25 de agosto de 2017

A literatura e a história em romances contemporâneos

Júlia Braga Neves
Humboldt-Universität zu Berlin/ King's College London


Imagem: Carrie Moyer


Em seus textos sobre historiografia, Hayden White reforça os pontos em comum entre a literatura e a história ao alegar que os dois tipos de discurso operam sob as normas da linguagem e da narratividade (White, 1999, p. 6). Assim como a narrativa literária, o texto histórico depende da seleção de informações, da interpretação de fatos e também de decisões que dizem respeito à forma, à organização da narrativa e aos discursos que esta irá comunicar. White é enfático em sua tese de que não há objetividade na produção de narrativas históricas porque estas estão sempre sujeitas a reflexões autorais e a interpretações de documentos históricos oficiais. Para White, não se trata de negar o fato histórico em si nem de defender que as narrativas históricas sejam ficções, mas de ressaltar que existem, de fato, elementos subjetivos na construção de discursos históricos e que eles provêm, em grande parte, do caráter autoral, linguístico e narrativo presentes na produção historiográfica.

É claro que a literatura apresenta características particulares no que se trata da narratividade, pois a ficcionalidade possibilita a criação de mundos que podem existir de acordo com normas sociais que diferem da realidade. No entanto, a literatura, mesmo com seu caráter ficcional, está sempre entrelaçada a discursos históricos. A relação entre história e literatura dá-se, principalmente, na forma de romances históricos, gênero consagrado pela teoria de Georg Lukács no clássico O Romance Histórico, publicado originalmente em 1937. Ao traçar o desenvolvimento do gênero desde o século XVIII, Lukács identifica o romance histórico com a emergência do estado nação moderno no final do século XVIII e aponta a obra de Sir Walter Scott como a maior influência do gênero, que utiliza técnicas realistas para conferir veracidade à narrativa histórica dentro da sua forma ficcional. O teórico húngaro atribui ao gênero a função de tratar “do despertar ficcional dos homens” que protagonizaram a história e de “figurar de modo vivo as motivações sociais e humanas a partir das quais os homens pensaram, sentiram e agiram de maneira precisa, retratando como isso aconteceu na realidade histórica” (Lukács, 2011, p. 137).

Na crítica literária feminista, a visão de Lukács tem sido criticada principalmente a partir da década de 1970 quando o feminismo ganhou força no cenário acadêmico. Ruth Hoberman, por exemplo, alega que a relação que Lukács defende entre personagens e suas conquistas históricas só pode ser realizada por “figuras que são livres para vagar, conhecer pessoas e obter poder” (Hoberman, 1990, p. 356, tradução minha). Como se sabe, as mulheres – assim como minorias étnicas e raciais – foram impedidas de acessar os privilégios de mobilidade, poder, autoria e liderança ao longo da história e tiveram de se engajar em intensas lutas para adquirirem direitos políticos e sociais. Hoberman, então, afirma que as teorias de Lukács sobre a ficção histórica apagam “as particularidades das experiências das mulheres”, o que resulta na “reiteração da ausência de mulheres dentro da história” (Ibidem, p. 357, tradução minha). O mesmo pode-se dizer sobre minorias étnicas, raciais e sexuais.

É exatamente essa questão de ‘ausências’ e ‘lacunas’ dentro da historiografia que romances históricos contemporâneos tentam preencher. Na literatura inglesa, as obras neo-Vitorianas de Sarah Waters, por exemplo, visam criar um arquivo histórico ficcional para lésbicas, tendo em vista que os registros oficiais sobre mulheres homossexuais no século XIX na Inglaterra são escassos. Por ter sido considerada crime de 1885 até 1967 na Grã-Bretanha, a homossexualidade entre homens sempre foi um tema de debate público que ganhou força com o julgamento de Oscar Wilde em 1895, no qual o escritor foi condenado a dois anos de prisão por sodomia e obscenidade. Em contrapartida, a imprensa, juristas e setores conservadores da sociedade britânica acreditavam que não seria de bom tom discutir homossexualidade entre mulheres publicamente porque isso poderia dar ideias imorais a elas, que acreditariam no amor e no desejo sexual sem a presença masculina e fora dos padrões do casamento. Porém, isso não quer dizer que mulheres não eram punidas quando flagradas em relações sexuais com outras mulheres: elas eram comumente internadas em instituições psiquiátricas ou religiosas, onde sofriam tratamentos abusivos e violentos que tentavam ajustar as mulheres a padrões de feminilidade baseados na domesticidade, na maternidade e no casamento.

Na obra de Sarah Waters, principalmente em seus três primeiros romances, a escritora propõe a criação de arquivos históricos ficcionais que representem possíveis passados para lésbicas na Inglaterra. Esses passados históricos são construídos a partir de pesquisas históricas aprofundadas sobre o período Vitoriano (1837-1901) que são retratadas a partir da reprodução crítica de técnicas e gêneros literários vitorianos, como o realismo social, o gótico e o romance de sensação. Além de entrelaçar a pesquisa histórica com tradições literárias, Waters acrescenta às suas versões do século XIX temáticas contemporâneas presentes nas teorias queer e feministas do século XX. Um exemplo é o seu primeiro romance, Tipping the Velvet (1998), que se passa no final do século XIX. Nele, Waters utiliza a cena teatral de Londres, o desenvolvimento urbano e as diferenças sociais entre o Leste e Oeste da cidade no século XIX para apresentar as discussões levantadas por Judith Butler sobre a construção de identidade de gênero e de sexualidade a partir da repetição de normas estabelecidas por relações históricas e culturais.

O teatro em Tipping the Velvet não é apenas um cenário no romance, mas é a sua essência, pois ele é representado pelo sucesso dos chamados male impersonation acts, números teatrais nos quais atrizes interpretavam homens em teatros populares na Londres vitoriana. Essas performances teatrais eram paródias do comportamento masculino e eram consideradas subversivas porque, além de ridicularizar os homens, principalmente aqueles de classe social mais alta, elas também poderiam comunicar a ideia de que as mulheres seriam capazes de ter as mesmas liberdades que os homens. Não é à toa que a artista Vesta Tilley, em quem Waters baseou sua protagonista Nancy Astley, sofreu diversas hostilidades públicas por ser considerada um símbolo de autonomia e independência. Tilley foi uma das mais famosas da cena teatral de Londres no final do século XIX com sua encenação musical de personagens masculinos. Embora Waters não apresente nenhuma personagem cuja significância tenha sido reconhecida pela história tradicional, como é o caso de Tilley, muitas delas são baseadas em mulheres de extrema importância na história cultural, social e literária inglesa. Enquanto Nancy Astley representa o talento e independência artísticos de Tilley, a autonomia de mobilidade e de atuação no espaço urbano, sua companheira Florence Banner, inspirada na ativista social e enfermeira Florence Nightingale e na ativista socialista Eleanor Marx, personifica a luta feminista da classe trabalhadora no Leste de Londres.

Não se trata, como na teoria de Lukács, de apresentar personagens históricos para validar a historicidade presente no ficcional, mas de mostrar como o arquivo histórico muitas vezes omite, exclui ou diminui a importância histórica das mulheres. Ainda há muitos teóricos e historiadores que sustentam a ideia de que mulheres no século XIX eram submissas, passivas e completamente devotas aos seus maridos e, embora esse comportamento fosse de fato dominante, sabemos que ele era idealizado e que muitas mulheres o rechaçavam. Além disso, esse modelo de feminilidade do século XIX correspondia a um ideal das classes média e alta, cujas mulheres não tinham a necessidade de trabalhar. As mulheres trabalhadoras, protagonizadas no romance pela personagem de Florence Banner e suas amigas de Bethnal Green, tinham vidas fora da esfera doméstica na rotina de dupla jornada do trabalho mal pago e do trabalho doméstico de suas casas.

No Brasil, a literatura produzida por mulheres também aborda as exclusões de discursos históricos e culturais tradicionais, conforme elucidado nesse post de Paula Dutra. Um exemplo na literatura brasileira contemporânea é o romance histórico Um Defeito de Cor (2006) de Ana Maria Gonçalves. Narrado em primeira pessoa e em formato autobiográfico, o livro conta a história de Kehinde, uma escrava capturada ainda criança no Reino de Daomé (atualmente denominado Benim) e levada para o Brasil com sua irmã gêmea e com sua avó por traficantes de escravos. A trajetória de Kehinde passa pela Bahia, pelo Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo e Benim e o seu relato, escrito em retrospectiva quando a personagem já é idosa, abrange a violência do Brasil colonial e também a resistência dos escravos contra a exploração e a violência escravista. Ao conseguir comprar sua liberdade, Kehinde passa a viver com um português branco com quem tem um filho, o qual é vendido ilegalmente como escravo pelo próprio pai.

No prefácio do livro, Gonçalves antecipa as origens do romance que, segundo ela, se deu por uma ‘serendipidade’, palavra usada para descrever uma “situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra” (Gonçalves, 2016, p.9). Em pesquisa sobre a Revolta dos Malês em Salvador, Gonçalves mudou-se para a Bahia e passou um tempo na Ilha de Itaparica, onde, por acaso, encontrou um manuscrito anônimo supostamente produzido no século XIX que relatava a trajetória de Kehinde em forma autobiográfica. As páginas perdidas e ilegíveis do manuscrito foram preenchidas por Gonçalves, que complementou os escritos com a sua própria ficção e o seu conhecimento histórico adquirido durante a pesquisa sobre a Revolta dos Malês. Sendo assim, é possível afirmar que existe nesse romance um diálogo entre história e literatura no sentido em que o manuscrito é uma mistura de memória histórica e ficção, representada pela escrita de Gonçalves.

Não se sabe se o texto foi escrito por uma escrava ou se foi inventado por uma autora. Segundo Gonçalves, “[e]specula-se que [a história] pode ser apenas uma lenda, inventada pela necessidade que os escravos tinham de acreditar em heróis, ou, no caso, em heroínas, que apareciam para salvá-los da condição desumana em que viviam.” (Gonçalves, 2016, p. 16). Gonçalves aponta que há, de fato, precisão de datas, locais, nomes e acontecimentos históricos no manuscrito que sugerem autenticidade histórica no documento. No entanto, Gonçalves diz que “é bom que a dúvida prevaleça” (Gonçalves, 2016, p. 17), pois o manuscrito, mesmo misturando o histórico com o ficcional, relata uma história de violência, resistência e sofrimento causados pelo tráfico de escravos.

O que chama a atenção no livro são os detalhes sobre a organização de resistência entre os escravos e também o sincretismo religioso e cultural das diversas comunidades africanas no Brasil. Além disso, o romance mostra a complexidade do sistema escravocrata na esfera mundial ao entrecruzar as histórias da escravidão no Brasil e a independência de Portugal com as expedições colonizadoras da Inglaterra. O romance começa em 1810, três anos depois de a Inglaterra abolir oficialmente a escravidão em seu território nacional, ainda que ela fosse permitida em suas colônias, onde a escravidão só fora abolida em 1833. O romance de Gonçalves deixa claro que os interesses ingleses na abolição estavam mais ligados aos lucros capitalistas do que a preocupações sobre direitos humanos:

[...] fiquei sabendo que os ingleses eram contra a escravatura. Não porque fossem bonzinhos e achassem que também éramos gente, como de fato faziam pensar nos tratando melhor que os senhores portugueses ou brasileiros, mas porque tinham interesse em que fôssemos libertos. [...] Foi naquela casa que fiquei sabendo que não havia mais escravos nem em Inglaterra nem nos seus domínios, que todas as pessoas eram livres para morar e trabalhar onde quisessem, recebendo dinheiro. Era isso que os ingleses mais queriam, que todos tivessem dinheiro para comprar as mercadorias produzidas nas grandes fábricas construídas em Inglaterra. (Gonçalves, 2016, p. 220).

Ao entrelaçar ficção e história, o romance de Gonçalves toca em questões importantes sobre a escravidão não somente no Brasil, mas também no cenário colonial do século XIX. Tanto o romance de Sarah Waters como o de Ana Maria Gonçalves retratam o passado histórico em perspectiva presente, abordando o apagamento histórico referentes, respectivamente, às mulheres lésbicas na Inglaterra e às mulheres negras no Brasil. Nesses romances, não há uma busca de uma ‘verdade histórica’ ou a necessidade de representar ‘grandes conquistas dos homens’, mas de ressaltar a violência e a exclusão presentes na historiografia tradicional.  

Obras citadas:

GONÇALVES, Ana Maria. Um Defeito de Cor. Rio de Janeiro: Record, 2016 (2006).
HOBERMAN, Ruth. “Multiplying the Past: Gender and Narrative in Bryher’s ‘Gate to the Sea’”. In: Contemporary Literature, 31.3 (Outuno 1990), pp. 354-372.
LUKÁCS, György. O Romance Histórico. Rubens Enderle (trad.). São Paulo: Boitempo, 2011 (1937).
WATERS, Sarah. Tipping the Velvet. Londres: Virago Press, 2009 (1998).
WHITE, Hayden. Figural Realism: Studies in the Mimesis Effect. Baltimore e Londres: John Hopkins University Press, 1999.


19 de agosto de 2017

Dilemas da ausência: a morte sem corpo no conto “Joana”, de Bernardo Kucinski

Maíra Silva da Fonseca Ramos

Universidade de Brasília

Imagem: Mark Acetelli, Antonio

Neste ensaio, proponho uma análise do conto Joana, de Bernardo Kucinski, constante do livro Você vai voltar pra mim e outros contos, que aborda a temática do desaparecimento involuntário de pessoas durante a ditadura militar brasileira e os efeitos dessa ausência nas relações familiares. O desaparecimento forçado de pessoas traz consequências para além daquelas ditadas pelas leis brasileiras. A falta de um corpo para velar e enterrar faz com que o fim da vida fique em suspenso: como reconhecer a morte quando falta um corpo?
Com a morte, cessa a personalidade jurídica do indivíduo. Contudo, isso pode gerar maiores controvérsias quando se trata de pessoa ausente, em casos nos quais não foi possível a localização do corpo do falecido. A ausência comprova-se pelo simples desparecimento de uma pessoa de seu domicílio, sem dar notícias nem deixar procurador responsável pela administração de seus bens, mas tal fato não significa uma certeza do óbito, que seria comprovado pelo corpo físico do falecido.
Não se sabe se a pessoa foi exposta a eventos que gerem risco de vida, a única coisa real é a falta prolongada de notícias, que faz supor a morte. Em algumas situações, quando seja extremamente provável a morte do indivíduo exposto a situação de risco, o Código Civil e a lei de registros públicos permitem que seja decretada a morte presumida, como por exemplo, em casos de incêndio ou desastre aéreo, nos quais não se faça possível a localização do cadáver.
A Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979 (Lei da Anistia), permitiu que parentes de pessoas desaparecidas, das quais não se tenha notícia há mais de um ano e que estavam envolvidas em atividades políticas entre 02/09/1961 e 15/08/1979, postulassem a declaração de ausência e posterior sucessão definitiva nos bens deixados pelo ausente. Após esgotados os recursos, a sentença que declarasse a ausência deveria ser levada a registro no Cartório de Registro Civil, gerando, neste momento, a presunção de morte para os fins sucessórios, nos termos do art. 4º, § 6º.
Por sua vez, a Lei 9.140/95 trouxe em seu anexo uma relação nominal de 136 pessoas presumidamente mortas no período da ditadura militar brasileira, em relação às quais se fará possível a lavratura do assento de óbito (art. 3º da Lei). Não afastou, entretanto, a possibilidade de reconhecimento da condição de desaparecidos políticos para pessoas ali não nominadas, desde que os familiares, juntando provas do fato, solicitassem a uma Comissão Especial que esse reconhecimento fosse feito. Foi conferido aos familiares o direito de postular indenização, no prazo de 120 dias contados da promulgação da Lei ou do reconhecimento do óbito por parte da Comissão Especial.
Caio Mário da Silva Pereira afirma que se está diante de uma “morte fictícia”, ao estabelecer como verdadeiro um fato não confirmado[1], gerando efeitos no mundo jurídico: a abertura da sucessão, para transmissão dos bens deixados pelo ausente; o recebimento de pensão previdenciária por parte dos familiares, comprovada a dependência econômica; a extinção do vínculo matrimonial, que não mais poderá impedir o cônjuge sobrevivente de contrair novo casamento; o reconhecimento do direito à indenização ao cônjuge ou companheiro(a), aos descendentes, ascendentes e colaterais até o quarto grau.
E como fica a situação dos familiares do desaparecido, já que seus bens estarão sob administração? Os filhos e a esposa, se houver, poderão dar continuidade à vida mesmo depois da decretação da morte presumida? A morte inconclusa e a busca quase eterna por um corpo para enterrar tem consequências que desbordam aquelas previstas pela legislação. A aceitação da morte, inclusive, vai se dar em momentos diferentes para cada uma das pessoas da família e a decisão de encerramento das buscas tem um preço para os que ficam: o luto eterno, enfim, chega ao fim e a vida dos sobreviventes precisa seguir adiante.
A escrita ficcional consegue se tornar espaço privilegiado para expor rasuras e traumas vividos recentemente no país, após a implementação do Golpe Militar de 1964, respondendo de forma positiva à pergunta sobre ainda ser possível fazer literatura após momentos de horror. Os limites da representação são testados e a “ficção torna-se fundamental para a expressão do trauma” (SILVA, 2014, p. 60).
Você vai voltar pra mim e outros contos, obra publicada por ocasião dos 50 anos do Golpe Militar de 1964, traz um alerta em sua introdução, dado pelo autor: as histórias da coletânea fazem parte de um conjunto maior, de 150 contos, escritos entre junho de 2010 e junho de 2013, tendo sido selecionados aqueles inspirados “no clima de opressão reinante no nosso país nas décadas de 1960 e 1970 e suas sequelas”. Arremata que os contos podem remeter a pessoas reais, porém não passam de invenção, sem obrigação de fidelidade a pessoas ou fatos que eventualmente inspiraram as histórias.
O autor, jornalista, escritor e ex-professor universitário, vivenciou o desaparecimento de sua irmã, Ana Rosa Kucinski e do marido, em abril de 1974. Seu primeiro romance, K.: relato de uma busca, aborda a ausência sob a perspectiva paterna. Depois de anos de busca, o pai, ciente da impossibilidade material de acesso ao corpo da filha desaparecida durante a ditadura militar e já convencido do pior, decide “enterrar” a filha cujo corpo não pôde localizar. Mas que autoridade religiosa aceitaria desafiar as leis divinas e velar um corpo de que não se tem notícias?
No mesmo sentido está o conto Joana, que tematiza o desaparecimento familiar, agora sob a perspectiva da esposa, e a rasura que essa ausência forçada deixou na vida dos que ficaram. O conto nos traz a história de uma mulher, mãe, avó de quatro netos, esposa, cujo marido desapareceu há exatos 26 anos. A voz narrativa, porém, é a de um advogado, que acompanha de relance a peregrinação diária dessa mulher em busca do ex-companheiro.
Não convencida da morte do marido, a protagonista caminha noite após noite abordando todos os mendigos que encontra pelas ruas, na esperança de que algum deles tenha notícia do desaparecido:

Uma ou duas noites por semana, ela junta algumas moedas e sai envolta em seu xale. Exibe a fotografia de Raimundo aos moradores de rua, pergunta se apareceu algum andarilho ou indigente desconhecido de mais idade e tez branca. Se dizem que sim, ela quer saber debaixo de qual marquise ou em qual abrigo da Prefeitura ele está e vai atrás dele. (...) É como se uma força superior a fizesse se levantar automaticamente e sair errante pelas ruas à procura do marido. (KUCINSKI, 2014, p. 60)

O marido de Joana, Raimundo, é descrito pelo advogado como um nordestino migrante, que aportou em São Paulo para trabalhar como metalúrgico. Envolve-se com um grupo que organizava operários nas fábricas, tendo sido desaparecido pela Polícia, que o retirou de casa sem ao menos um mandado de prisão. Após sessões de torturas, pois “seus gritos eram ouvidos em outras celas” (KUCINSKI, 2014, p. 59), a polícia terminou por ocultar o cadáver do desaparecido.
O aparato estatal repressivo à tortura e protetivo às vítimas dos desmandos ocorridos no período da ditadura militar é descrito pelo advogado, que relata o recebimento, por parte de Joana, de uma pensão paga pelo Estado, após a judicialização do conflito:

(...) Sumiram com o corpo de Raimundo. Tudo isso foi comprovado, depois que acabou a ditadura, por documentos e depoimentos em várias comissões. Só não se sabe, nunca se soube, para onde levaram o corpo e como se desfizeram dele. Se foi enterrado como indigente ou incinerado, ou disposto de outra forma. Isso nenhuma das diligências conseguiu elucidar. Foi um dos casos mais impenetráveis de desaparecimento, um caso em que nenhuma pista surgiu. (KUCINSKI, 2014, p. 59)

A não aceitação da morte, em vista da ausência de um corpo para enterrar e a falta de apontamento real da causa do óbito, levam a companheira a duvidar do desfecho dado ao caso pelo governo e pelas instituições oficiais. A vida de Joana precisa seguir, mas a mulher ainda persiste, dia após dia, em busca do marido, que acredita desmemoriado por conta das inúmeras agressões físicas. O encerramento judicial do caso, com o pagamento de pensão mensal aos familiares, não cessa as esperanças no reencontro, tampouco é capaz de suprir a lacuna deixada com a ausência:

(...) Cadê o corpo?, ela perguntou. E sempre pergunta. Diz que só vai se considerar viúva no dia em que trouxerem o atestado de óbito de Raimundo e mostrarem sua sepultura. (...) Não aceita como prova da morte o atestado de óbito fornecido pelo Governo, que não diz em que dia ele morreu, nem onde, nem a causa mortis. De fato é um pseudoatestado, só serve para a família cuidar do inventário e seguir a vida. E Joana segue a vida, mas a seu modo. (KUCINSKI, 2014, p. 59)

A ausência do corpo já foi objeto de estudo por parte da autora Ludmila Silva Catela, segundo a qual o desaparecimento pode ser encarado como uma morte inconclusa (CATELA apud SILVA, 2014, p. 62).  E mais, para a autora, resta impossibilitado um momento específico do luto para os parentes do desaparecido, fazendo com que esse momento, temporário por natureza, se eternize, produzindo uma situação contrária à morte: tudo continua como se não houvesse acontecido (CATELA apud LEHNEN, 2014, s/p).
O conto situa o leitor numa atmosfera de intensa crueldade e desrespeito à dignidade humana, num cenário em que reinam abuso de poder e impunidade, podendo ser notada, na escrita de Kucinski, “uma grande preocupação estética em ‘apresentar o evento traumático’, a partir da autenticidade ficcional em situações de grande credibilidade, na demarcação construtiva da memória.” (XAVIER, 2016, p. 97)
Como visto, a despeito de a legislação regular o instituto da ausência e, de forma especial, a presunção (ou ficção) da morte dada por lei aos desaparecidos políticos, vê-se que o instituto permanece protetivo à segurança do patrimônio do ausente, não à reconstrução da família, que se viu atingida pelo desaparecimento de seu membro. O conto Joana traz a questão da ausência, em particular a incerteza da morte e como os familiares lidam com a situação, evidenciando que nem sempre a regulamentação legislativa possibilita pôr fim à história, nos moldes em que oficialmente foi encerrada. A falta de um corpo para enterrar e a morte inconclusa geram efeitos que as páginas de processos judiciais e a proteção conferida por lei não são capazes de dimensionar. Daí a importância da literatura, que, por meio da ficção, problematiza a representação de eventos traumáticos, oferecendo multiplicidade de pontos de vista a questões que ainda se apresentam bastante tormentosas.



[1] “A presunção se vincula à prova, e não ao fato. Enquanto a presunção supõe a prova de um fato verdadeiro, a ficção estabelece como verdadeiro um fato não confirmado. Ao reconhecer como mortas pessoas desaparecidas em razão da participação ou acusação de participação em atividades políticas, no período de 02.09.61 a 15.08.79, a ficção comparece no mundo jurídico para indicar ‘uma verdade, ainda que seja uma verdade abstrata’, como ensina Valdir Sznick.” (PEREIRA, 2001, p. 24)

 Referências

KUCINSKI, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

LEHNEN, Leila. A memória como empresa: os empresários da memória em K., de Bernardo Kucinski. Revista Nonada Letras em Revista, v. 1, n. 22, 2014. Disponível em http://seer.uniritter.edu.br/index.php/nonada/article/view/827/569. Acesso em  05.01.2017

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Pessoas Desaparecidas em Atividades Políticas no Período da Repressão: os efeitos jurídicos e sociais da Lei 9.140/95 in Direito Contemporâneo: estudos em homenagem a Oscar Dias Corrêa, I. G. da Silva Martins (coord.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 12-26.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. V, Direito de Família. 11a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

SILVA, Izabel Priscila Pimentel da. Narrando o inenarrável: a literatura de testemunho de Bernardo Kucinski. Revista Outras Fronteiras, Cuiabá, vol. 1, n. 1, jun. 2014. p. 50-71.

XAVIER, Joelma Rezende. De memória, trauma e ficção: um olhar sobre a narrativa de Bernardo Kucinski. Revista Literatura e Autoritarismo, n. 16, 2016. Disponível em https://periodicos.ufsm.br/LA/article/viewFile/21508/13030. Acesso em 15.01.2017

11 de agosto de 2017

Literatura e resistência no Brasil hoje

Regina Dalcastagnè

Universidade de Brasília

A filha morta


Gostaria de iniciar minha fala lembrando de uma entrevista com um grande escritor brasileiro, que se debruçou com ética e desalento sobre o seu tempo. Antonio Callado afirmava que um escritor pode inventar qualquer coisa, menos uma revolução que não aconteceu. Não aconteceu nos anos 70 e não acontecerá hoje. Este não é um país de revoluções, o que não significa que não seja um lugar de profundas e históricas lutas de resistência – que o digam os descendentes dos africanos escravizados, cada menino e menina negros por este país afora. Que o diga Rafael Braga!

Por isso, nessa mesa sobre artes e revolução, vou falar de literatura e resistência no Brasil hoje.

Sartre dizia que a tarefa do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e se considerar inocente diante dele. Pergunto se essa não é a nossa tarefa, também, como pesquisadores e, fundamentalmente, como educadores. A cada vez que entro em uma sala de aula, quando me sento para ler uma tese ou para escrever sobre um livro, quando me vejo nessa posição, em um evento acadêmico sobre literatura, penso o quanto seria inócuo um trabalho, uma vida, que ignorasse a sua implicação e a sua responsabilidade com o mundo lá fora, para além dessas paredes que nos protegem e nos sufocam.

Em tempos de golpe de Estado e de avanço dos discursos fascistas no país, gostaria de propor uma breve reflexão sobre as formas de resistência que vêm sendo construídas no interior do campo literário brasileiro, me inserindo, desde já, ao lado daqueles que resistem.

Para isso, é preciso lembrar, antes de mais nada, que o golpe instaurado no país em 2016, e que continua se processando neste momento, tem como objetivo a destruição dos direitos trabalhistas, a entrega das riquezas do país ao capital internacional, a divisão do butim entre os banqueiros, os latifundiários, os especuladores, os donos da grande mídia. Mas que, para conseguir isso, eles precisam conter o movimento de democratização que, de algum modo, se fortalecia no país, especialmente a partir do acesso à educação pública e à cultura. Portanto, esse golpe se estabelece contra os direitos das mulheres, dos negros, dos trabalhadores, dos moradores das periferias, da população LGBT; contra sua inserção social e contra suas formas de expressão. Se estabelece, também, contra o ensino público, gratuito, laico e de qualidade. Não é à toa que temos uma universidade como a UERJ abandonada pelo poder público, sem o pagamento dos salários de seus funcionários e professores, fechada por tempo indeterminado.

Daí a importância de estarmos aqui dentro hoje, ocupando esse espaço, essas mesas e cadeiras, esses corredores. Esse encontro se configura, assim, como um manifesto de solidariedade aos que estão lutando contra a destruição da UERJ, entendendo que esta não é uma peça que cairá sozinha. Sabemos bem que a campanha para o fim do que chamam de “injusto ensino gratuito” tem um olho na desoneração do Estado, outro no bolso dos que mercadejam o ensino privado e um terceiro (é, eles são umas aberrações) na possibilidade de perseguição de uma parcela importante da militância contra o golpe, ou seja, nós, professores e estudantes.

Agradeço e parabenizo, então, toda a direção da ABRALIC, representada por João Cézar de Castro Rocha, e toda a equipe de organização, incluindo aí os monitores, estudantes que se empenharam para que pudéssemos estar aqui e expressar nosso descontentamento e nos organizar em torno de uma luta que é urgente e implica a nossa sobrevivência enquanto professores e pesquisadores de literatura.

Afinal, o que podemos imaginar que vá sobrar para nossa área após esse inconcebível desmonte? O que faremos com o anunciado fim das bolsas do CNPq, com o já efetivo desaparecimento dos editais de financiamento para pesquisa, para eventos, para publicação de periódicos, com o contínuo desprezo aos estudos literários na educação fundamental e no ensino médio? O que diremos aos nossos estudantes, aos nossos orientandos que se preparam para ser professores? O que restará daquilo que acreditamos?

E não me refiro apenas à nossa carreira (o que já é muito sério), mas ao nosso entendimento da função dos estudos literários em nossa sociedade. O que vai muito além da simples “preservação” de um cânone, ou de uma lista de nomes de obras fundadoras em um quadro negro.

O historiador francês Lucien Bianco dizia que “as armas dos fracos são sempre fracas armas”, mas é com elas que teremos que lutar. Nossas soluções serão provisórias e, certamente, angustiadas, mas talvez nos permitam ficar de pé enquanto as coisas não mudam. Podemos usar o discurso, nossa arma principal, para referendar o que querem os poderosos (como fazem alguns colegas e escritores), mas também podemos usá-lo para desmascará-los ou, mesmo, para tirar-lhes o sossego. É tempo de disputar consciências e tentar preservar espaços democráticos de enunciação de discursos, de representações do mundo.

Por menor que seja esse nosso restrito circuito acadêmico e literário, temos muitas frentes de resistência aqui. Elas podem ir desde a produção de autoras e autores negros, pobres e de periferia, que insistem em fazer arte em um mundo que nega valor à sua experiência, e mesmo à sua vida; até a recente retomada da ditadura como tema literário, por exemplo, com o resgate de memórias apagadas e a sinalização de riscos que não são passado, mas, infelizmente, possível futuro para nós.

A resistência passa, ainda, pelo esforço de pequenas editoras, de pequenas livrarias, de coletivos de escritoras e escritores que estão se organizando, nesse instante mesmo, para manter abertos espaços de publicação e divulgação da literatura. Todo um conjunto de pessoas que buscam, de algum modo, se erguer contra o amesquinhamento do mundo e o desmonte de nossa cultura.

Outra dessas frentes passa pela nossa atuação como professores e críticos literários, pelo necessário apoio aos nossos estudantes e orientandos em suas escolhas e em suas dificuldades, pessoais, econômicas, políticas. E passa – não poderia deixar de ressaltar – pela resistência ao nosso próprio conceito de literatura, ao enquadramento que damos ao literário, ao que aprendemos ser o bom, o belo, o correto, o legítimo, à nossa tendência a excluir tudo aquilo que escapa desses contornos tão pré-estabelecidos.

Em todos os extensos levantamentos que venho coordenando a partir da Universidade de Brasília, seja sobre os autores e romances publicados pelas grandes editoras (já temos dados sobre cerca de 700 romances, cobrindo os últimos 40 anos); seja sobre nossa própria produção enquanto pesquisadores da literatura (temos dados sobre mais de 3 mil artigos publicados em revistas A1 – as melhor conceituadas na área – nos últimos 15 anos), é possível observar uma preocupante repetição do mesmo.

Entre os autores e personagens, um mesmo perfil muitas vezes reiterado: brancos, homens, classe média, heterossexuais, moradores de Rio de Janeiro e São Paulo (o mesmo perfil dos autores que são resenhados, premiados, traduzidos e adquiridos pelas bibliotecas).

Entre a produção acadêmica, entendendo-se que os artigos em periódicos sejam reveladores do que se está pesquisando e ensinando nas universidades, vemos os mesmos temas se repetirem, os mesmos escritores sendo estudados, os mesmos teóricos dando suporte à discussão. Nem é preciso dizer que, mais uma vez, esse perfil é branco, masculino, eurocêntrico etc. E, aqui, temos ainda o constrangimento de esclarecer que a maior parte da autoria dos artigos (quase 60%) é composta por mulheres – ao contrário da autoria dos romances, onde as mulheres não chegam a 30%.

Me refiro a esses dados só para lembrar que precisamos refletir sobre nosso modo de olhar o mundo, nos situar e agir nele. Precisamos refletir sobre o que estamos escolhendo legitimar como literário, sobre o que estamos excluindo quando fazemos isso e por quê. Precisamos, enfim, pensar sobre o que estamos pensando, como dizia Pierre Bourdieu.

Esse é um chamado a todos nós, professoras, professores e estudantes, mas também aos escritores, editores, tradutores, livreiros, bibliotecários, jornalistas, gestores públicos, curadores... A defesa da literatura brasileira tem de ser a defesa de uma literatura para todos, feita por todos que acreditem ter algo a expressar sobre o mundo.

Com o fim – primeiro de jure, agora de facto – do Ministério da Cultura, com o fim dos programas de compras de livros para as escolas pelo Ministério da Educação, com a sombra que ronda a universidade pública, com o desaparecimento do ensino de literatura nas escolas, com o avanço da patrulha do pensamento crítico que atende pelo nome risível de “Escola Sem Partido”, o que restará para ser lido e estudado daqui para frente? Meia dúzia de autores iluminados? Seremos os últimos guardiões de textos que já não dirão mais nada a ninguém? Talvez eu esteja sendo muito apocalíptica, não sou da turma dos “tranquilos”. Mas ainda quero crer que podemos manter alguns espaços conquistados.

Ressalto, então, a importância de alguns movimentos que podem ser fortalecidos por nós de diferentes maneiras, a começar pelo efetivo acompanhamento dessa produção:

Primeiro, os coletivos de autoria negra, que têm início no final dos anos 70, começo dos anos 80, com a publicação dos Cadernos Negros, por exemplo, e que se desdobram hoje em uma série de editoras especializadas, como a Mazza, a Nandyala, a Pallas, a Oguns Toques Negros, a recentíssima Malês, entre outras, incluindo ainda espaços em sites e blogs, que armazenam e divulgam essa produção, rica, extensa e variada.

Ao lado deles, há os coletivos de periferia, que, como lembra Michel Yakini, escritor, editor e ativista da periferia de São Paulo, ajudam a formar leitores, não só para a literatura produzida ali, mas também aquela publicada pelas grandes editoras: “tá lá neguinho participando dos saraus com o Leminski da Companhia das Letras embaixo do braço”, ria ele em uma palestra outro dia, pedindo reconhecimento de todo um trabalho cultural que vem sendo realizado nesses espaços.

Também as organizações de mulheres, que estão se juntando para ler, publicar e estudar outras mulheres, ajudam a ampliar o espaço da literatura. A preparação coletiva do Mulherio das Letras, sugerido pela escritora Maria Valéria Rezende, e já com mais de 5 mil mulheres em rede (que se reunirão em um grande encontro em João Pessoa agora em outubro) é um marco importante de resistência no campo literário.

Há ainda um jornalismo cultural que resiste bravamente, como o Suplemento Pernambuco, por exemplo, e curadores de festivais preocupados em democratizar inclusive espaços comerciais, como fez Josélia Aguiar neste ano.

Por fim, tem uma garotada de diferentes regiões do país se juntando e publicando coletâneas belíssimas em formato digital aqui e ali, disponibilizando seu trabalho gratuitamente pelas redes sociais; e editores empenhados e teimosos, que continuam publicando livros de autores brasileiros, em tiragens reduzidas ou mesmo com impressão livro a livro. Todos fazendo um esforço miserável para divulgar sua produção, muitas vezes ignorada por nós porque ainda valorizamos demais os livros publicados pelas grandes editoras, resenhados pelos grandes jornais e expostos nas prateleiras das grandes livrarias, quando, na verdade, o mais interessante e original está, a meu ver, acontecendo muito longe dali.

Só como exemplo, o belo Impossível como nunca ter tido um rosto, último livro de Ricardo Aleixo, poeta de Minas Gerais com inúmeras obras publicadas, foi editado por sua própria conta, é vendido diretamente por ele, pela internet, e foi lançado em uma ótica em Belo Horizonte. Já Conceição Evaristo, aos 70 anos de idade, ainda anda com sua malinha cheia de livros para vender ela própria em suas palestras pelo país e mundo afora – nunca são suficientes!

Não custa lembrar que essas obras, de escritores negros, periféricos, de mulheres e mesmo jovens fora do eixo, causam – em diferentes medidas e proporções – uma dissonância em um campo literário que se quer harmônico, estável e consolidado. A disputa por espaço que esses autores e autoras empreendem não é algo que determinados grupos, determinados críticos e determinados escritores (muito certos de sua própria superioridade) aceitam entender como legítima.

A negação da validade dessas expressões é, como já disse, um dos objetivos desse golpe. A elite brasileira não aguenta ver sua empregada doméstica disputando a vaga do vestibular com seus filhos, não suporta vê-la como professora, não aceita imaginá-la como uma pesquisadora, como uma escritora, como uma artista. Mas elas estão aí!

Cabe a nós a reflexão sobre os significados dessa disputa e o sentido – estético e político – dessas obras. Se eximir dessa discussão é, muitas vezes, já se situar – do lado daqueles que ocupam as posições centrais no campo literário e social. Ser indiferente não me parece ser uma opção hoje, se é que algum dia já foi.

E aqui retomo as palavras de Abel, protagonista do romance Avalovara, de Osman Lins (publicado em 1973), e que também é um escritor angustiado com o seu tempo, assim como Antonio Callado e tantos outros e outras: “A indiferença do escritor é adequada à sua presumível elevação de espírito? Para defender a unidade, o nível e a pureza de um projeto criador, mesmo que seja um projeto regulado pela ambição de ampliar a área do visível, tem-se o privilégio da indiferença? Preciso ainda saber se na verdade existe a indiferença: se não é e isto um disfarce da cumplicidade. Busco as respostas dentro da noite e é como se estivesse nos intestinos de um cão. A sufocação e a sujeira, por mais que procure defender-me, fazem parte de mim – de nós. Pode o espírito a tudo sobrepor-se? Posso manter-me limpo, não infeccionado, dentro das tripas do cão? Ouço: ‘A indiferença reflete um acordo, tácito e dúbio, com os excrementos’. Não, não serei indiferente”.

Participar do debate político em um momento de ruptura da democracia, contaminar a própria escrita, ou a crítica, em busca do desmascaramento de um processo autoritário é ainda acreditar – nos homens e mulheres e na própria literatura como instrumento de ação. Quando desistirmos de nossa capacidade de acreditar, a luta, enfim, estará perdida.

Gostaria de finalizar minha fala com uma imagem. É do século XIX, dos primórdios da fotografia, quando ela não era acessível a todos (e seus dispositivos não podiam ser carregados dentro do bolso traseiro da calça). Durante séculos, gerações viviam e morriam sem ter uma única imagem registrada. A fotografia permitiu isso, a materialização da memória, mas muitas vezes alguém querido falecia antes que se tivesse tempo de fotografá-lo. Daí o surgimento de toda uma engenharia para fotografar pessoas já mortas como se estivessem vivas: suportes metálicos para a sustentação dos corpos, maquiagem apropriada antes e pintura na pós-produção da fotografia, entre outras técnicas e estratégias próprias de cada fotógrafo para cada situação.

Com a popularização da fotografia tudo isso foi desaparecendo, é claro. Mas lembrem que as primeiras câmeras fotográficas – os daguerreótipos – exigiam um tempo de exposição muito longo, para que a imagem se fixasse na película de prata que recobria a placa de cobre. Por isso as fotos antigas trazem figuras tão rígidas, ninguém podia se mexer ou a imagem ficaria desfocada.

Nesta foto, a filha está morta. Reparem como seu rosto é tranquilo e nítido. Enquanto isso, os rostos dos pais perdem clareza e foco. É que respirar gera movimento. Estar vivo impossibilita a fixidez.

Essa imagem, em sua tristeza contida, é uma metáfora sobre a necessidade do movimento para confirmar a vida, e da necessidade de nos deslocarmos para enxergar o que está vivo ao nosso redor, nos deslocarmos de nossos conceitos fechados, de nossas ideias prontas, que sufocam e paralisam. E não importa que percamos um pouco o chão que nos protege, que não consigamos ver com nitidez completa aquilo que queremos entender, descrever, analisar – é preciso apostar na fertilidade da vida, mesmo quando tudo à nossa volta parece negar suas possibilidades.

Esse é, para mim, o nosso mais significativo gesto de resistência, em direção aos outros e ao imponderável. E a literatura... pode ser um delicado convite para esse movimento.
  
Intervenção na mesa “Artes e Revolução”, no XV Congresso Internacional da ABRALIC, na UERJ, Rio de Janeiro, no dia 9 de agosto de 2017.



5 de agosto de 2017

A “mulher subversiva” na ditadura no Brasil e na Argentina

Aline Teixeira da Silva Lima

Universidade de Brasília

Imagem: Afarin Sajedi



O que diabos estavam as mulheres fazendo
metidas em política, tornando-se ainda por cima guerrilheiras,
numa época em que se ainda esperava delas
que ficassem circunscritas no âmbito do lar
e da vida privada? Putas comunistas.
Adriana Lisboa, Azul corvo

Sabe-se que muitas mulheres lutaram, juntamente com os homens, militando pela redemocratização dos países que adotaram o regime militar, porém, a figura feminina sofreu um apagamento na História. A razão desse apagamento tem suas raízes na cultura patriarcal, em que a “mulher correta” não deveria ultrapassar a área a ela destinada, o espaço privado, para se tornar um sujeito político, no espaço público. A sociedade, estruturada a partir de tal premissa, sempre ditou como as mulheres devem se comportar:
La mujer buena es encantadora, educada y discreta. Las mujeres buenas trabajan, pero se conforman con ganar el 77 por ciento de lo que ganan los hombres o, dependiendo de a quién preguntes, las mujeres buenas tienen hijos y se quedan en casa a criarlos sin rechistar. Las mujeres buenas son modestas, castas, sumisas. Las mujeres que no adhieren a estos cánones son las desgraciadas, las indeseables; son malas mujeres.(GAY, 2016, pp. 303-304)
Partindo dessa conjuntura, é estranho pensar em mulheres lutando contra o autoritarismo e a supressão dos direitos constitucionais, que marcaram o período de exceção, e resistindo às perseguições políticas, à prisão e à tortura por parte das Forças Armadas. Entretanto, caminhando na contramão do que dita esse sistema social em que os homens são os detentores do poder, muitas mulheres, nos anos de chumbo, contestaram sim a ordem estabelecida e romperam com “o estereótipo da mulher restrita ao espaço privado e doméstico, enquanto mãe, esposa, irmã e dona de casa, que vive em função do mundo masculino”. (RIDENTI, 1990, p. 114)     
 De acordo com Luis Miguel e Flávia Biroli, “hierarquias e desigualdades sociais são confirmadas e reproduzidas por meio de palavras e imagens que naturalizam comportamentos e pertencimentos”.(MIGUEL e BIROLI, 2011, p. 11.) Nesse sentido, a literatura, enquanto representação da ordem objetiva, espaço onde circulam tanto ideologias, como discursos, pode contribuir para manter os estereótipos femininos aqui já mencionados ou, ao contrário, desconstruí-los, ao instigar questionamentos e reflexões sobre as estruturas de dominação e os papéis impostos de maneira tão arbitrária a ambos os sexos, os quais são consolidados ao longo da história e reforçados pelos valores, aqui já explicitados, que ainda vigoram em nossa sociedade. Assim, a fim de refletir sobre como a personagem mulher militante é representada nas narrativas contemporâneas, analisar-se-á a representação dessas “mulheres subversivas” em Volto semana que vem (2015), da escritora brasileira Maria Pilla, que apresenta uma protagonista-testemunha, a qual militou durante as ditaduras militares brasileira e argentina.
Com capítulos curtos e sem obedecer a uma ordem linear, esta mulher recupera recortes de memórias sobre sua infância em Porto Alegre, a ativa juventude no curso de Jornalismo, a militância política, que a conduz ao exílio e, posteriormente, à prisão, entre outros acontecimentos. O título do livro faz referência a uma frase dita ao próprio pai ao sair em uma viagem. Todavia, ela não pôde cumprir sua palavra por conta das barbáries cometidas pelo regime militar, que a acometeram. Ela só irá reaparecer em casa mais de vinte anos após esse episódio. Rompendo com os padrões tradicionais de gênero, essa mulher, agora já madura, que foi presa e torturada, detém o poder do discurso e, por meio dos seus relatos, ela constrói uma narrativa de sua vida, em que seu ativismo político é o tema central.
A narradora adentrou esse território “proibido” às mulheres – o público, masculino e político-, ainda jovem, se engajando em organizações clandestinas, tanto no Brasil como na Argentina, manifestando, assim, seu repúdio àquele regime e resistindo ao golpe. Com apenas quatro anos de militância no Brasil, devido a uma ação da Oban (Operação Bandeirantes), a ideia do exílio surgiu. Percebe-se, portanto, que “a tomada de decisão de viajar para a França [que] foi tomada debaixo de grandes plátanos vizinhos ao cemitério da Consolação”(PILLA, 2015, p. 56), teve por motivo fugir da violência que já circundava a mesma e seus companheiros. A partir da resolução de se exilar, sua vida é perpassada por um trânsito constante: São Paulo, Chile, Argentina, Paris, Porto Alegre, entre outros.
Acompanhando o trajeto da protagonista, após o exílio, a mesma encontra-se na Argentina, a qual também sofrera um golpe militar em 1966. Dessa maneira, com o objetivo de continuar a militância, é que a protagonista teve como destino esse país. Lá, se filiou ao ERP: “Ejercito do Partido Revolucionario del Pueblo, estrutura militar do Partido Revolucionario de los Trabajadores”(PILLA, 2015, p. 15). Pelo o que já foi aqui exposto, percebe-se que a narradora não se encaixa no modelo de sexo frágil atribuído à mulher pela estrutura patriarcal. Pelo contrário, em Volto semana que vem, ela mesma afirma que não se enquadra neste estereótipo ao dizer que “indo pelos anos 60 eu já militava, e os ideais femininos da época passavam longe da minha preferência. Os bailes da Reitoria, mesmo sendo unanimidade na minha geração, não exerciam o mesmo fascínio sobre mim. Os namorados que me interessavam estavam no meio militante”(PILLA, 2015, p. 50). Outro aspecto que foge desse modelo do patriarcado é que, no recorte temporal feito por ela (1950 a 1984), a temática do amor não é abordada. Apesar de mencionar alguns namorados, ao longo da narrativa, ela não descreve ou explicita a dinâmica desses relacionamentos, ou seja, não há investimento neste assunto. Os relatos mais avançados deste recorte de memórias datam 1984, quando ela teria 38 anos, o que seria, de acordo com a concepção tradicional de família, uma idade já atrasada para o matrimônio, mas tal assunto não é sequer mencionado, fugindo, assim, do que a sociedade espera das mulheres, isto é, que sejam boas mães e esposas e que jamais ultrapassem o espaço do privado.
Na Argentina, em 1975, a narradora-personagem é presa. Ela cumpriria, entre as prisões de Olmos e de Devoto, aproximadamente dois anos de pena. Neste espaço, a ideia da fragilidade da mulher também é desconstruída. As presas políticas que ali se encontravam, e ela própria, apesar do medo que sentiam, não são descritas de maneira vitimizada, mesmo após as torturas físicas e psicológicas pelas quais passaram. Destaca-se que mesmo encarceradas, elas, como sujeitos políticos que eram, resistiam da forma que podiam, como no episódio em que descosturaram os uniformes para não os vestir, porque estavam no verão e estes eram demasiado quentes, por serem escuros e feitos de sarja de lã. E “apesar dos numerosos castigos individuais e coletivos, nos meses que se seguiram as presas de Devoto jamais vestiram uniforme algum”(PILLA, 2015, p. 10). 
Em relação ao tema da tortura, a narradora o trata de maneira comedida, afinal esse assunto gera a tensão de narrar o inenarrável. Segundo Charlotte Delbo, o trauma seria não-representável, pelo fato de não fazer parte da ordem do simbólico e da linguagem. Dessa maneira, seria um conteúdo impossível de materializar-se em formas tradicionais de narrativas (DELBO, 1990). Logo, a protagonista opta por um sistema discursivo diferenciado, recuperando sua memória da tortura por meio de um sonho. Ao acordar, ela diz: “senti uma fisgada aguda no pé e levantei o edredom, agora muito sujo, em vez da gatinha, vi meus pés manchados de sangue e estrangulados pela corda. O cheiro: inesquecível cheiro de roupa suja misturado a um vago odor de pele queimada pelos fios desencapados”(PILLA, 2015, p. 46).
Observa-se que, mais uma vez, não há vitimização de sua figura ou um tom de lamento em suas palavras, demonstrando coragem e determinação, mesmo em frente à dor de tão terrível lembrança, indicando que sua decisão de aderir à militância, buscando, portanto, a derrocada da ditadura militar, foi tomada de maneira consciente, já que compreendia os riscos os quais corria. Outro relato do texto que endossa a força desta militante mulher é quando a mãe a culpa pela morte do pai, alegando que o mesmo teria morrido de estresse por conta de seu engajamento político. De acordo com a historiadora Ana Maria Colling, “inegavelmente houve uma ruptura entre a família e as mulheres militantes, principalmente pelas condições de clandestinidade em que se desenvolvia a atividade política” (COLLING, 1997, p. 61), assim, uma tensão foi causada entre a família e os ativistas políticos, pois aquela “sente-se traída pela opção política dos filhos” (COLLING, 1997, p. 112). Contudo, ao invés de interiorizar essa culpa, ela rapidamente a refuga, dizendo: “fiquei aturdida. Não sabia como ordenar os argumentos para tirar de sua cabeça [da mãe] ideia tão bárbara. (...). Disse que o pai tinha morrido porque estava doente e que a medicina não conseguira mudar esse fato”(PILLA, 2015, p. 65). Sem sentimento de culpa, rancor ou sentimentalismo, utilizando-se da razão, ela argumenta com a mãe, fazendo-a mudar de opinião.
O livro de Maria Pilla mescla memória, história e testemunho e evidencia que a produção literária feminina pode consumar-se independentemente do tema a ser abordado, descontruindo, pois, o preceito de que as mulheres deveriam se dedicar apenas a temáticas amenas e confessionais. Além disso, Volto semana que vem revela que as mulheres, nas ditaduras na América Latina, tornavam-se militantes das organizações clandestinas de esquerda em razão de suas convicções políticas, lutando por “um mundo que fosse bem melhor” (PILLA, 2015, p. 32). Dessa forma, o que leitor encontrará nesta obra é a perspectiva da própria guerrilheira, a qual é um ser pensante, independente, dona de suas próprias vontades e que transgride o mísero espaço privado a ela destinado. Nesta narrativa, a mulher torna-se sujeito, deixando de ser apenas objeto de representação de outrem. Desse modo, a representação da “mulher subversiva” de Maria Pilla se afasta daquela em que os conceitos em relação à mulher estão ancorados às estruturas patriarcais e se aproxima do sujeito social defendido por Teresa de Lauretis, em que este deve ser “múltiplo em vez de único, e contraditório em vez de simplesmente dividido”(LAURETIS, 1994, p. 208).


Referências
COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
DELBO, Charlotte. Days and memory. Vermont: Marlboro Press, 1990.
GAY, Roxane. Mala feminista. Madrid: Capitán Swing Libros, 2016.
LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
MIGUEL, Luis Felipe e BIROLI, Flávia. “Gênero, mídia e política”. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Caleidoscópio convexo: mulheres, política e mídia. São Paulo: Editora Unesp, 2011, pp. 11-33.
PILLA, Maria. Volto semana que vem. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
RIDENTI, Marcelo Siqueira. “As mulheres na política brasileira: os anos de chumbo”. In: Tempo social. São Paulo, v.1, 1990, pp. 113-128.