Júlia Braga Neves
Humboldt-Universität zu Berlin/ King's College London
Humboldt-Universität zu Berlin/ King's College London
Imagem: Carrie Moyer |
Em seus textos sobre
historiografia, Hayden White reforça os pontos em comum entre a literatura e a
história ao alegar que os dois tipos de discurso operam sob as normas da
linguagem e da narratividade (White, 1999, p. 6). Assim como a narrativa
literária, o texto histórico depende da seleção de informações, da
interpretação de fatos e também de decisões que dizem respeito à forma, à
organização da narrativa e aos discursos que esta irá comunicar. White é
enfático em sua tese de que não há objetividade na produção de narrativas
históricas porque estas estão sempre sujeitas a reflexões autorais e a
interpretações de documentos históricos oficiais. Para White, não se trata de
negar o fato histórico em si nem de defender que as narrativas históricas sejam
ficções, mas de ressaltar que existem, de fato, elementos subjetivos na
construção de discursos históricos e que eles provêm, em grande parte, do
caráter autoral, linguístico e narrativo presentes na produção historiográfica.
É claro que a literatura
apresenta características particulares no que se trata da narratividade, pois a
ficcionalidade possibilita a criação de mundos que podem existir de acordo com
normas sociais que diferem da realidade. No entanto, a literatura, mesmo com
seu caráter ficcional, está sempre entrelaçada a discursos históricos. A
relação entre história e literatura dá-se, principalmente, na forma de romances
históricos, gênero consagrado pela teoria de Georg Lukács no clássico O Romance Histórico, publicado
originalmente em 1937. Ao traçar o desenvolvimento do gênero desde o século
XVIII, Lukács identifica o romance histórico com a emergência do estado nação
moderno no final do século XVIII e aponta a obra de Sir Walter Scott como a
maior influência do gênero, que utiliza técnicas realistas para conferir
veracidade à narrativa histórica dentro da sua forma ficcional. O teórico
húngaro atribui ao gênero a função de tratar “do despertar ficcional dos
homens” que protagonizaram a história e de “figurar de modo vivo as motivações
sociais e humanas a partir das quais os homens pensaram, sentiram e agiram de
maneira precisa, retratando como isso aconteceu na realidade histórica”
(Lukács, 2011, p. 137).
Na crítica literária
feminista, a visão de Lukács tem sido criticada principalmente a partir da
década de 1970 quando o feminismo ganhou força no cenário acadêmico. Ruth
Hoberman, por exemplo, alega que a relação que Lukács defende entre personagens
e suas conquistas históricas só pode ser realizada por “figuras que são livres
para vagar, conhecer pessoas e obter poder” (Hoberman, 1990, p. 356, tradução
minha). Como se sabe, as mulheres – assim como minorias étnicas e raciais – foram
impedidas de acessar os privilégios de mobilidade, poder, autoria e liderança
ao longo da história e tiveram de se engajar em intensas lutas para adquirirem
direitos políticos e sociais. Hoberman, então, afirma que as teorias de Lukács
sobre a ficção histórica apagam “as particularidades das experiências das
mulheres”, o que resulta na “reiteração da ausência de mulheres dentro da
história” (Ibidem, p. 357, tradução minha). O mesmo pode-se dizer sobre
minorias étnicas, raciais e sexuais.
É exatamente essa questão de
‘ausências’ e ‘lacunas’ dentro da historiografia que romances históricos
contemporâneos tentam preencher. Na literatura inglesa, as obras neo-Vitorianas
de Sarah Waters, por exemplo, visam criar um arquivo histórico ficcional para
lésbicas, tendo em vista que os registros oficiais sobre mulheres homossexuais
no século XIX na Inglaterra são escassos. Por ter sido considerada crime de
1885 até 1967 na Grã-Bretanha, a homossexualidade entre homens sempre foi um
tema de debate público que ganhou força com o julgamento de Oscar Wilde em
1895, no qual o escritor foi condenado a dois anos de prisão por sodomia e
obscenidade. Em contrapartida, a imprensa, juristas e setores conservadores da
sociedade britânica acreditavam que não seria de bom tom discutir
homossexualidade entre mulheres publicamente porque isso poderia dar ideias imorais
a elas, que acreditariam no amor e no desejo sexual sem a presença masculina e
fora dos padrões do casamento. Porém, isso não quer dizer que mulheres não eram
punidas quando flagradas em relações sexuais com outras mulheres: elas eram
comumente internadas em instituições psiquiátricas ou religiosas, onde sofriam
tratamentos abusivos e violentos que tentavam ajustar as mulheres a padrões de
feminilidade baseados na domesticidade, na maternidade e no casamento.
Na obra de Sarah Waters,
principalmente em seus três primeiros romances, a escritora propõe a criação de
arquivos históricos ficcionais que representem possíveis passados para lésbicas
na Inglaterra. Esses passados históricos são construídos a partir de pesquisas
históricas aprofundadas sobre o período Vitoriano (1837-1901) que são
retratadas a partir da reprodução crítica de técnicas e gêneros literários
vitorianos, como o realismo social, o gótico e o romance de sensação. Além de
entrelaçar a pesquisa histórica com tradições literárias, Waters acrescenta às
suas versões do século XIX temáticas contemporâneas presentes nas teorias queer
e feministas do século XX. Um exemplo é o seu primeiro romance, Tipping the Velvet (1998), que se passa
no final do século XIX. Nele, Waters utiliza a cena teatral de Londres, o
desenvolvimento urbano e as diferenças sociais entre o Leste e Oeste da cidade no
século XIX para apresentar as discussões levantadas por Judith Butler sobre a
construção de identidade de gênero e de sexualidade a partir da repetição de
normas estabelecidas por relações históricas e culturais.
O teatro em Tipping the Velvet não é apenas um
cenário no romance, mas é a sua essência, pois ele é representado pelo sucesso dos
chamados male impersonation acts,
números teatrais nos quais atrizes interpretavam homens em teatros populares na
Londres vitoriana. Essas performances teatrais eram paródias do comportamento
masculino e eram consideradas subversivas porque, além de ridicularizar os
homens, principalmente aqueles de classe social mais alta, elas também poderiam
comunicar a ideia de que as mulheres seriam capazes de ter as mesmas liberdades
que os homens. Não é à toa que a artista Vesta Tilley, em quem Waters baseou
sua protagonista Nancy Astley, sofreu diversas hostilidades públicas por ser
considerada um símbolo de autonomia e independência. Tilley foi uma das mais
famosas da cena teatral de Londres no final do século XIX com sua encenação
musical de personagens masculinos. Embora Waters não apresente nenhuma
personagem cuja significância tenha sido reconhecida pela história tradicional,
como é o caso de Tilley, muitas delas são baseadas em mulheres de extrema importância
na história cultural, social e literária inglesa. Enquanto Nancy Astley
representa o talento e independência artísticos de Tilley, a autonomia de mobilidade
e de atuação no espaço urbano, sua companheira Florence Banner, inspirada na
ativista social e enfermeira Florence Nightingale e na ativista socialista
Eleanor Marx, personifica a luta feminista da classe trabalhadora no Leste de
Londres.
Não se trata, como na teoria
de Lukács, de apresentar personagens históricos para validar a historicidade
presente no ficcional, mas de mostrar como o arquivo histórico muitas vezes
omite, exclui ou diminui a importância histórica das mulheres. Ainda há muitos
teóricos e historiadores que sustentam a ideia de que mulheres no século XIX
eram submissas, passivas e completamente devotas aos seus maridos e, embora
esse comportamento fosse de fato dominante, sabemos que ele era idealizado e
que muitas mulheres o rechaçavam. Além disso, esse modelo de feminilidade do
século XIX correspondia a um ideal das classes média e alta, cujas mulheres não
tinham a necessidade de trabalhar. As mulheres trabalhadoras, protagonizadas no
romance pela personagem de Florence Banner e suas amigas de Bethnal Green,
tinham vidas fora da esfera doméstica na rotina de dupla jornada do trabalho
mal pago e do trabalho doméstico de suas casas.
No Brasil, a literatura
produzida por mulheres também aborda as exclusões de discursos históricos e
culturais tradicionais, conforme elucidado nesse post de Paula Dutra. Um
exemplo na literatura brasileira contemporânea é o romance histórico Um Defeito de Cor (2006) de Ana Maria Gonçalves. Narrado em
primeira pessoa e em formato autobiográfico, o livro conta a história de
Kehinde, uma escrava capturada ainda criança no Reino de Daomé (atualmente
denominado Benim) e levada para o Brasil com sua irmã gêmea e com sua avó por
traficantes de escravos. A trajetória de Kehinde passa pela Bahia, pelo
Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo e Benim e o seu relato, escrito em
retrospectiva quando a personagem já é idosa, abrange a violência do Brasil colonial
e também a resistência dos escravos contra a exploração e a violência
escravista. Ao conseguir comprar sua liberdade, Kehinde passa a viver com um
português branco com quem tem um filho, o qual é vendido ilegalmente como
escravo pelo próprio pai.
No prefácio do livro,
Gonçalves antecipa as origens do romance que, segundo ela, se deu por uma
‘serendipidade’, palavra usada para descrever uma “situação em que descobrimos
ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra” (Gonçalves,
2016, p.9). Em pesquisa sobre a Revolta dos Malês em Salvador, Gonçalves
mudou-se para a Bahia e passou um tempo na Ilha de Itaparica, onde, por acaso,
encontrou um manuscrito anônimo supostamente produzido no século XIX que
relatava a trajetória de Kehinde em forma autobiográfica. As páginas perdidas e
ilegíveis do manuscrito foram preenchidas por Gonçalves, que complementou os
escritos com a sua própria ficção e o seu conhecimento histórico adquirido
durante a pesquisa sobre a Revolta dos Malês. Sendo assim, é possível afirmar
que existe nesse romance um diálogo entre história e literatura no sentido em
que o manuscrito é uma mistura de memória histórica e ficção, representada pela
escrita de Gonçalves.
Não se sabe se o texto foi
escrito por uma escrava ou se foi inventado por uma autora. Segundo Gonçalves,
“[e]specula-se que [a história] pode ser apenas uma lenda, inventada pela
necessidade que os escravos tinham de acreditar em heróis, ou, no caso, em
heroínas, que apareciam para salvá-los da condição desumana em que viviam.” (Gonçalves,
2016, p. 16). Gonçalves aponta que há, de fato, precisão de datas, locais,
nomes e acontecimentos históricos no manuscrito que sugerem autenticidade
histórica no documento. No entanto, Gonçalves diz que “é bom que a dúvida
prevaleça” (Gonçalves, 2016, p. 17), pois o manuscrito, mesmo misturando o histórico
com o ficcional, relata uma história de violência, resistência e sofrimento
causados pelo tráfico de escravos.
O que chama a atenção no
livro são os detalhes sobre a organização de resistência entre os escravos e
também o sincretismo religioso e cultural das diversas comunidades africanas no
Brasil. Além disso, o romance mostra a complexidade do sistema escravocrata na
esfera mundial ao entrecruzar as histórias da escravidão no Brasil e a
independência de Portugal com as expedições colonizadoras da Inglaterra. O
romance começa em 1810, três anos depois de a Inglaterra abolir oficialmente a
escravidão em seu território nacional, ainda que ela fosse permitida em suas
colônias, onde a escravidão só fora abolida em 1833. O romance de Gonçalves
deixa claro que os interesses ingleses na abolição estavam mais ligados aos
lucros capitalistas do que a preocupações sobre direitos humanos:
[...]
fiquei sabendo que os ingleses eram contra a escravatura. Não porque fossem
bonzinhos e achassem que também éramos gente, como de fato faziam pensar nos
tratando melhor que os senhores portugueses ou brasileiros, mas porque tinham
interesse em que fôssemos libertos. [...] Foi naquela casa que fiquei sabendo
que não havia mais escravos nem em Inglaterra nem nos seus domínios, que todas
as pessoas eram livres para morar e trabalhar onde quisessem, recebendo
dinheiro. Era isso que os ingleses mais queriam, que todos tivessem dinheiro
para comprar as mercadorias produzidas nas grandes fábricas construídas em
Inglaterra. (Gonçalves, 2016, p. 220).
Ao entrelaçar ficção e
história, o romance de Gonçalves toca em questões importantes sobre a
escravidão não somente no Brasil, mas também no cenário colonial do século XIX.
Tanto o romance de Sarah Waters como o de Ana Maria Gonçalves retratam o
passado histórico em perspectiva presente, abordando o apagamento histórico
referentes, respectivamente, às mulheres lésbicas na Inglaterra e às mulheres
negras no Brasil. Nesses romances, não há uma busca de uma ‘verdade histórica’
ou a necessidade de representar ‘grandes conquistas dos homens’, mas de
ressaltar a violência e a exclusão presentes na historiografia tradicional.
Obras
citadas:
HOBERMAN, Ruth. “Multiplying
the Past: Gender and Narrative in Bryher’s ‘Gate to the Sea’”. In: Contemporary Literature, 31.3 (Outuno
1990), pp. 354-372.
LUKÁCS,
György. O Romance Histórico. Rubens
Enderle (trad.). São Paulo: Boitempo, 2011 (1937).
WATERS, Sarah. Tipping the Velvet. Londres: Virago Press, 2009
(1998).
WHITE, Hayden. Figural Realism: Studies in the Mimesis
Effect. Baltimore e Londres: John Hopkins University Press, 1999.