30 de maio de 2010

II Simpósio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea


A constituição da nação moderna implica a elaboração de um “consenso”, ou de uma “comunidade imaginada”, nos termos de Benedict Anderson. A construção desse consenso – que conta com a cooperação efetiva da história literária – se dá através da exclusão e do silenciamento de tudo aquilo que causa dissonância, tudo o que sinaliza a possibilidade de conflito.
Aproveitando, então, um termo do cinema, o space-off, que segundo Teresa de Lauretis é “o espaço não visível no quadro, mas que pode ser inferido daquilo que a imagem torna visível”, nossa investigação se deterá naquilo que fica do lado de fora de um determinado enquadramento crítico – que avalia, e avaliza, a literatura brasileira a partir de seu compromisso com o processo de elaboração da identidade nacional.
Tendo em vista alguns temas caros à discussão sobre a produção contemporânea, como o surgimento de novas vozes discursivas, o descentramento de identidades, os trânsitos migratórios, as questões de gênero e as relações raciais, além dos problemas da representação e do realismo, o objetivo deste encontro é discutir outras possibilidades de recortes críticos para caracterizar o panorama literário da atualidade, redimensionando, de alguma forma, os limites do nacional e a própria definição do literário.

Coordenação: Regina Dalcastagnè e Maria Isabel Edom Pires
Organização: Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea

Datas: 20 e 21 de julho de 2010
Local: Auditório Agostinho da Silva – Departamento de Teoria Literária e Literaturas – Universidade de Brasília
Inscrições: pelo e-mail simposiounb@gmail.com Vagas: 25

PROGRAMAÇÃO:

Dia 20/7 – 8h30 às 12h

GRUPO 1
Limiares comparatistas e diásporas disciplinares: estudo de paisagens identitárias na contemporaneidade
Ricardo Araujo Barberena

Descompassos no projeto de uma literatura nacional: a narrativa contemporânea e a tradição da crítica
Anderson Luís Nunes da Mata

A paisagem além do espelho: crise de representação da nação na literatura brasileira contemporânea
Igor Ximenes Graciano

Como se faz um autor?
Luciene Azevedo

Ser uma escritora: o gênero como serialidade
Virgínia Maria Vasconcelos Leal


14h30 às 17h30

GRUPO 2
O imigrante e a experiência da ruína
José Leonardo Tonus

Ficções identitárias e pertencimentos em Vianna Moog
Stefania Chiarelli

Construções identitárias em confronto: o imigrante alemão em Salim Miguel e Charles Kiefer
Maria Isabel Edom Pires

Por um percurso singular: as narrativas possíveis de um imigrante libanês
Regina Dalcastagnè

Abrindo uma trilha ao longo da margem: a periferia anônima de Goeldi e Ruffato
Laeticia Jensen Eble

18h

Reunião de trabalho


Dia 21/7 – 8h30 às 12h

GRUPO 4

Desfazer-se do legado nacional: os modos de narrar de Bernardo Carvalho
Paulo Cesar Thomaz

A voz dissonante de José Agrippino de Paula em PanAmérica: tão somente uma alegoria nacional tropicalista?
Gislene Maria Barral Lima Felipe da Silva

Fio da meada: os tempos da ditadura militar em narrativas brasileiras da década de 1990 e de 2000
Enio Alves Vieira Filho

Opressão, idealização, e violência: o pobre no cinema brasileiro contemporâneo
Paula Diniz Lins


14h30 às 18h

GRUPO 5
A mulher contemporânea no imaginário de escritoras paranaenses
Lúcia Ozana Zolin

Comedimento e silêncio dos corpos em narrativas brasileiras contemporâneas
Edma Cristina de Góis

Uma senhora nada comportada: velhice, subjetividades e resistência em A obscena senhora D.
Ludimila Moreira Menezes

Representações da mulher em Holy Avenger: RPG made in Brasil
Cíntia Schwantes

Dissonâncias na literatura hegemônica e construção de novas identidades femininas negras
Marina Farias Rebelo

Ruídos insurgentes: as cordelistas Bastinha e Salete Maria
Bruna Paiva de Lucena

11 de maio de 2010

Os corpos impensáveis de Bellatin

Flores (2009) é um daqueles tipos de livro espinhosos de engolir, doídos de ler e por estas razões também difíceis de esquecer. É um livro conceitual, dirão alguns. É um romance desfragmentado, um experimento, dirão outros. Incertezas e polêmicas a parte, o mexicano Mario Bellatin [1960- ] parece propor uma reflexão sobre os limites da ficção e o lugar do autor na narrativa. É complicado afirmar que se trata de um livro de contos ou um romance. O índice de catalogação tenta acabar o impasse classificando-o apenas como “ficção mexicana”. Uma coisa ou outra, Flores é enxuto, extremamente imagético, além de fazer uso de outros tipos de construções textuais como o que acontece no jornalismo. Em entrevistas, Bellatin sempre repete preferir o pouco uso das palavras e, na Escuela Dinamica de Escritores, onde atua como coordenador, causa estranhamento aos alunos quando sugere ser “proibido escrever”.


Não achei referências às edições fora do Brasil, mas por aqui o livro chegou pela Cosac Naify, em uma embalagem plástica, que lembra aqueles saquinhos onde frios fatiados são vendidos no supermercado. Também não existe capa, nos padrões conhecidos, e as páginas parecem simplesmente alinhavadas. Joca Reiners Terron, que assina o prefácio da tradução em português (seria prefácio mesmo?) fala em “estufa dedicada ao cultivo de raras mutações”. Talvez daí a apresentação com o plástico de proteção.


Por essas, deve-se pensar que Flores é um livro diferente desde a sua apresentação, mas essa característica não se esgota nisso. Os textos curtos trazem personagens com vários tipos de corpos e os modos como esses sujeitos são integrados à comunidade. Como acontece em outras obras do autor, até agora 18 livros, Flores privilegia personagens mutilados, deficientes físicos, castrados e vítimas de talidomida (medicamento utilizado por grávidas e que causou má formação de fetos nos anos de 1950 e 1960. Especula-se que o próprio autor, que não possui o antebraço direito, tenha sido vítima do fármaco).
O livro põe sobre a mesa as diversidades corporais e o fascínio do homem por esses corpos impensáveis, como acontecia até personagens como Frankenstein, bem lembrado por David Le Breton em A síndrome de Frankenstein. Breton afirma que o futuro do corpo é questionado hoje tanto pelas literaturas de ficção quanto pelas científicas e que a única realidade do corpo é simbólica.

Mario Bellatin “fabrica” personagens como o de Mary Shelley, em que o sujeito causa repulsa, mas ao mesmo tempo fascínio para quem olha aquele Outro estranho e único. Em Flores, um exemplo dessa síndrome aparece na história de Alba, a Poeta, e dos gêmeos Kuhn, sem braços nem pernas. “Quando apareceram os gêmeos Kuhn, teve de lutar contra as outras mães para obter a tutela. Todas as mulheres se interessaram desmedidamente por eles. Era como se tomar conta dos gêmeos fosse a demonstração definitiva do tipo de amor maternal que buscavam preencher no orfanato” (p. 37).


Não há como ler a obra de Bellatin e não traçar um pontilhado até outras obras, não só da literatura que colocam em questão a controle e o agenciamento da vida, por meio dos corpos. Artistas como Patrícia Piccinini, cujas imagens ilustram esta resenha, denuncia com silicone e fibra o uso dos corpos para experimentos médicos e farmacêuticos, como faz, de outro modo Bellatin com seu personagem cientista Olaf Zumfelde.


Nos dois casos, os corpos causam estranhamento, mas também querem dizer algo sobre a realidade científica que vivemos. O que está também posto são os problemas éticos que devem ser levados para o interior da medicina. Os lapsos terapêuticos centrados no corpo, na doença, na deformidade, e não no indivíduo propriamente.


Em Bellatin, há o agravante do próprio autor se comportar em vida como personagem. Sem o antebraço direito, Mario usa próteses variadas, que tanto podem ser uma flor metálica quanto um gancho, a depender do humor do artista naquele dia. Como em um de seus micro-textos, ele também usa próteses “artísticas” e com o artista plástico Aldo Chaparro, faz disso um negócio, produzindo próteses mais funcionais, que podem até acoplar um i-pod.


Mario Bellatin tem uma biografia esquisitíssima e que valeria um texto a parte, mas para falar de Flores me limito a dizer que o livro remete à discussão sobre a “ilusão biográfica”, efetuada por Pierre Bourdieu, ao sugerir a colocação de elementos da biografia do mexicano na obra. Isso acontece também por meio do personagem batizado com seu próprio nome. Sem falar, do personagem escritor que visita a quase totalidade de capítulos (ou contos, como preferir). Além do localizar-se em si, chama a atenção o tema pelo qual o faz – a diversidade corporal.


Mas não pensem que a diversidade involuntária é tudo. As pouco menos de 80 páginas de Flores também falam de anciões, de orgias sexuais, do papel (e do questionamento) das religiões com suas verdades e seus credos. Tudo numa mistura só, mas bem orquestrada pelo autor, pelo que podemos ver ao longo da narrativa.


Se nenhuma das considerações aqui colocadas fizerem parte dos planos do autor, proponho uma última hipótese para Bellatin – de que ele quer apenas forjar o modo como se fez literatura e como se faz na contemporaneidade. Se ideia for essa, ainda assim Mario Bellatin nos dá muito o que falar e não é pouco.


Edma Cristina de Góis, doutoranda em Literatura/UnB


Foto do escritor Mario Bellatin. Esculturas e fotografias de Patrícia Piccinini.


2 de maio de 2010

O que ainda poderia ser dito



Como alguém pode achar que uma experiência forte, como a de um relacionamento sexual-amoroso, não modifica seus participantes diretos e não afasta deles os que dele são excluídos.


Elvira Vigna, Nada a dizer


É na quebra do vínculo de confiança, aparentemente forte, que se acomoda a dor da mulher traída, narradora de Nada a dizer, de Elvira Vigna. O romance, publicado neste ano pela Companhia das Letras, traz uma história banal, sob as lentes de uma personagem feminina, que abandona sua, até então, “zona de conforto” quando descobre a traição do marido. Ela é quem narra, a partir desse episódio, a busca de uma mulher por sua própria identidade.


A narradora sem nome e o marido Paulo viveram as rupturas comportamentais e a efervescência dos anos de 1960, tiveram filhos, mudaram de casa e de cidade algumas vezes e, na percepção da mulher, construíram um outro e novo padrão de relacionamento conjugal. Mãe na adolescência, ainda solteira, tolerante com pequenas escapulidas dentro do casamento, adepta de uma concepção alternativa dos papéis de gênero na estrutura familiar, essa mulher simplesmente desmorona ao descobrir o caso extraconjugal do marido com N., vinte anos mais nova, também casada e com dois filhos. Em resumo, apesar de toda a filosofia em voga nos anos 60, incluindo a onda feminista, ela termina se comportando como qualquer mulher traída se comportaria. Com um agravante de que ela conhece N.


Nada a dizer, que titula a obra, poderia ser uma frase proferida pelo marido, em algum dos questionamentos da esposa quando o coloca na parede – bem no tom policial de quem não assume a culpa pelo ato “criminoso”. Nada a dizer também poderia ser o que a mulher supõe ser a única resposta do marido, afinal, Paulo poderia dizer alguma coisa diante das evidências? Dos emails trocados com N. e descobertos pela esposa no Outlook, das desculpas esfarrapadas para os horários e viagens?


Elvira Vigna faz o melhor retrato do que acontece nos dias de hoje, em que crises conjugais são escancaradas na internet. Depois de ficar com uma pulga atrás da orelha, ao encontrar um email suspeito de N. para o marido, ela passa a fuçar pistas do caso extraconjugal no celular de Paulo, em outros emails e até no blog de N.


A traição é uma feridinha que teima em não sarar e a todo momento a narradora a machuca sem querer, o que torna mais difícil a cicatrização. No entanto, é nesse mesmo espaço de dor, o fundo do poço, como se diz na vida fora da literatura, que ela tenta ganhar impulso e subir novamente, para, quem sabe, sair do fosso cheia de arranhões, mas inteira.


Vigna parece dar continuidade aos questionamentos dos livros anteriores, em que a ordem das coisas, dos gêneros, da composição da sociedade tal e qual conhecemos, é colocada em xeque. Como em Coisas que os homens não entendem e Deixei ele lá e vim, a autora está interessada nas identidades, que tanto podem ser voláteis quanto estão em permanente construção, como sentencia Stuart Hall. Não há, obviamente, uma troca de identidade, mas acúmulos cujo produto, quando somados, não se sabe ao certo no que dará. Talvez por isso a narradora se torce e contorce dentro da história, para não ser, de repente, reduzida à identidade de mulher traída. Lucidamente, ela percebe que não é só isso. A traição é apenas uma das cascas da cebola, a mais visível porque chegou por último, acobertando todo o resto e todo o resto é simplesmente a vida.
Como ela poderia esquecer uma vida construída ao lado de Paulo, a dedicação ao marido e aos filhos, a troca de afeto e de intelecto? A narradora definitivamente não é apenas a mulher traída, muito embora, em um estado de choque, a visão turva não deixe ver as coisas como elas são. “Não existente, me multiplicava por mil, milhões. Em cada uma dessas histórias em que eu estava, estava também um pedaço da minha dor – e da minha acusação. Eu colava em mim, ou melhor, na minha casca vazia, essas dores e essas acusações que escutava, em eco, da cultura, dos veículos de massa. Aliás, era o contrário: eu, ao colar meu eu em cada uma dessas dores e acusações, buscava, em pequenos detalhes que apareciam na tela, um eu que escapasse, que renascesse desse nada genérico em que eu morria” (p. 107)


As dores se acumulam quando ela percebe que nem mesmo seu espírito libertário, cultivado desde a adolescência, a fizera ter um comportamento diferente das outras mulheres diante da traição. O que é alternativo é o modo como ela disseca o acontecimento e a dor, resignificando inclusive posturas cristalizadas há décadas. “Eu continuava estereotipada. Mas mudava o acervo de meus modelos pré-fabricados” (p. 118).


Ao tratar das instabilidades identitárias, a autora termina por apresentar também um panorama dos relacionamentos na contemporaneidade, mostrando que não há qualidades fixas nos sujeitos. Mais do que acontecimentos, a narrativa traz as reflexões da narradora, numa tentativa de refazer o passado para entendê-lo, ou na melhor das hipóteses, para resignar-se. É essa mulher quem conta como se deu o envolvimento de Paulo com N., com descrições precisas de idas rápidas ao motel e encontros sorrateiros. Em determinada passagem, ela justifica que foi Paulo quem lhe contou, mas é possível pensar que parte do que é narrado seria a interpretação do relato do marido e o restante o seu “achismo” sobre o que aconteceu. Nesse ponto, de pensar como as coisas aconteceram, a narradora pode pintar os eventos com as suas cores; o sexo sem graça dos amantes, a descrição das roupas e da maquiagem de N., “inacreditáveis e justos vestidos estampados que fazem ficar parecendo uma arara tropical” (p. 147).


Se alguém ainda duvida da vida como literatura, Nada a dizer está aí mostrando que, infinitamente melhor do que livros e palestras de auto-ajuda com exemplos genéricos, a boa literatura traz personagens vivíssimos. Talvez tão vivos que não soaria estranho ouvir alguém perguntar se tudo exposto é realmente ficção ou autobiografia da autora. Pode-se até entender, mesmo sem concordar. O pacto de realismo da narradora com o leitor, que sofre junto a dor da traição, é sinal de que a literatura contemporânea não consegue se omitir das questões do sujeito do tempo presente, e nisso está um dos seus maiores trunfos.

Edma Cristina de Góis, doutoranda em Literatura, UnB.