31 de dezembro de 2020

O Sarau da Cooperifa: forma e memória das noites

 

Rafa Ireno

Imagem: Grafite de Eduardo Kobra

Entre uma pergunta e outra sobre a Cooperifa, em algumas entrevistas, como num respiro, Sérgio Vaz sussurra: “É difícil explicar o que acontece para quem nunca foi…”, depois, retoma, insiste no raciocínio, fala sobre seu amor pela poesia, sobre o direito à literatura, a necessidade da formação de um público leitor na periferia, a dessacralização da arte, o problema do cânone e como, tendo em vista isso tudo, idealizou e desenvolveu, junto do poeta Marcos Pezão, em 2001, o Sarau da Cooperifa – um dos pilares da literatura periférica, no extremo sul de São Paulo.

            É verdade que, nos últimos anos, a produção artística das periferias tem sido reconhecida na cultura brasileira contemporânea (inclusive, pelo mercado editorial). Também é verdade que este reconhecimento se dá antes no plano ético ou político do que estético. O que já é um passo, porém, não suficiente. Este desequilíbrio, a meu ver, relaciona-se muito a um problema ligado à apreensão, às ferramentas de análise para se abordar formulações estéticas descentralizadas. Os utensílios críticos não foram imaginados segundo às necessidades das artes contemporâneas, menos ainda, àqueles feitos nas margens da sociedade. Por consequência, ao começar essa reflexão, é o hiato do poeta, as palavras não ditas no tempo d’um copo d’água, que ficam reverberando em mim. Quero dizer, o princípio da coisa é fácil de explicar: pessoas reunidas para ler e escutar poemas. Mas, colocado assim, não se compreende a dimensão, a potência transformadora e o valor estético dos saraus. A simplicidade é difícil. O gesto despretensioso, de compartilhar versos em grupo, é a transformação de sentimentos, histórias, desejos, angústias, sonhos, numa forma específica, a Cooperifa, edificada coletivamente a cada terça-feira, das 20h30 às 22h30, no Bar do Zé Batidão.

 

II

            Trata-se, entre muitas outras coisas, de um sistema inédito de organização literária no Brasil, que traz consigo uma dificuldade enorme de pensá-lo, observá-lo, comentá-lo, seja numa entrevista, seja num ensaio ou numa tese. Em parte, porque ele exige naturalmente um novo modelo de crítica. Um que não corrompa, em nome da objetividade da reflexão, a espontaneidade, o frescor e ineditismo do movimento; ao mesmo tempo em que lide com o desafio de traduzir em discurso uma experiência baseada nas vivências do lugar e do corpo na periferia. Carece de ter um olhar consciente da própria contradição. A literatura periférica tenta fincar os pés no chão, no território e diminuir a distância entre a poesia e a gente. Ela ambiciona reverter os símbolos em atos, a palavra em ação, a fim de mudar a realidade imediata. Enfim, talvez, por isso, é uma tarefa perniciosa e quase sempre frustrante a de falar da Cooperifa estando fora dela.

 

III

            Todas terças-feiras não importa onde esteja no mundo, é estranho não me arrumar, pegar o ônibus no terminal Sto. Amaro até a Piraporinha, subir o morro e chegar no bar do Zé Batidão (R. Bartolomeu dos Santos, 797 – está Jardim Guarujá no Google, mas, ali, ainda é Chácara Santana), pois, de 2013 até 2019, quase todas as semanas, eu estava na Cooperifa. Geralmente, sentado na escada, à direita do microfone. Para falar verdade, ia bem mais cedo, evitava o trânsito na M’boi Mirim e, como nasci e cresci poucas esquinas para baixo do sarau, visitava minha família, na rua do colégio Mario Moura. Vó mora lá até hoje. Jantava com ela, depois subia para o sarau. Foram tempos complicados: nos últimos anos, o vô adoeceu. Ele faleceria poucos meses depois de minha partida – em 2019, vim para França completar meu doutorado.

            Se olhar no mapa dá para ver que são poucos metros separando minha casa do Zé Batidão, ainda assim, na memória, este caminho se desdobrava numa grande estrada, uma linha longa, estendida entre dois pontos, duas periferias – a primeira que me repulsava, as violências, dores, silêncios, solidões; e, na outra beira, a festa, o coletivo, a criatividade, me atraindo, dando vontade de ficar mais um pouco. Essas duas extremidades, é claro, não estão completamente isoladas. A divisão tem a ver, eu acho, com a substância separando a ficção da realidade. Algo como uma fissura entre o que foi e o que deveria ter sido.

 

IV

            A Cooperifa, então, não é somente um espaço onde circula a literatura, o sarau é em si mesmo uma forma, por assim dizer, um poema. Uma releitura da própria periferia. Em outras palavras, é uma representação estética, com suas regras – uma poética – com suas razões de ser, seus ritos, tensões, que foram se construindo, adaptando-se, mudando ao longo do tempo e de acordo com o território.

            No começo, por exemplo, há uma abertura quase sempre feita por Sérgio Vaz. Um chamado para abrir os trabalhos, que serve tanto como boas-vindas, quanto como um lembrete do significado da Cooperifa, os princípios do sarau e, por fim, exige-se o silêncio para ouvir a poesia. Há, também, um encerramento com a pessoa que está lançando livros ou com música para celebrar o fim de mais uma reunião e assegurar a volta para casa com segurança. Entre estes dois pontos, estão certas passagens obrigatórias, invariáveis, instantes reconhecíveis e sobretudo esperados, que marcam o tempo da noite e mexem com a expectativa do público: é o caso, sem dúvida, da declamação de Dona Edite, pois, quando sua voz de setenta e oito anos corporifica os versos de “Navio Negreiro” de Castro Alves, o registro se eleva ao terreno da épica. Esta senhora conjuga muitos elementos em sua figura, desde seu destino individual quanto da história coletiva da zona sul de SP. Tal momento se repete magistralmente todas as terças-feiras e quando, por algum motivo, não acontece – eu lembro que a sensação é a de que falta alguma coisa. O mesmo sentimento se repete, por outras razões, na vez de Sérgio Vaz, de Rose Dorea e de Jairo Periafricania.

            Depois, o arranjo da obra se condiciona pela ordem de chegada dos participantes – aqueles considerados poetas da comunidade têm preferência na fila, afinal, já estavam neste espaço há mais tempo. O ritmo está nas mãos de Lu Sousa, uma escritora proeminente lírica, que anota os nomes na lista e conduz discreta o sarau. É ela quem lê as noites, que conhece os tons, os gestos, as linhas de cada um dos presentes e, com isso, tece o enredo do sarau. Avisa: um poema curto, por favor, está cheio hoje, certo? Às vezes adianta um, às vezes, atrasa o outro de acordo com a atmosfera. Neste intermeio, como um acréscimo eventual, frequentemente, artistas de outras paragens, de Estados diversos ou mesmo de outras regiões da cidade, visitam o espaço e contribuem ao sotaque da Cooperifa, que se tornou uma confluência da poesia na cidade de São Paulo. Essa prática, que se ensaia tem dezenove anos, condiciona as formas das obras da periferia, as tensões e ritmos. Daí, de repente, tem um corte, a festa se interrompe. Algum dos organizadores vai ao microfone, um papelzinho na mão, e declama a placa do carro bloqueando o caminho do ônibus na rua, o silêncio, a procura, o proprietário identificado, o 5318 passa e a poesia retoma.

 

 V

             Não sei bem o porquê, num destes dias frios e tristes em terra estrangeira, peguei-me pensando que existe mais poesia do que prosa na literatura periférica. Talvez, por causa dos saraus, talvez apenas seja solidão. Então, eu enviei uma mensagem para o Prof. Fábio, poeta e pesquisador da Cooperifa, perguntei-lhe sem mais, sem introdução; o meu anseio era que ele respondesse às minhas urgências:  “Por que você acha que na periferia temos, de maneira geral, menos romances?”. Sua resposta foi a seguinte:

         Trata-se de uma característica histórica, a meu ver, de grupos que menos exercem seu “direito à literatura” terem suas experiências com textos das esferas literárias iniciadas ou intensificadas com a poesia. Antonio Candido, em “Sentimento de Identidade”, por exemplo, fala sobre a popularização da poesia nas camadas menos letradas durante a consolidação do Romantismo entre nós. Alguns teóricos, ao tratar sobre literatura negra, como Zilá Bernd, apontam para predominância de uma (poesia) sobre outra (prosa). Ambos, a meu ver, a despeito de terem enfoques muito específicos, podem ajudar na reflexão acerca de a poesia permitir a elaboração de mensagens de forma mais rápida aos objetivos de quem escreve (o que não se confunde com falta de capacidade) e maior possibilidade de fruição nos processos de interação social (o que ajuda, ainda em minha modesta opinião, a valorizar iniciativas como os saraus periféricos, os slams, as batalhas de rima); como professor, inclusive, é massacrante o placar de estudantes e ex-estudantes que me procuram para expor suas artes com poemas em relação às prosas, crônicas e contos, por exemplo.

             A minha interrogação, é claro, disfarçava uma perspectiva negativa. Eu inseri o ato literário numa linha de montagem, na qual o romance se traduziria no elemento mais complexo da cadeia, aquele a ser buscado. Logo, o fato de não ser a forma prioritária da literatura periférica se ligaria a uma deficiência estética do movimento. Contudo, gentilmente, o professor Fábio Roberto Ferreira Barreto chamou minha atenção para o processo de formação de uma literatura, a função didática e comunicativa da poesia, lembrou-me das condições do bairro e de nossas emergências. Fez pensar, igualmente, na possibilidade do sistema de saraus já ser essa construção “mais complexa”, ou seja, que essa organização responda aos anseios formais de um grupo de pessoas, num lugar e tempo específicos.          

            Não me parece por acaso que essa manifestação tenha acontecido, em primeiro lugar, na zona sul de São Paulo. Essa região têm um histórico de engajamento, desde as demandas por moradias no Jardim São Luiz; passando pelos grupos de mulheres do Ângela, reunidas para resistir às violências policiais, até os sindicatos operários da área industrial de Santo Amaro. Existe o registro cultural das lutas negras, do movimento Black e do Hip-hop, fortes presenças neste canto da cidade. Outro aspecto a não ser ignorado, quando se pensa nos saraus, diz respeito a chegada do Partido dos Trabalhadores no poder, a figura de Luiz Inácio Lula da Silva indica um instante particular também no imaginário brasileiro.

VI

            Dona Edite quem costuma dizer que cada encontro é como se lêssemos um livro, todos juntos. Tem-se aqui uma boa chave de interpretação, porque implica pensar numa nova obra se escrevendo a cada terça. Nenhum sarau é igual ao outro. Ora, descontando feriados, férias, impedimentos, os dezenove anos representam mais de novecentas semanas, ou seja, 900 livros escritos e lidos coletivamente. Interpretem estes dados com o seguinte acréscimo: refiro-me apenas a um grupo. Se, por exemplo, adicionar o Sarau do Binho, do Grajaú, Suburbano Convicto, Elo da Corrente, Sobrenome liberdade, entre muitos outros, uma vez que, em certos momentos, eram mais de cem saraus espalhados nas periferias de São Paulo e do Brasil inteiro; trata-se da formação de um sistema literário quase autônomo, gigantesco e completamente paralelo ao cânone brasileiro. E, como era de se esperar, até pouco tempo, ignorado pela crítica tradicional. Mas, voltando ao raciocínio anterior, tal compreensão permitiria pensar que o melhor método de análise, para se olhar com justiça a literatura periférica, seria um balanço equilibrado entre cada noite e todas as noites. 

            VII

            A sabedoria de Dona Edite aponta, inclusive, para uma condição ambígua do movimento; porquanto esta realização estética não é recolhida num objeto material. E, eventualmente, quando isso acontece no formato de um livro, na passagem das noites para o papel, perde-se justamente a substância humana do corpo, a presença e os gestos[1]. A única antologia do sarau, de 2006, não representa o que foi a minha experiência a partir de 2013, assim como hoje, se houvesse outra publicação, não seria o mesmo de quando eu estava lá. Aliás, às vezes, este descompasso provoca um efeito prejudicial à literatura periférica (que acredito ser melhor resolvido em outras artes como na música e no cinema). Muitos poetas, eventualmente iludidos pelo sucesso de suas performances, publicam prematuramente. Nas páginas solitárias, entretanto, os versos não funcionam como no sarau, a leitura do livro mobiliza aspectos diferentes (o que é justamente o assunto tratado aqui!), de modo que os reveses da linguagem poética se evidenciam, acontecem equívocos e isso dá um ar de imediatismo à poesia.

            Se, então, por um lado, essa efemeridade configura um traço lírico e, de alguma maneira, resistente, na medida em que se estabelece numa outra relação temporal, dispensando a ideologia capitalista de que tudo deva resultar num produto (para ser consumido…), por outro lado, a dificuldade em gerenciar o passado, inconscientemente, reproduz o modus operandi da sociedade: o apagamento violento dos traços materiais e afetivos dos pobres. “Sarau” deveria ser sinônimo também de “arquivo”. Afinal, a tensão estética não é outra coisa senão uma contenta com o tempo, isso intensificado na quebrada, obrigando a desenvolver uma forma resistente à lógica opressiva; a buscar uma criação que valha um respiro de fabulação aos trabalhadores. Uma literatura capaz de dar uma esperança mínima, que feito um espelho, faça a gente da periferia se enxergar, pois é uma versão de suas histórias contadas ali. Porém, a indissociável proximidade com a matéria (o fato dela se constituir do corpo), inevitavelmente, como efeito colateral, traz em sua fatura poética a reprodução do drama trágico da periferia: a desapropriação da memória. Evidentemente, a sensibilidade periférica está atenta para continuar desenvolvendo estratégias para subverter essas condições. E, hoje, existem novas possibilidades de expressão poéticas. A questão é saber se isso acontece na dimensão das urgências e, infelizmente, à altura de lutar contra o futuro que se vislumbra no Brasil.

 

VIII

            Antonio Eleilson Leite, no texto “Literaturas da Periferia: o desafio da estética”, no site Outras Palavras, desenvolve uma sincera e corajosa análise, identificando que o argumento social e político do movimento periférico, poderoso e fundamental, está próximo de seu esgotamento. Quase não é mais suficiente para sustentar uma construção, que se diz, literária. Ele propõe, desta maneira, coisa que eu concordo, que a periferia dispute igualmente os conceitos estéticos, que se aproprie das reflexões também formais, o que implicaria, então, num trabalho crítico. Nesse sentido, o autor escreve na conclusão:

Mas para alcançar o reconhecimento artístico, é necessário que esta arte seja submetida à crítica:[…] Não estão em discussão os propósitos políticos do movimento, tão bem expostos nos manifestos da Semana de Arte Moderna da Periferia [texto de Sérgio Vaz]. A questão é analisar que arte está sendo produzida a partir desses propósitos. O bordão de Alessandro Buzo, que diz: “Pensavam que não sabíamos ler e agora estamos escrevendo livros”, já não dá conta da cena atual. É hora de discutir a qualidade literária desses escritos.

             Neste trecho, toca-se no ponto nevrálgico da coisa. Gostaria tão somente de acrescentar o seguinte: também é necessário que esta “crítica” se reelabore, redefina os seus próprios parâmetros. É indispensável que se estabeleça uma dinâmica dialética, captando as contradições e auxiliando o próximo passo, a superação do esgotamento – no plano estético. O trabalho, em outras palavras, é um exercício de simbiose, pois, se não for assim, “a crítica” será apenas mais uma barreira, que vai repulsar as artes periféricas em nome de um suposto valor estético; vai identificar as formulações como ruins, inferiores, desprovidas de complexidades artísticas. Esta “crítica” será somente mais uma instituição aumentando nossa desigualdade. Por isso, no excerto destacado, penso que o verbo “submeter” seja problemático; “dialogar”, “colaborar” ou até mesmo “criar” uma nova maneira de refletir a arte contemporânea, seriam termos mais apropriados.

IX

            Não se pode ignorar o lado romântico/utópico do movimento, anunciado em poemas como “Literatura das Ruas” e “Victor Hugo” de Sérgio Vaz. Neste sentido, por sinal, Os Miseráveis se refere a uma das leituras preferidas do poeta. É curioso o fato de que Hugo, enquanto escrevia a sua grande obra, tinha consciência que sua forma inovadora nutriria uma dificuldade de apreensão. Num prefácio deste romance, inclusive, leio a melhor conclusão para meu ensaio: uma carta de Hugo, dia 7 de fevereiro de 1862, para Albert Lacroix, na qual previne seu editor: “Você arriscaria se enganar, tentando compreender definitivamente ‘isso’ ou ‘aquilo’, e não olhando a perspectiva do TODO, você cometeria erros de perspectiva. Este livro é uma montanha; ele não pode ser medido, nem mesmo visto com clareza; unicamente à distância. Quero dizer, só por completo”. Da mesma maneira, “só por completo” será possível compreender o Sarau da Cooperifa.



[1]No evento “Centralidades Periféricas: Reflexões Sobre Literatura Periférica e Universidade”, realizado no Instituto de Estudos Avançados da USP, dia 18 de junho de 2018, Heloisa Buarque de Hollanda sugere, para vencer esse problema, uma publicação em livro com códigos QR, conectando as páginas a um registro audiovisual.


*Rafa Ireno é escritor e crítico da periferia de São Paulo, do Chácara Santana. Neste momento, faz um doutorado sobre poesia e política nas obras de Rubem Braga e Jacques Prévert. Recentemente, publicou de maneira independente o segundo fascículo de poemas em prosa chamado Três por Quatro. Desde 2019, é colaborador do Letras in.verno e re.verso (http://www.blogletras.com/) e, não tão amiúde como gostaria, escreve em seu próprio blog (http://amiudo.blogspot.com/ ). E-mail: irenorafa@gmail.com




24 de dezembro de 2020

A raridade do sujeito negro

Marcel Silva

Joan Miró (1924), Harlequins Carnival



Quem diria que o fator representatividade produziria tantas obras marcantes e reflexivas no Brasil de 2020? Talvez, nós. Nós que observamos ansiosos os desdobramentos políticos e educacionais e desejamos que essa pátria seja gentil com todos os seus cidadãos. Nós que apoiamos a igualdade e lutamos pela cidadania. Nós que pensamos que a educação é a chave para um mundo melhor.

            Após a leitura de O Avesso da pele, de Jeferson Tenório e Marrom e amarelo, de Paulo Scott fica a sensação de que, finalmente, a população negra tem representantes na ficção brasileira que, por meio da educação, conseguiram condições de vida mais dignas, alçando o homem negro a um patamar de humanidade. Os estereótipos foram sobrepujados e as personagens vivem temas universais, usando os argumentos possíveis, sentindo e reagindo ao mundo como quaisquer pessoas e assumindo um lugar que, antes, fora estereotipado, mas, agora, também pertence literariamente ao coletivo negro.

            Tenório criou um mundo de introspecção, onde o protagonista rememora sua existência em busca de ressignificações que o ajudem a suportar o assassinato do pai. Enredados pelo racismo, os personagens transitam pela vida e são construídos por meio de uma tessitura que liga os fios da crueldade e da beleza, numa obra tocante, com traços de lirismo.

            O amarelo, de Scott, é um homem que está em conflito por causa de seu tom de pele mais claro e pergunta-se por que seus familiares não assumem uma posição mais atuante diante da sociedade segregadora em que vivem. Dentre os diversos questionamentos, surgem personagens adaptados à realidade gaúcha, utilizando mecanismos de sobrevivência que os mantenham em uma situação segura. Todos vivem suas singularidades.

            Em comum, as obras apresentam personagens que, de uma maneira geral, conhecemos no mundo real. São homens e mulheres que lutam, sofrem, amam e se frustram. Eles têm famílias, empregos e aspirações. Suas expectativas possuem as limitações ou a grandeza comum a qualquer pessoa, no entanto, é a cor de suas peles e o protagonismo dos autores que chama a atenção para a representação. Mesmo que os movimentos de insurgência contra o racismo sejam tão antigos quanto a invasão desse país pelos europeus, pouquíssimas obras apresentaram a humanidade das pessoas negras, sob uma ótica protagonizante, em que as personagens fossem mais do que clichês.

            Donos de suas vozes, esses personagens encenam uma revolução na composição literária que foi mantida sob o domínio de uma elite que não aprovava a presença negra em lugar algum. Muito menos nas Belas Letras. Ainda assim, autores, narradores e personagens chegaram às páginas dos livros e são procurados por uma gama de leitores que têm a urgência de reconhecerem-se na grafia ficcional. As histórias contadas perpassam as mazelas do racismo estrutural, contudo, colocam em primeiro plano a subjetividade de pessoas que foram bestializadas e, ainda hoje, lutam para que não sejam exterminadas por um Estado negligente e sua força policial. A valorização dos sujeitos, historicamente marginalizados, é o despontar de uma literatura que inclui e, finalmente, reconhece suas vivências para além dos estereótipos.

            É possível que estejamos vivendo um momento de transformações para o coletivo negro, porém, com uma lentidão e um atraso que refletem a crueza da realidade brasileira. Hoje, após conseguirem adentrar as portas elitistas das universidades e com o auxílio de tecnologias de informação capazes de unir, rapidamente, os mais distantes lugares do globo, a comunidade negra pode ver-se, sob diversos aspectos, em um universo que a mantinha sob o jugo da estigmatização, mas que está moldando-se para realocar seus membros em textos arquitetados para tal fim. Investidos do seu lugar discursivo e conscientes de que suas ações são importantes para o processo de emancipação negra, os autores produzem uma fluência literária que interrompe um ciclo violento de racismo. Mesmo que não vivamos em Wakanda e não tenhamos um herói trajado como uma pantera, temos a raridade do sujeito negro que transforma a realidade, performando um heroísmo a seu modo. A literatura não tem a finalidade de modificar as estruturas sociais, ainda que as represente; apesar disso, e sobremaneira, atreve-se a tanto.

 

*Marcel Fernando da Silva é turismólogo e graduando no curso de letras Português/Espanhol do Instituto Federal campus Restinga.


18 de dezembro de 2020

Notas sobre o romance regional

 

Eurídice Figueiredo (UFF/CNPq)

Auréolas da Foz (2017), de Olívio Ataíde


Essas anotações foram suscitadas pelos comentários críticos à resenha do romance Torto Arado, escrita por Raquel Carneiro e publicada na revista Veja de 15 de dezembro de 2020 com o título de “Com Torto arado, Itamar Vieira Júnior dá novo fôlego ao romance regional”. A resenha foi postada pelo autor no Facebook, de modo que pude acompanhar as reações de pessoas do meio literário à atribuição da categoria “romance regional” à obra, premiada inicialmente em Portugal no concurso da Leya e agora consagrado com o Jabuti de melhor romance.

De maneira sucinta, o debate em torno da oposição regional/nacional X universal remonta ao romantismo, quando havia, de um lado, o romance indianista de José de Alencar e, de outro, o romance urbano de Machado de Assis, cujo texto “Instinto de nacionalidade” deu forma teórica à percepção do que se esperava dos escritores brasileiros para criar uma literatura própria sem apelar para o exotismo. Na década de 1930 o romance realista, de cunho social, se consolida pelas mãos de escritores nordestinos como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e, no sul, por Érico Veríssimo. Os romances escritos por eles foram chamados de “romances regionalistas” porque narravam histórias que se passavam no mundo rural de suas regiões, ao passo que aqueles que tinham como cenário o Rio de Janeiro, capital da República, eram “universais”. Essa classificação é generalizadora porque alguns romances desses autores eram urbanos; entretanto, é preciso ressaltar que os autores “regionalistas” fazem parte do cânone da literatura brasileira, tendo sido traduzidos em outras línguas e muito bem recebidos nos grandes centros de consagração. Todavia, o termo continua sendo pejorativo porque é confundido com o naturalismo do primeiro regionalismo do século XIX.

Antonio Candido, no seu artigo “Literatura e subdesenvolvimento”, faz uma correlação entre as diferentes fases do regionalismo brasileiro e as tendências literárias da América Hispânica. Publicado no livro América Latina em sua literatura em 1972 pela editora Perspectiva, portanto em pleno boom do realismo mágico de García Márquez, José Maria Arguedas, Juan Rulfo, Candido percebe que toda essa produção explorava o mundo do interior (o altiplano, o sertão, os confins). O crítico uruguaio Ángel Rama, criador do conceito de transculturação narrativa, considerava esses três escritores, assim como Guimarães Rosa, como representantes dessa tendência, em outras palavras, eles seriam transculturadores. Já Candido chama Guimarães Rosa de superregionalista, alguém que supera e, ao mesmo tempo, continua sendo regionalista; destaca o caráter metafísico e universal da obra do autor mineiro. Ele afirma que muitos escritores “rejeitariam como pecha o qualificativo de regionalistas (...). Mas isto não impede que a dimensão regional continue presente em muitas obras da maior importância”. Ele aponta o “refinamento técnico, graças ao qual as regiões se transfiguram e os seus contornos humanos se subvertem e adquirem universalidade” (1972, p. 361).

Esses quatro escritores – García Márquez, Rulfo, Arguedas e Rosa – seriam os epítomes dessa geração cuja consciência política se explicita ao explorar o subdesenvolvimento da América Latina numa escrita não-naturalista, que faz apelo à magia, ao absurdo, ao monólogo interior, à elipse e ao fantástico.

E Torto arado, o que teríamos a dizer desse romance que foi reconhecido em Portugal antes mesmo de ser publicado no Brasil? Ele é, antes de mais nada, muito elaborado, não só na linguagem como na estrutura, portanto, sua fatura requintada torna-o universal. Mas ser universal não quer dizer eliminar a dimensão regional e nacional, porque toda literatura parte de um particular, às vezes de uma micro-região, e fala ao mundo. Devido a uma coincidência -- li o romance de Itamar no momento em que era publicada a tradução de Senhores do orvalho, do escritor haitiano Jacques Roumain, para a qual escrevi o posfácio – percebi elementos comuns: a seca que dificulta ainda mais a vida da gente pobre, o personagem que tem de se deslocar para tomar consciência política e lutar contra a opressão, a resistência das mulheres, a utilização de religiões de matriz africana e a força poética da obra. O romance haitiano, publicado originalmente em 1944, é suficientemente “universal” para despertar o interesse da editora Carambaia em 2020.

O problema que transparece nos comentários que apareceram no Facebook é o etnocentrismo, que faria com que só escritores do sudeste, principalmente do Rio e de São Paulo, pudessem ser urbanos e universais. Ainda que a imprensa muitas vezes caia nos clichês, como, p. ex., ao falar de Moacyr Scliar, escritor judeu, que sempre explorou as questões judaicas em sua obra, era sempre chamado no jornal O Globo de escritor gaúcho. Outro exemplo: parece-me equivocado estabelecer uma equivalência entre  Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus como “escritoras vindas da favela” porque, embora Conceição tenha, efetivamente, vivido na favela em sua infância em Belo Horizonte, ela teve acesso à educação, tornou-se professora e concluiu um doutorado. Sem desmerecer Carolina, é claro, pois como adverte a pesquisadora Giovana Xavier em entrevista ao jornal O Globo (2019) Carolina deveria ser apresentada como uma intelectual negra e não como uma favelada. E realmente, em Diário de Bitita ela interpreta o Brasil a partir de seu lugar de mulher pobre e negra que vê como funciona a sociedade brasileira. O clichê contém uma parte de verdade, mas tende a confundir, nivelando padrões a enunciados simplificados e repetidos à exaustão.

Torto arado, de um autor jovem (nascido em 1979), se distingue da maioria da produção atual brasileira que é urbana, não importando se o romance se passa na praia de Garopaba ou em Porto Alegre, em São Paulo ou no Rio. Perscrutando o cenário, olhando para meus livros, o único autor que me parece guardar semelhança com Itamar é Ronaldo Correia de Brito, cearense radicado no Recife (nascido em 1951). Na orelha de Livro dos homens, escrita por Marco Lucchesi, se lê: “Posso afirmar sem erro que este é um dos livros mais importantes de que tenho notícia nesses últimos anos. Um Brasil profundo, mas livre de cores locais. Uma palavra plural, embora incisiva. Uma imagem penetrante, de alta densidade poética, servindo ao espaço ficcional de onde surge e para onde volta” (grifos meus). Em outras palavras, é regionalista sem sê-lo, ou, pelo menos, não é o que se costuma chamar de regionalista, embora explore a dimensão humana desses confins de Brasil.