11 de junho de 2016

Ser um escritor ruim é um privilégio branco

Bianca Gonçalves

Imagem: Francisco Leite (Shiko)


Uma hora de voltinha numa das maiores livrarias da cidade é o bastante para se constatar que escrever mal e/ou não oferecer nada de novo para a literatura é um privilégio branco.
Volta e meia a produção literária de autoras negras é deslegitimada sob o argumento de que se trata de uma literatura ruim. Diferentemente do que ocorre com autores (brancos) ruins que publicam em grandes e médias editoras, mulheres negras sofrem interdição antes mesmo de se mostrarem como escritoras. A explicação para esse fenômeno é a combinação do racismo aliado ao machismo, receita cruel que tenta afastar as mulheres negras do papel de protagonistas (em todas as áreas) a todo custo.
Muitas vezes, autores/as brancos/as que “estão começando” carregam também o privilégio de serem lidos sob o signo da potência. É como se fulano/a não fosse “tão bom” hoje, mas naquilo que ele/a produziu há elementos potentes, que podem, um dia, transformá-lo/a num/a bom/boa escritor/a.
Lutar para que autoras negras sejam lidas sob essa perspectiva é uma estratégia válida e totalmente diferente da análise limitada do identitarismo (se pertence a uma minoria é, automaticamente, bom), usualmente utilizada por aqueles que tentam deslegitimar e deturpar o ativismo literário negro.
Nesses momentos, lembro de Carolina Maria de Jesus que, ao conquistar seu espaço de autora best-seller, queria a porra toda. Em Casa de alvenaria, livro publicado no ano seguinte ao Quarto de despejo (1960) e infelizmente legado ao esquecimento, Carolina expressava seu desejo em ser cantora, dramaturga e poeta, mas seu editor, Audálio Dantas, cerceava seus sonhos sob o argumento da “preservação da imagem” da escritora; um gesto que também escondia a impossibilidade da sociedade de enxergar mulheres negras como multiartistas. O próprio, inclusive, frente às vontades de Carolina, aconselhou-a a ser “mais humilde” (o arquétipo da preta metida existe há muito tempo!), e ela genialmente respondeu: “Que orgulho posso ter? Eu procuro só o que é humilde para fazer. Fui empregada doméstica, catava papel, moro na favela. Você não vai querer mais humildade do que isso”.
Atualmente o cenário vem mudando e cada vez mais nós estamos ocupando espaços que historicamente nos foram negados. Já estamos chegando ao ponto em que aqueles que intermedeiam o poder não conseguem mais conciliar a contradição de um país cuja metade da população é negra ter, midiática e artisticamente, uma representação homogeneamente branca.
Façamos então a porra toda ser nossa.

Esse texto foi originalmente publicado em https://biancanaoebranca.wordpress.com/

7 de junho de 2016

Um percurso entre duas Claras

Eliane Marques


Foto: Regina Dalcastagnè

Há uma música da tradição gaúcha que diz o seguinte: “eu sou do sul, é só olhar pra ver que eu sou do sul e minha terra tem um céu azul, é só olhar e ver”. Considerado o imaginário acerca da gente nascida no sul do Brasil, nem preciso dizer de que jeito e de que cor, dificilmente alguém me atribuiria tal lugar de nascimento. Além disso, pelo menos para mim, o céu (do sul) não é e nunca foi tão azul assim e nem sou proprietária de terra alguma. 
Contudo nasci no estado do Rio Grande do Sul, no município de Santana do Livramento, situado na fronteira seca com Rivera, no Uruguai, cuja transposição física (Brasil – Uruguai) exige apenas o se atravessar o chamado Parque Internacional.
A minha mãe (os termos são utilizados aqui no sentido do significante em Lacan), na condição de empregada doméstica, trabalhou tanto em “casas de família” (a expressão sempre me impressionou, ao ouvi-la eu tinha a impressão de que a “nossa casa”, ou a casa da minha avó, por exemplo, não era de “família”, apenas a casa dos outros, por que não dizer dos brancos, onde minha mãe trabalhava, assim poderia ser titulada).  A expressão “casa de família” me remetia a um título de nobreza europeia cuja aquisição eu ou outras consideradas iguais a mim jamais alcançaríamos. Anos mais tarde, quando conheci as obras de Aluísio de Azevedo, assombrou-me o horrendo pensamento de que talvez a “nossa casa” tivesse sido titulada, até nos dicionários, como “Casa de Pensão”, apesar de não ser nada disso.
Bom, a minha mãe, na condição de empregada doméstica, trabalhou em “casas de família” no Brasil e no Uruguai. O chão brasileiro ou uruguaio lhe era indiferente, como também o era falar espanhol ou português ou o chamado portunhol. Não sei se havia alguma diferença quanto à remuneração, ainda que mísera, em ambos os lados. Mas a transposição de um mundo para o outro com o esforço de apenas um pé ou uma perna, e com muito esforço dos braços, parecia pouco dificultosa.
Embora aqui ou lá se pudesse dizer “caza” ou “casa”, “cão” ou “perro”, de forma que, em geral, a diferença de língua não representasse diferença de linguagem ou diferença de humanidade, para mais ou para menos, havia algo nesse mundo dúplice ou múltiplo que se apresentava perene. Em outras palavras, para alguns sujeitos desses mundos era possível a ocorrência de um diálogo não tão verticalizado, para outros não.
Tal origem e destino “fronteiriço” se dá a conhecer, então, mais do que no modo de falar (“leitee quentee”), se dá a conhecer também como posição no mundo: (a) de um lado, a fronteira se constitui possibilidade de deslocamento, de abertura para outro, possibilidade não apenas de outra língua, mas de outro discurso, ainda que sem palavras, e (b) de outro, a fronteira se constitui possibilidade de muro, de tranca, de fechamento.
Por exemplo, apesar de receber o epíteto de “Fronteira da Paz”, ainda na década de 1990 Livramento possuía vários clubes para as pessoas brancas – Clube Livramento, para os brancos pobres; Clube Cruzeiro do Sul, para os brancos de classe média; Clube Comercial e Clube Caixeiral, para a classe alta, obviamente branca. É interessante assinalar que havia apenas (01) um clube para os negros, o Clube Farroupilha. Quer dizer, aos negros se conferia homogeneidade – todo o negro deverá ficar reduzido ao espaço territorial de sua pobreza.
Assim, embora pudéssemos atravessar a fronteira entre dois países, não podíamos transpor certas fronteiras dentro da mesma cidade, e nem eram necessários cartazes com o comando da lei – “Proibida a entrada de negros” ­–, a lei estava plenamente subjetivada como lugar do proibido.        
Certa vez participei de uma mesa-redonda em Porto Alegre sobre a mulher e o espaço literário, chamada um “Teto todo nosso”. A conversa se daria a partir do livro Um teto todo seu, de Virginia Woolf. A referida escritora, em síntese, alcança a conclusão de que se uma mulher quiser escrever ficção, precisará de dinheiro e de um teto todo seu, quer dizer, precisará de um espaço próprio e de condições materiais para se haver com ele.
Eu estava contente com a leitura desse livro, na ilusão de buscar um teto todo nosso, de com ela (a escritora inglesa) ser abrigada, quando, como quem cai de paraquedas (sabendo que cairá, mas na crença firme de que não), me deparo com a seguinte frase na página 75 da obra: “É uma das grandes vantagens de ser mulher conseguir passar por uma negra sem desejar transformá-la em uma inglesa”.
Certamente, até então, eu não estava incluída no discurso – a frase dizia que “as negras” estavam fora da categoria “mulher” (uma mulher passa por uma negra que, portanto, não é mulher e tampouco inglesa, apenas negra, inclusive sem nome ou sobrenome de família para compartilhar e ter a possibilidade de receber alguma herança e assim o ócio e talvez a escrita e talvez a escrita de poesia).    
Portanto, a palavra “nosso” (de “Um teto todo nosso”) escapa à homogeneidade da qual o possessivo pudesse dar conta (a homogeneidade é sempre apagamento) –, o teto e o dinheiro não resolvem a situação para as mulheres negras, porque existe questão anterior à possibilidade de escritura, que é a possibilidade de fala como diálogo. Quando minha mãe atravessava a fronteira para trabalhar em Rivera, não a atravessava como mulher capaz de diálogo, mas apenas como “una negra capaz de trabajo” e de trabajo duro, de quem importavam apenas os braços, apenas esses poderiam atravessar as fronteiras. Minha mãe representava a subalterna – aquela cuja voz não pode ser ouvida, aquela que não tem representação política e muito menos poesia. 
Nesse sentido, Deivison Nkosi assinala que, no Brasil, mesmo os negros fora da condição de escravizados ocupavam postos de trabalho, enquanto as elites brancas preferiam o ócio: “Temos que lembrar, em primeiro lugar, que durante o período escravista, os africanos escravizados (ou livres) e seus descendentes ocupavam todos os postos de trabalho existentes, enquanto os portugueses (e seus descendentes) preferiam a mendicância a se submeter ao trabalho duro, entendido como coisa de negro. Ocorre que eles, os brancos, nunca foram marginalizados ou estigmatizados por isso”. Assim, ainda hoje estamos no trabalho considerado pesado de construção, de limpeza, de arrumação do que ainda não é nosso, do que é o teto de outra, como a casa da patroa, cidadã de bem em sua cidadela guardada por seus cães de raça.
Portanto, mais do que teto e dinheiro (não precisamos de herança nenhuma, sempre fomos trabalhadoras), para nós (mulheres negras) impõe-se a desaprendizagem do lugar do que não fala, para impor-se a aprendizagem do lugar do que escreve, também como trabalho.
Clara Okeke e Clara dos Anjos, no que essas duas mulheres se relacionam com o que agora digo acerca da mulher negra e da escrita? A primeira, personagem criada por Chinua Achebe, refugia-se no livro A paz dura pouco; a outra, conhecida personagem instituída por Lima Barreto, está exilada em Clara dos Anjos. Uma das claras é nigeriana (igbo) e a outra, brasileira, dos subúrbios do Rio de Janeiro. Quando digo que são negras, o faço como um ato político, porque, mesmo no mundo considerado negro, as duas claras são habitantes de uma fronteira que lhes nega a condição ora de mulher ora de sujeito falante.
Tanto a uma quanto a outra não foi dado ultrapassar as fronteiras dos sem nome, permaneceram estrangeiras em seu próprio terreno. Clara Okeke pelo fato de ser filha de um homem que no passado havia fundado religião em oposição a que era dominante e Clara dos Anjos, todos sabemos a história.
A partir do meu envolvimento com as duas Claras na produção dos poemas do livro e se alguém o pano, arrisco-me a afirmar que, nós, mulheres negras, permanecemos estrangeiras, inclusive quanto ao que o senso comum entende por “ser mulher”.  Estamos do outro lado de qualquer fronteira, seja qual for o ponto de mirada ou de escuta, não sei se como destinação. E, por outro lado, no que toca à poesia, temos condições de nos apropriar e até muito bem desse au-delá, “desse lugar que não é”, a nosso favor e não contra, porque isso nos permite escrever de um posto não ordinário, não cômodo, externo à segurança dos apartamentos em condomínios fechados.
Assim, por meio desse ainda iniciante trabalho com as palavras, pretendo que falem, pelo menos um pouco, anastácia, anagilda, lela, iolanda e tantas outras mulheres negras que, como a irene do poema de Manuel Bandeira, apenas foram ditas, faladas, e sempre tiveram que pedir licença para qualquer coisa, inclusive para morrer e para chorar os seus mortos.
A escrita de poesia se apresenta para nós como um ato político: um não ao silêncio dos submetimentos, uma quebra do laço com a subalternidade e seus arautos.
A escrita de poesia se apresenta como possibilidade de fazer falar a morte, da qual estamos tão próximas desde o nascimento.
A escrita de poesia se apresenta como possibilidade de fazer falar os desaparecidos, esses mais do que mortos, porque o desaparecimento nos afasta da possibilidade de chorá-los, de lamentá-los, de colocarmos lápide nos seus túmulos e fazermos com que desde então sejam apenas um nome.  
Essa é a posição política e poética que busquei expressar até aqui. Se houve êxito ou fracasso ou nenhum dos dois já é outro tema.    


Este texto foi apresentado na III Jornada Literária de Autoria Negra, realizado na Universidade de Brasília no dia 1º de junho de 2016.