezes: “Eu vi a Avenida Brasil no barro”. É daí que se
constrói a memória afetiva desse lugar para o narrador, uma memória que se soma
à memória mais antiga do padrasto. A descrição do espaço do supermercado passa
pela expectativa do leite condensado, que nem sempre era comprado, pelo passeio
cauteloso com o carrinho pelos corredores, pelas dimensões gigantescas do
prédio, pela quantidade de produtos e, principalmente, pela refeição feita na
lanchonete do supermercado: macarrão com carne e catchup.
A cena é curta, mas compõe esse espaço
como um lugar de lazer regrado. As possíveis ansiedades dos pais aparecem na
contagem do dinheiro antes da saída, na declarada impossibilidade de comprar o
que iria além do absolutamente essencial, na proibição do menino de subir no
carrinho (para não amassar as compras). O supermercado aparece, em
contraposição ao mercadinho perto de casa, como o espaço da fartura, com suas
dimensões ampliadas, as várias marcas de produtos expostos. Espaço que o
menino, de algum modo, parece poder dominar – ao menos em sua rememoração
escrita muitos anos depois.
É bem diferente a situação do jovem
trabalhador do supermercado no conto “Pão doce”, de Ferréz (no livro Ninguém é inocente em São Paulo, de 2006).
Em vez de um espaço de lazer com a família, o lugar é fonte de desgaste e
humilhação. Os longos corredores e a infinidade de produtos são o martírio do
rapaz, que tem de percorrê-los ininterruptamente para fazer a reposição do que
era levado pelas pessoas: “quanto mais eu repunha a mercadoria, mais as pessoas
compravam. Acabava o macarrão, eu buscava o palete e, quando chegava, o arroz
também estava no fim. Logo que repus o arroz, o feijão e o óleo estavam no fim
também. Toda vez que eu tentava passar com o carrinho, as pessoas reclamavam. Estava
incomodando todo mundo”.
Ao contrário do “não lugar” de Marc Augé –
definido como um local de passagem, que ele, evidentemente, imagina apenas pela
perspectiva dos consumidores –, o supermercado nos é apresentado pelo olhar dos
que trabalham ali, como espaço de exploração e de hierarquias profundamente
marcadas e todo dia reencenadas. O jovem que, como no outro livro, nos narra em
primeira pessoa, precisa conviver com as humilhações diárias de gerentes e
seguranças. Não só sobre si, mas também com os que frequentam o supermercado,
uma vez que ele nos descreve a diferença entre o tratamento dado aos ricos que
furtam e aos pobres. O tom da narrativa, que reflete, obviamente, os
sentimentos do rapaz, é de constante revolta e cansaço, culminando com o
momento em que o gerente se aproxima para reclamar do cheiro de suor de seu
corpo. É quando ele joga tudo para o ar e vai embora – mais um desempregado
pelas ruas de São Paulo, como o homem que entra no supermercado em Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz
Ruffato.
Ali, não há experiência de lazer possível,
nem lugar para algum diálogo desaforado. O protagonista, descrito em terceira
pessoa como o “negro franzino, ossudo, camisa de malha branca surrada calça
jeans imundo tênis de solado gasto que empurrava um carrinho-de-supermercado
havia cerca de meia hora”, é seguido nos corredores pelo “segurança, negro
agigantado, espadaúdo, impecável dentro do terno preto”. A tensão vai crescendo
enquanto o “negro franzino” coloca leite em pó, fraldas e mamadeira dentro do
carrinho, depois retira, devolve à gôndola, volta e coloca tudo de novo no
carrinho. Os gestos de desconforto e insegurança do homem diante dos produtos, e
talvez das câmeras do supermercado, são interpretados pelo “negro espadaúdo” e
pelo chefe de segurança como uma tentativa de camuflagem para um roubo. Daí a
violência contra ele e o recurso direto à polícia, mesmo com o homem se
explicando enquanto apanha: que estava ali porque lhe nascera o filho, que
estava desempregado, que pensava em pedir que alguém lhe pagasse as compras,
apesar da vergonha.
O supermercado, assim, muito mais do que
um espaço com pé direito alto, longos corredores e uma imensidão de produtos a
serem infinitamente levados e repostos, é o lugar da vigilância, das câmeras de
segurança, sempre prontas a encontrar o gesto suspeito, o movimento indesejado.
E a personagem de Ruffato, sem dinheiro, com roupas inadequadas e com um corpo
que revela seu desconforto, está ocupando um espaço indevido; por isso o “negro
franzino” será expulso e, mais do que isso, punido. É a ciência dessa
possibilidade que torna alguns espaços proibidos, mesmo quando nos pareçam
relativamente abertos a todos.
Nos três exemplos acima, as narrativas
dessa relação do pobre com o espaço do supermercado, apesar de significativas,
são muito breves. A situação é tratada com mais vagar, e muita sutileza, em Passageiro do fim do dia (2010), de
Rubens Figueiredo. Como no Guia afetivo
da periferia, temos ali toda a preparação anterior para a ida ao
supermercado. No lugar do menino e seus pais, um velho aposentado por invalidez
e sua cunhada. Em vez do dinheiro contado, o vale de compras, arduamente
conquistado num programa de assistência social do governo. No lugar do fusca,
“o brasão masculino do padrasto”, eles vão a pé até o supermercado, para
economizar as passagens do ônibus e poder voltar de táxi com as compras do mês.
O homem chega a ficar excitado com a cena que visualiza: chegar em frente à
casa e retirar do porta-malas, diante do olhar dos vizinhos, as sacolas de
plástico cheias de produtos.
Dentro do supermercado, o velho e a
cunhada ficam extasiados com a quantidade e variedade de produtos a que teriam
acesso: “Havia uma satisfação, uma sensação de força, um alívio que passava
para o corpo e que eles tratavam de aproveitar ao máximo”. Assim, “retardavam o
passeio do carrinho, iam e voltavam pelos corredores, retiravam alguns produtos
que já haviam apanhado e punham outros em seu lugar”, estavam “tão atentos às
mercadorias, que ficavam mais vistosas por causa das luzes brancas e brilhantes
lá do alto, que mal se davam conta da presença de outras pessoas”. Estão, até
este momento, vivendo o prazer do menino de Guia
afetivo da periferia, mas a situação muda quando eles chegam na fila do
caixa e começam a ser olhados e se veem sendo vistos, com seu carrinho
“irregularmente” cheio e sua aparência irremediavelmente pobre.
A ansiedade vai sendo construída de forma
paulatina, num crescendo: o movimento impaciente das outras pessoas na fila, a
cara feia da caixa, a certeza – reafirmada para si mesmos – de que podiam estar
ali porque tinham como pagar. O ápice da tensão se dá quando a caixa do
supermercado, tão mal humorada quanto o carregador do conto de Ferréz, não
consegue passar o cartão do benefício e descobre que sua validade havia
expirado no dia anterior. Então tudo desmorona em torno dos dois velhos, o
corpo esfria, o ar lhes falta, eles são esmagados pela vergonha. É quando a
moça do caixa, munindo-se de uma autoridade nova, que só pode ser exercida
sobre aqueles que nada têm, exige em alto e bom tom que eles devolvam todos os
produtos ao seu lugar nas prateleiras.
Com as pontas dos dedos, a senhora
“empurrava de leve a mercadoria em seu lugar, fazia questão de alinhá-la de
acordo com as outras. Cada produto de que se desfaziam causava mágoa. A
garganta apertada. Nenhum, nem o mais barato deles, foi deixado para trás com
indiferença. O tato, o manuseio dos frascos de vidro, dos potes de plástico, o
formato das caixinhas na mão dos dois um momento antes de abandoná-los em seu
lugar aumentavam a pena”. Angustiados com os olhares que os cercam, com a
zombaria que pressentem, eles também são punidos por estarem em um lugar que não
lhes cabe. E é só quando se veem do lado de fora, na rua, em meio ao movimento
dos carros e ao lixo acumulado pela cidade, que podem expressar sua dor, e
lembrar quem são.
Muitas representações da experiência dos
pobres na sociedade brasileira privilegiam a exposição da violência aberta, na
forma da criminalidade ou da brutalidade policial. Basta lembrar de um romance
como Cidade de Deus, de Paulo Lins,
dos contos de Rubem Fonseca, ou mesmo de filmes como Carandiru e Tropa de elite,
por exemplo. Esse tipo de violência não é estranha aos grupos privilegiados.
Eles sofrem, talvez, modalidades diferentes dela, possuem outras formas de
proteção e mantêm outro tipo de relação com os poderes públicos; ainda assim,
há uma identificação possível. Sobretudo, a violência aberta encontra uma
condenação moral unânime – há uma resposta comum e sem maiores ambiguidades a
ela.
Mas outras formas de violência convivem no
mesmo espaço. O filósofo esloveno Slavoj Žižek, em Sobre la
violencia: seis reflexiones marginales, distingue três tipos de violência. O que
chamei de violência aberta e ele chama de “violência subjetiva” é a mais
evidente, aceita como tal, possui um perpetrador individual identificável, um
“culpado” que podemos condenar. Mas há também uma violência simbólica
(encarnada na linguagem) e uma violência sistêmica, que é fruto das estruturas
sociais. Essas duas últimas determinam a vivência cotidiana, criando entraves e
limitando possibilidades, impedindo as pessoas de decidir suas próprias vidas,
constrangendo-as a privações e humilhações. Justamente por construírem o
cotidiano, passam despercebidas, como algo próprio da natureza das coisas – e
não são vistas como manifestações de violência. A condenação a elas não é
automática, nem categórica; ao contrário, tem de ser disputada politicamente.
A violência simbólica e a violência
sistêmica atingem de maneira muito mais específica os diferentes grupos
sociais. O leitor de classe média bem estabelecida se encontra em situação de
completa exterioridade em relação à experiência daquele que vai ao supermercado
contando os trocados, que tem que devolver produtos no caixa ou que sabe que o
segurança desconfia de sua presença ali. A literatura pode ser um espaço onde
essa perspectiva tenha lugar, permitindo uma aproximação a realidades que são,
reiteradamente, silenciadas. Pode ser um espaço de acolhimento, o que
implicaria na construção de novas estruturas narrativas, mas pode ser também um
lugar de reflexão, impulsionando os leitores a repensarem o modo como ocupam o
mundo.