27 de fevereiro de 2016

Espaços hostis, corpos insubmissos

Regina Dalcastagnè


Foto: Regina Dalcastagnè

Os espaços urbanos são lugares habitados por narrativas. Nos pontos de ônibus ou nos palcos, nas livrarias ou nas bancas de revistas, nos muros das cidades ou nas galerias, nos cafés ou nos supermercados elas circulam, se expandem e se desfazem, muitas vezes, sem merecer atenção. Ao mesmo tempo em que se constituem na fricção com esses espaços, elas nos dizem deles e daqueles que os frequentam, ou dos que não estão autorizados a frequentá-los. Acompanhar esses deslocamentos pode nos ajudar a entender melhor tanto o surgimento de algumas temáticas urbanas na produção literária recente quanto a sua visibilização e legitimação dentro de nossa sociedade. Isso porque pensar o espaço implica pensar a maneira como os sujeitos o praticam, observando suas hierarquias e seus constrangimentos.

A escritora Carolina Maria de Jesus tinha uma percepção aguda dessa relação já nos anos 1960, em seu Quarto de despejo: “Quando estou na cidade tenho a impressão de que estou na sala de visitas com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludo, almofadas de cetim. E quando estou na favela tenho a impressão de que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. É especialmente reveladora, aqui, a aproximação entre espaço e corpo. O fato de ser obrigada a morar num lugar feio e sujo faz com que ela se perceba como um trapo descartado. Talvez porque, como dizia Pierre Bourdieu, em La misère du monde, “as imposições mudas dos espaços arquitetônicos se dirigem diretamente ao corpo, obtendo dele a reverência e o respeito que nascem do distanciamento”.

Em nossa literatura é comum que os contatos entre personagens de diferentes estratos sociais sejam apenas episódicos. Quando representados, quase sempre estão marcados pela violência – mas, aí, costuma-se privilegiar a violência aberta com que por vezes se expressam integrantes das classes subalternas, em detrimento da violência silenciosa, estrutural, que é exercida sobre os dominados. Desaparecem as humilhações sofridas pelas personagens pobres, que saem da periferia tomando vários ônibus para chegar a uma cidade que não lhes pertence, nem as acolhe. Desaparecem os constrangimentos diários, as ofensas miúdas, o embate com as autoridades, a necessidade constante de explicações para a sua simples presença.

Daí a importância de se observar tanto o desconforto vivido por essas personagens nesses espaços hostis quanto as respostas de corpos insubmissos que decidem ocupar lugares que não lhes são destinados. Afinal, o confronto entre corpos socialmente construídos para ocuparem espaços diferentes é um aspecto central estão em cena membros de grupos sociais – mulheres, negros, pobres, velhos, homossexuais, deficientes físicos – que costumam ser marcados pelo discurso dominante justamente por suas características corporais. Discurso que constrói esses corpos como o “diferente” e, a partir daí, os assinala como “feios, sujos, manchados, impuros, contaminados ou doentes”, forçando-os a lidar, muitas vezes em silêncio, com a aversão ou a condescendência dos grupos privilegiados, como lembrava Iris Marion Young em Justice and the politics of difference.

Um lugar interessante para se observar o impacto do espaço físico nos corpos de personagens pobres é o supermercado. Local de excessos, por onde os consumidores de classe média transitam com a desenvoltura que o dinheiro lhes oferece, ele se apresenta como acessível a todos, embora não passe de mais um território cercado, com regras rígidas e etiqueta própria, como todo estabelecimento comercial. Não é um lugar para quem não tem dinheiro – o que pode ser denunciado muito antes de se chegar ao caixa, seja pela forma como se está vestido(a), seja pelos gestos, demasiado expansivos ou excessivamente constrangidos. Mas também não é um espaço impermeável, como algumas lojas caras de um shopping center, por exemplo. Justamente por isso é o ambiente ideal para se analisar as inúmeras possibilidades de representação das experiências de inadequação vividas por personagens pobres em determinados espaços, nas poucas obras literárias que se detêm a narrá-las.

Em Guia afetivo da periferia (2009), Marcus Vinícius Faustini nos leva para o supermercado no fusca do seu padrasto, logo que chega o salário do mês. O autor conta da alegria que era para ele, menino, entrar no carro com o padrasto e a mãe, sair de Duque de Caxias e ir para a Casas da Banha na Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, para fazer as compras. No caminho, o padrasto contava a mesma história, todas as vezes: “Eu vi a Avenida Brasil no barro”. É daí que se constrói a memória afetiva desse lugar para o narrador, uma memória que se soma à memória mais antiga do padrasto. A descrição do espaço do supermercado passa pela expectativa do leite condensado, que nem sempre era comprado, pelo passeio cauteloso com o carrinho pelos corredores, pelas dimensões gigantescas do prédio, pela quantidade de produtos e, principalmente, pela refeição feita na lanchonete do supermercado: macarrão com carne e catchup.

A cena é curta, mas compõe esse espaço como um lugar de lazer regrado. As possíveis ansiedades dos pais aparecem na contagem do dinheiro antes da saída, na declarada impossibilidade de comprar o que iria além do absolutamente essencial, na proibição do menino de subir no carrinho (para não amassar as compras). O supermercado aparece, em contraposição ao mercadinho perto de casa, como o espaço da fartura, com suas dimensões ampliadas, as várias marcas de produtos expostos. Espaço que o menino, de algum modo, parece poder dominar – ao menos em sua rememoração escrita muitos anos depois.

É bem diferente a situação do jovem trabalhador do supermercado no conto “Pão doce”, de Ferréz (no livro Ninguém é inocente em São Paulo, de 2006). Em vez de um espaço de lazer com a família, o lugar é fonte de desgaste e humilhação. Os longos corredores e a infinidade de produtos são o martírio do rapaz, que tem de percorrê-los ininterruptamente para fazer a reposição do que era levado pelas pessoas: “quanto mais eu repunha a mercadoria, mais as pessoas compravam. Acabava o macarrão, eu buscava o palete e, quando chegava, o arroz também estava no fim. Logo que repus o arroz, o feijão e o óleo estavam no fim também. Toda vez que eu tentava passar com o carrinho, as pessoas reclamavam. Estava incomodando todo mundo”.

Ao contrário do “não lugar” de Marc Augé – definido como um local de passagem, que ele, evidentemente, imagina apenas pela perspectiva dos consumidores –, o supermercado nos é apresentado pelo olhar dos que trabalham ali, como espaço de exploração e de hierarquias profundamente marcadas e todo dia reencenadas. O jovem que, como no outro livro, nos narra em primeira pessoa, precisa conviver com as humilhações diárias de gerentes e seguranças. Não só sobre si, mas também com os que frequentam o supermercado, uma vez que ele nos descreve a diferença entre o tratamento dado aos ricos que furtam e aos pobres. O tom da narrativa, que reflete, obviamente, os sentimentos do rapaz, é de constante revolta e cansaço, culminando com o momento em que o gerente se aproxima para reclamar do cheiro de suor de seu corpo. É quando ele joga tudo para o ar e vai embora – mais um desempregado pelas ruas de São Paulo, como o homem que entra no supermercado em Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato.

Ali, não há experiência de lazer possível, nem lugar para algum diálogo desaforado. O protagonista, descrito em terceira pessoa como o “negro franzino, ossudo, camisa de malha branca surrada calça jeans imundo tênis de solado gasto que empurrava um carrinho-de-supermercado havia cerca de meia hora”, é seguido nos corredores pelo “segurança, negro agigantado, espadaúdo, impecável dentro do terno preto”. A tensão vai crescendo enquanto o “negro franzino” coloca leite em pó, fraldas e mamadeira dentro do carrinho, depois retira, devolve à gôndola, volta e coloca tudo de novo no carrinho. Os gestos de desconforto e insegurança do homem diante dos produtos, e talvez das câmeras do supermercado, são interpretados pelo “negro espadaúdo” e pelo chefe de segurança como uma tentativa de camuflagem para um roubo. Daí a violência contra ele e o recurso direto à polícia, mesmo com o homem se explicando enquanto apanha: que estava ali porque lhe nascera o filho, que estava desempregado, que pensava em pedir que alguém lhe pagasse as compras, apesar da vergonha.

O supermercado, assim, muito mais do que um espaço com pé direito alto, longos corredores e uma imensidão de produtos a serem infinitamente levados e repostos, é o lugar da vigilância, das câmeras de segurança, sempre prontas a encontrar o gesto suspeito, o movimento indesejado. E a personagem de Ruffato, sem dinheiro, com roupas inadequadas e com um corpo que revela seu desconforto, está ocupando um espaço indevido; por isso o “negro franzino” será expulso e, mais do que isso, punido. É a ciência dessa possibilidade que torna alguns espaços proibidos, mesmo quando nos pareçam relativamente abertos a todos.

Nos três exemplos acima, as narrativas dessa relação do pobre com o espaço do supermercado, apesar de significativas, são muito breves. A situação é tratada com mais vagar, e muita sutileza, em Passageiro do fim do dia (2010), de Rubens Figueiredo. Como no Guia afetivo da periferia, temos ali toda a preparação anterior para a ida ao supermercado. No lugar do menino e seus pais, um velho aposentado por invalidez e sua cunhada. Em vez do dinheiro contado, o vale de compras, arduamente conquistado num programa de assistência social do governo. No lugar do fusca, “o brasão masculino do padrasto”, eles vão a pé até o supermercado, para economizar as passagens do ônibus e poder voltar de táxi com as compras do mês. O homem chega a ficar excitado com a cena que visualiza: chegar em frente à casa e retirar do porta-malas, diante do olhar dos vizinhos, as sacolas de plástico cheias de produtos.

Dentro do supermercado, o velho e a cunhada ficam extasiados com a quantidade e variedade de produtos a que teriam acesso: “Havia uma satisfação, uma sensação de força, um alívio que passava para o corpo e que eles tratavam de aproveitar ao máximo”. Assim, “retardavam o passeio do carrinho, iam e voltavam pelos corredores, retiravam alguns produtos que já haviam apanhado e punham outros em seu lugar”, estavam “tão atentos às mercadorias, que ficavam mais vistosas por causa das luzes brancas e brilhantes lá do alto, que mal se davam conta da presença de outras pessoas”. Estão, até este momento, vivendo o prazer do menino de Guia afetivo da periferia, mas a situação muda quando eles chegam na fila do caixa e começam a ser olhados e se veem sendo vistos, com seu carrinho “irregularmente” cheio e sua aparência irremediavelmente pobre.

A ansiedade vai sendo construída de forma paulatina, num crescendo: o movimento impaciente das outras pessoas na fila, a cara feia da caixa, a certeza – reafirmada para si mesmos – de que podiam estar ali porque tinham como pagar. O ápice da tensão se dá quando a caixa do supermercado, tão mal humorada quanto o carregador do conto de Ferréz, não consegue passar o cartão do benefício e descobre que sua validade havia expirado no dia anterior. Então tudo desmorona em torno dos dois velhos, o corpo esfria, o ar lhes falta, eles são esmagados pela vergonha. É quando a moça do caixa, munindo-se de uma autoridade nova, que só pode ser exercida sobre aqueles que nada têm, exige em alto e bom tom que eles devolvam todos os produtos ao seu lugar nas prateleiras.

Com as pontas dos dedos, a senhora “empurrava de leve a mercadoria em seu lugar, fazia questão de alinhá-la de acordo com as outras. Cada produto de que se desfaziam causava mágoa. A garganta apertada. Nenhum, nem o mais barato deles, foi deixado para trás com indiferença. O tato, o manuseio dos frascos de vidro, dos potes de plástico, o formato das caixinhas na mão dos dois um momento antes de abandoná-los em seu lugar aumentavam a pena”. Angustiados com os olhares que os cercam, com a zombaria que pressentem, eles também são punidos por estarem em um lugar que não lhes cabe. E é só quando se veem do lado de fora, na rua, em meio ao movimento dos carros e ao lixo acumulado pela cidade, que podem expressar sua dor, e lembrar quem são.

Muitas representações da experiência dos pobres na sociedade brasileira privilegiam a exposição da violência aberta, na forma da criminalidade ou da brutalidade policial. Basta lembrar de um romance como Cidade de Deus, de Paulo Lins, dos contos de Rubem Fonseca, ou mesmo de filmes como Carandiru e Tropa de elite, por exemplo. Esse tipo de violência não é estranha aos grupos privilegiados. Eles sofrem, talvez, modalidades diferentes dela, possuem outras formas de proteção e mantêm outro tipo de relação com os poderes públicos; ainda assim, há uma identificação possível. Sobretudo, a violência aberta encontra uma condenação moral unânime – há uma resposta comum e sem maiores ambiguidades a ela.

Mas outras formas de violência convivem no mesmo espaço. O filósofo esloveno Slavoj Žižek, em Sobre la violencia: seis reflexiones marginales, distingue três tipos de violência. O que chamei de violência aberta e ele chama de “violência subjetiva” é a mais evidente, aceita como tal, possui um perpetrador individual identificável, um “culpado” que podemos condenar. Mas há também uma violência simbólica (encarnada na linguagem) e uma violência sistêmica, que é fruto das estruturas sociais. Essas duas últimas determinam a vivência cotidiana, criando entraves e limitando possibilidades, impedindo as pessoas de decidir suas próprias vidas, constrangendo-as a privações e humilhações. Justamente por construírem o cotidiano, passam despercebidas, como algo próprio da natureza das coisas – e não são vistas como manifestações de violência. A condenação a elas não é automática, nem categórica; ao contrário, tem de ser disputada politicamente.

A violência simbólica e a violência sistêmica atingem de maneira muito mais específica os diferentes grupos sociais. O leitor de classe média bem estabelecida se encontra em situação de completa exterioridade em relação à experiência daquele que vai ao supermercado contando os trocados, que tem que devolver produtos no caixa ou que sabe que o segurança desconfia de sua presença ali. A literatura pode ser um espaço onde essa perspectiva tenha lugar, permitindo uma aproximação a realidades que são, reiteradamente, silenciadas. Pode ser um espaço de acolhimento, o que implicaria na construção de novas estruturas narrativas, mas pode ser também um lugar de reflexão, impulsionando os leitores a repensarem o modo como ocupam o mundo.

*Este texto é uma versão bastante resumida do artigo “Espaços possíveis: o lugar do pobre na literatura brasileira contemporânea”, publicado no livro Das luzes às soleiras, organizado por Ricardo Barberena e Vinícius Carneiro (Porto Alegre: Luminara, 2014).

20 de fevereiro de 2016

Lygia Fagundes Telles: a força da mulher na literatura brasileira

Pollianna Freire



Lygia Fagundes Telles foi indicada, por unanimidade, pela União Brasileira de Escritores (UBE), à Academia Sueca, para concorrer ao Prêmio Nobel de Literatura. De acordo com Durval de Noronha Goyos, presidente da UBE, essa indicação deve-se ao fato de que Lygia é a maior escritora brasileira viva e a qualidade de sua produção literária é inquestionável”, ou seja, é a escritora brasileira que vem, há mais de setenta anos, produzindo literatura cada vez mais consagrada pela crítica nacional e internacional. As suas obras já foram adaptadas para a televisão, para o teatro e para o cinema, bem como foram publicadas em diversos países, como França, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Holanda, Portugal, Suécia e Espanha.
            Imortal da Academia Brasileira de Letras, a trajetória literária da escritora iniciou-se, oficialmente, em 1938, com a publicação do livro de contos Porão e sobrado. Na esteira dessa primeira publicação, vieram a segunda coletânea de contos, intitulada Praia viva, em 1944, e o terceiro volume de contos, O cacto vermelho, de 1949, que rendeu à autora o Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras. Embora esse último título tenha sido premiado, para Lygia Fagundes Telles essas três obras são marcadas pela imaturidade literária, ou seja, na sua concepção, são exercícios de escrita que não merecem ser reeditados e deveriam ser esquecidos. A escritora considera morto tudo que veio antes do romance Ciranda de pedra, publicado em 1954.
Lygia Fagundes Telles escreve, principalmente, romances e contos, mas destacou-se, sobretudo, na produção das narrativas curtas. Na sua bibliografia constam mais de treze coletâneas de contos publicadas entre o final dos anos de 1930 do século passado até a segunda década do século atual. No contexto dessas publicações, Fábio Lucas assinala que “alguns contos, ainda que com breves modificações, integram várias coletâneas diferentes”. Esse processo de reescritura estilística e temática é um traço peculiar da sua produção literária.
Na tese de doutorado intitulada As escritoras contemporâneas e o campo literário brasileiro: uma relação de gênero, Virgínia Maria Vasconcelos Leal explica que, ao se comparar, por exemplo, o mesmo tema tratado pela autora ao longo do tempo, é possível observar como Lygia Fagundes Telles, observadora atenta das mudanças à sua volta, buscou, estrategicamente, registrar e atualizar em sua ficção as transformações pelas quais passou e passa a sociedade brasileira. A crítica apresenta como exemplo dessa atualização temática o modo como questões referentes à homossexualidade e à descoberta da sexualidade foram tratadas nas obras Ciranda de pedra e “O espartilho” durante o processo de atualização desses textos.
            Nas obras de Lygia Fagundes Telles também sempre estiveram presentes temas relacionados às reinvindicações feministas. Como testemunha de todas as mudanças provocadas pelos feminismos e pela crítica literária feminista como pode ser observado nos exemplos de atualização temática apontados por Leal em seu texto —, a escritora não se esquivou, como ratifica Cristina Ferreira Pinto, em seu livro O bildungsroman feminino, de focalizar em suas narrativas “a situação da mulher numa sociedade em processo de transformação”.  
Embora Lygia Fagundes Telles afirme que não existe uma literatura feminina, já que, para ela, “o que existe são homens e mulheres que escrevem bem e homens e mulheres que escrevem mal”, a própria autora se considera uma mulher feminista. Conforme argumenta Virgínia Maria Vasconcelos Leal, a escritora fala, ainda, abertamente sobre o assunto bem como publica textos sobre as mulheres, a exemplo do  “Mulher, mulheres”, que integra o livro História das mulheres no Brasil, considerada uma obra de referência na área dos estudos de gênero no país.
Além de permanecer no tempo como uma escritora cada vez mais central no campo literário, Lygia Fagundes Telles compõe, hoje, uma das mais importantes vozes da literatura de autoria feminina no Brasil. A escritora foi uma das primeiras mulheres a trazer para a literatura canônica o ponto de vista feminino e as reivindicações acerca da condição das mulheres na sociedade. Portanto, o fato de ela ter sido a primeira mulher brasileira a ser indicada ao Prêmio Nobel de Literatura representa, por si só, mais um importante passo em relação ao reconhecimento, no campo literário nacional e internacional, do alto valor literário, cultural e simbólico da produção literária de autoria feminina brasileira.



13 de fevereiro de 2016

Literatura, sociedade, conscientização (ou quem é o escritor periférico-marginal?)

Maurício Silva


Imagem: Egon Schiele


Ao procurarmos explicitar alguns modos de constituição/atuação de um conjunto de práticas e saberes literários originalmente vinculados ao locus periférico e a uma episteme marginal – a que podemos designar literatura periférica-marginal –, uma das primeiras questões a serem discutidas, de modo geral, é o lugar de onde possíveis sujeitos dessas práticas e saberes literários falam. 
            
O mote do sujeito como instância complexa da modernidade ocidental é próprio da filosofia foucaultiana, mas também foi apropriado pela Análise do Discurso, desenvolvida pelos estudos de Michel Pêcheux. Contudo, quando associamos essa categoria ao universo da produção literária periférico-marginal, ela certamente adquire outra dinâmica: passa a se referir às (im)possibilidades de o sujeito periférico assumir sua condição plena de sujeito de seu próprio discurso e, por meio dele, manifestar-se. Dadas as condições "especiais" em que esse sujeito se encontra e como ele se apresenta, é preciso que atentemos para uma série de elementos que, de modo deliberadamente pejorativo, não só condicionam esse discurso, mas sobretudo o delimitam, de tal forma que, por um lado, ele se manifeste como mistificação – um discurso, por assim dizer, inserido na dinâmica do atual capitalismo neoliberal e, assim, tornado parte de uma lógica consumista – e, por outro lado, ele se apresente como simulação: um discurso que, embora aparentemente autônomo, guarda em si mesmo traços de uma perspectiva forânea, sendo, antes, a expressão de uma ideologia de classe alheia à realidade de onde ele pretensamente partiu.

Disso resulta a condição de subalternidade que, em geral, a palavra do sujeito periférico adquire involuntariamente. É nesse sentido que Gayatri Spivak propôs seu célebre questionamento, acerca da forma como o "sujeito do Terceiro Mundo é representado no discurso ocidental", perguntando-se: pode o subalterno falar? A resposta que oferece a esse questionamento é, a um só tempo, "clássica" e inovadora: na verdade, o subalterno, além de não ter direito à sua própria fala, estaria sendo falado por outro; estaria, em resumo, sendo construído como sujeito colonial, cuja palavra é – no nosso ponto de vista – ora mistificada, ora (dis)simulada.
            
A condição do sujeito subalternizado foi melhor estudada, no contexto brasileiro, por Paulo Freire, ao instituir a categoria de oprimido. Em sua célebre obra Pedagogia do oprimido o ilustre educador pernambucano defende a ideia de que somente o próprio oprimido poderá entender o significado mais profundo e amplo da opressão e da sociedade opressora, buscando uma libertação que só se alcança pela práxis da busca, constituindo, assim, mais do que uma "pedagogia", uma verdadeira "teoria" do oprimido. Fugir a essa condição de oprimido, completa o autor, pressupõe uma prática libertária que passa, antes, pelo reconhecimento de sua condição de oprimido e, na sequência, de uma intenção de libertação tanto do próprio oprimido (de sua condição de oprimido) quanto de seu opressor (de sua condição de opressor). Assim, por meio desse "parto doloroso", que é o processo de libertação, supera-se a contradição opressor-oprimido, num processo histórico e dialético de “reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo”. Uma das questões mais relevantes no que aqui chamamos de teoria do oprimido freiriana é a proposição que faz em relação ao próprio processo de libertação do oprimido, chamando a atenção para os riscos de se assumir uma atitude fatalista no percurso do processo, de se equivocar com uma atração pelo opressor, de se deixar imbuir por uma autodesvalia, atitudes que, no âmbito da produção literária periférica-marginal – a única, a nosso ver, que assumiu para si o papel "libertário" de que nos fala o educador brasileiro – tem sido sistematicamente combatida. Isso se deve, em grande parte, ao fato de se tratar de uma "revolução" (social, comportamental, ideológica etc.) promovida de dentro, isto é, pelos próprios oprimidos, com os próprios oprimidos, para os próprios oprimidos, resultado, evidentemente, de um crescente processo de conscientização, o qual, ainda nas palavras de Paulo Freire, implica que "ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica”.
            
Ao assumir o seu próprio discurso, ao se assumir como sujeito de seu discurso, o autor de literatura periférica-marginal não assume apenas uma palavra antes sequestrada e silenciada, uma fala subalternizada, mas toda uma atitude que está mais para a noção de arquivo foucaultiana – conceito que, para além da palavra e do corpus linguístico, constitui "o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados" – do que de expressão literária propriamente dita. Incorpora-se, assim, um dizer cuja carga ideológica não dispensa – ao contrário, incorpora como resultado de uma "tradição" – um conjunto de experiências forjado no cotidiano das periferias dos grandes centros urbanos, construído nos interstícios das sociedades "organizadas" e adquirido por meio de uma vivência-no-limite, própria daquelas populações que parecem viver continuamente nas franjas das classes sociais. Por isso, ao lançar mão de sua voz e de sua palavra, o escritor periférico-marginal não deixa de, ainda numa acepção foucaultiana do termo – para quem "o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta” –, se apoderar de seu próprio discurso. Essa é uma atitude que, grosso modo, insere-se num conjunto de ações que, para além da literatura, penetra a fundo o universo da educação, instituindo uma ruptura em fórmulas e estruturas padronizadas de práticas e discursos. Trata-se, em suma, de abordar esse assunto na sua correlação com estratégias em empoderamento da cultura periférica, tendo a literatura como elemento central e mediador das relações sociais e interpessoais.
           
As relações entre literatura e sociedade nunca foram simples, adquirindo, com o passar do tempo, complexidade cada vez maior. O escritor periférico-marginal se insere nesse contexto de forma, por assim dizer, oblíqua: não tendo sido convidado para o banquete das civilizações, introduz-se de modo imperativo, sem se imiscuir de suas "funções", sem renegar o seu papel, mas também sem abrir mão de seus princípios estéticos, base em que sua prática "socioliterária" se sustenta; o escritor periférico-marginal, assim, entra sem pedir licença e, pela sua própria voz, toma a palavra que lhe é de direito, tornando-se sujeito de seu discurso, numa atitude que não prescinde das ideias de afirmação identitária, militância político-social e prática comunitária. Nas palavras de Paulo Patrocínio, em seu livro Escritos à margem: a presença de autores de periferia na cena literária brasileira, "sujeitos periféricos que romperam a silenciosa posição de objeto para entrarem na cena literária utilizando a literatura enquanto veículo de um discurso político formado no desejo de autoafirmação [...] para tanto, cobram para si a égide de marginal enquanto forma identitária, compondo um grupo heterogêneo no tocante ao exercício literário e homogêneo quanto a sua origem social. São agora os próprios marginais que buscam representar o cotidiano de territórios periféricos, resultando em uma escrita fortemente marcada por um teor testemunhal".
           
De fato, não estamos mais falando, ao nos reportarmos a esse conjunto de autores e obras literárias, de uma literatura desvinculada de um contexto no qual ela foi produzida, que ela, de alguma maneira, representa e com o qual estabelece uma relação íntima de cumplicidade comunitária, uma vez que se traduz não somente de "produtos" estéticos, mas em "performances" éticas que, a nosso ver, voltam-se especialmente para uma compreensão mais estendida e dinâmica do sentido de educação – algo mais próximo do que, como dissemos acima, ao nos referirmos aos conceitos de Paulo Freire, pode ser entendido como um amplo processo de conscientização.

6 de fevereiro de 2016

Na noite calunga do bairro Cabula


Imagem: Vladimir Velickovic

Há exatamente um ano, policiais militares assassinavam 12 jovens negros (a campanha “Reaja ou será morta, Reaja ou será morto” diz que foram 13) no bairro do Cabula, na periferia de Salvador. Nenhum dos nove policiais envolvidos no crime foi punido.
Foram mortos Evson Pereira dos Santos, 27 anos, Ricardo Vilas Boas Silvia, 27, Jeferson Pereira dos Santos, 22, João Luis Pereira Rodrigues, 21, Adriano de Souza Guimarães, 21, Vitor Amorim de Araujo, 19, Agenor Vitalino dos Santos Neto, 19, Bruno Pires do Nascimento, 19, Tiago Gomes das Virgens, 18, Natanael de Jesus Costa, 17, Rodrigo Martins de Oliveira, 17, e Caique Bastos dos Santos, 16 anos.

Ricardo Aleixo escreveu o poema abaixo na época, para que eles não sejam esquecidos.


Na noite calunga do bairro Cabula
Ricardo Aleixo

Morri quantas vezes
na noite mais longa?

Na noite imóvel, a
mais longa e espessa,

morri quantas vezes
na noite calunga?

A noite não passa
e eu dentro dela

morrendo de novo
sem nome e de novo

morrendo a cada
outro rombo aberto

na musculatura
do que um dia eu fui.

Morri quantas vezes
na noite mais rubra?

Na noite calunga,
tão espessa e longa,

morri quantas vezes
na noite terrível?

A noite mais morte
e eu dentro dela

morrendo de novo
sem voz e outra vez

morria a cada
outra bala alojada

no fundo mais fundo
do que eu ainda sou

(a cada silêncio
de pedra e de cal

que despeja o branco
de sua indiferença

por cima da sombra
do que eu já não sou

nem serei nunca mais).
Morri quantas vezes

na noite calunga?
Na noite trevosa,

noite que não finda,
a noite oceano, pleno

vão de sangue,
morri quantas vezes

na noite terrível,
na noite calunga

do bairro Cabula?
Morri tantas vezes

mas nunca me matam
de uma vez por todas.

Meu sangue é semente
que o vento enraíza

no ventre da terra
e eu nasço de novo

e de novo e meu nome
é aquele que não morre

sem fazer da noite
não mais a silente

parceira da morte
mas a mãe que pare

filhos cor da noite
e zela por eles,

tal qual uma pantera
que mostra, na chispa

do olhar e no gume
das presas, o quanto

será capaz de fazer
se a mão da maldade

ao menos pensar
em perturbar o sono

da sua ninhada.
Morri tantas vezes

mas sempre renasço
ainda mais forte

corajoso e belo
só o que sei é ser.

Sou muitos, me espalho
pelo mundo afora

e pelo tempo adentro
de mim e sou tantos

que um dia eu faço
a vida viver.

(Este poema faz parte do livro Impossível como nunca ter tido um rosto, de Ricardo Aleixo. Belo Horizonte: Edição do autor, 2015).

NOTA DO AUTOR

O poema “Na noite calunga do bairro Cabula” foi escrito especialmente para a revista O Menelick 2° Ato, e versa sob o impacto do massacre, por integrantes da Polícia Militar, de 13 jovens negros da periferia de Salvador, na Bahia, na noite do dia 6 de fevereiro de 2015. O trágico episódio foi batizado por integrantes da campanha “Reaja ou será morta, Reaja ou será morto” de Chacina do Cabula, nome do bairro onde residiam os rapazes assassinados.

Jogando com a dupla acepção da palavra calunga – mar e morte –, o poema, que li, pela primeira vez, em público, durante debate de que participei em 23 de março de 2015 no Salão do Livro de Paris, organiza-se, a um só tempo, como um protesto contra a naturalização das práticas de extermínio da juventude negra no Brasil e em diversos outros países e como um elogio da Resistência Ativa, em nome da Vida.

Dedico-o às minhas filhas Iná e Flora e ao meu filho Ravi.