28 de julho de 2017

É agora como sempre

Nívia Maria Santos Silva

Universidade Federal da Bahia

Imgem: Robert Rauschenberg, Untitled, Tate Modern

Recentemente, a editora Companhia das letras lançou uma antologia de poetas brasileiros contemporâneos, É agora como nunca (2017), organizada pela cantora e compositora Adriana Calcanhoto. O título é um verso tirado de um dos poemas finais da antologia, “Ponteiro”, de Laura Liuzzi, publicado originalmente no livro Desalinho (2014), lançado pela saudosa Cosac Naify. Em seu subtítulo a antologia se promete: “antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira”. A orelha, por sua vez, fala dos riscos que corre Calcanhoto “Ao apresentar esta reunião de 41 poetas brasileiros contemporâneos, instantâneos, novos, novíssimos”. O compromisso que ela assume não é a de uma especialista, mas a de uma “leitora especial – diletante e delicada”.
Não vou entrar na linha dos que rechaçam o livro por ter sido escrito por uma cantora e compositora, penso que ela já pagou pedágios suficientes para tanto, nem vou fazer a vez dos ressentidos por não terem os seus escolhidos na reunião de poetas aí elencados. Antologiar é selecionar, é escolher e, consequentemente, excluir. Daí a incompletude ser essência e não circunstância das antologias. Diante disso, o subtítulo se mostra redundante uma vez que toda antologia é uma reunião que parte de escolhas, muitas vezes, carregadas de subjetividade. Por isso, me incomoda a quantidade de ressalvas presentes na capa, na orelha, na apresentação. É possível fazer uma antologia que seja completa?
Fica evidente que a insistência com que pede desculpas é uma estratégia para atenuar possíveis críticas e diminuir o impacto das ausências. A impressão que passa é a de que não se deve exigir tanto do livro, afinal ele não passa de um “livro de férias” escrito por uma cantora. Será? Esse discurso da modéstia, e até de certo desinteresse, é o que me preocupa na antologia, pois, por mais que queira passar o ar de ser um livro “pessoal, intransferível, autoral”, ele é um registro desse “instantâneo da poesia brasileira agora” e, enquanto registro, sublinha nomes e demarca geografias.
A despretensão que acompanha É agora como nunca não condiz com a força comercial da editora Companhia das Letras que o publica, lança e distribui nacionalmente, nem com a visibilidade que a artista Adriana Calcanhoto dá à obra, pois ela, não só por causa de produções como o excelente Fábrica de poemas (1994), tem um nome conhecido e reconhecido como ponto de intersecção entre o campo da música e o campo literário, dos quais é uma habitué e uma das responsáveis, na contemporaneidade, por misturar esse caldeirão da letra de música e do poema num diálogo e, por vezes, numa fusão tão homogênea que não se sabe mais o que é o ferro ou o que é o carbono.
O que quero dizer é que o fato de Calcanhoto não ser uma “especialista” não conta como algo negativo, e sim aumenta ainda mais o apelo comercial da obra e seu alcance, já que amplia o público alvo para além dos muros da academia. É quase certo que nenhum dos poetas eleitos por ela vendeu tantos livros quanto ela vendeu CDs ou até mesmo seu divertido livro de crônicas, Saga lusa (2008), que escreveu em Portugal. O discurso da despretensão não consegue apagar também o fato de que a Companhia das letras atua como uma instância reguladora do meio, nem a realidade de que as antologias, historicamente, são importantes não só por afirmar e divulgar a existência desses ou daqueles poetas, mas, sobretudo, por atribuir-lhes uma chancela.
Não podemos nos esquecer, por exemplo, da importância de antologias como 26 poetas hoje (1976) e Esses poetas (2001), da atuante professora e crítica literária Heloísa Buarque de Holanda, nas quais se publicaram nomes como Francisco Alvim, Antonio Carlos de Brito (Cacaso), Capinan, Waly Salomão, Ana Cristina Cesar, Antonio Cícero, Carlito Azevedo, Ricardo Aleixo. A editora Objetiva, que hoje faz parte do grupo Companhia das letras, também lançou antologias que viraram referência, como Os cem melhores contos brasileiros do século e Os cem melhores poemas brasileiros do século, ambas organizadas pelo professor, crítico e poeta Ítalo Moriconi e lançadas em 2001. Além de selecionar e divulgar, ainda traziam na capa um juízo de valor, aqueles ali elencados eram os melhores do século, no caso, do século xx.
Curioso que, no mesmo ano, a editora Geração editorial também se aventurou a fazer uma antologia que reunisse os melhores do século passado, mas em vez de apostar nos poemas, intitulou a obra de Os cem melhores poetas brasileiros do século (2001), organizada pelo jornalista e poeta José Nêumanne Pinto. Como toda antologia é relativa, há poetas considerados melhores do século por Nêumanne que não têm poemas na antologia de Moriconi, como Bruno Tolentino, Ildásio Tavares e Orides Fontela, assim como há autores de poemas considerados melhores do século por Moriconi que não figuram na lista de Nêumanne, como Torquato Neto, Gilka Machado e Zila Mamede.
Em comparação com essas e outras antologias, como a coleção Roteiro da poesia brasileira, da editora Global, uma das coisas que fazem falta em É agora como nunca é a existência de um ensaio introdutório ou pelo menos de um texto de apresentação de maior fôlego. Talvez essa falta apenas seja coerente com a proposta de ser apenas a listagem de uma leitora “não acadêmica ou crítica”. Cabe destaque ainda a notável semelhança entre as capas de É agora como nunca e Os cem melhores poemas brasileiros do século. Além de ambas terem passado a ser do mesmo grupo editorial, a disposição dos nomes dos autores eleitos na capa e as cores em amarelo e azul fazem com que o despretensioso “livro de férias” lançado em 2016 remeta à pretensiosa seleção dos melhores lançada em 2001, dando um ar de continuidade ou, pelo menos, de sequência. Só que, enquanto a antologia de Moriconi diz abertamente para o que veio, a de Calcanhoto, por trás do mea culpa, parece querer disfarçar a sua importância e abrangência.
O que quero acentuar é que, por mais que haja critérios técnicos ou não ou que o antologista seja ou não um “especialista”, toda antologia, uma vez publicada, ainda mais se for por uma editora de peso, não é apenas uma “lista de preferidos”, é a formação de uma referência e, nesse caso particular, uma referência para se ler a literatura contemporânea, o que tem como efeito direto ou indireto a hierarquização e a valoração daqueles que passam a existir por meio dela e a ressoar, em alguma medida, na formação de novos poetas. Antologias publicadas viram testemunhos de época. A tarefa do antologista é criar uma espécie de catálogo, guia, inventário, por mais que pareça querer, Calcanhoto não pode fugir dessa responsabilidade.
Ao falar de responsabilidades, não posso deixar de realçar que positivamente a antologia colocou muitas poetas em cena. Apesar do placar continuar pendendo para eles, 18 mulheres e 23 homens, isso é de se comemorar. Não digo com isso que o gênero seja ou deva ser critério de escolha, mas que ele, assim como a etnia, a orientação sexual e a naturalidade, não deve ser critério de exclusão.
Não posso deixar de destacar também o quanto é sintomático na antologia de Calcanhoto a quantidade de poetas vinculados a uma só editora, 7Letras, e como não me causa estranhamento que a maioria dos escolhidos seja de um mesmo local do Brasil, Rio de Janeiro. Isso mostra a força da editora carioca que começou suas atividades em 1990, chegou a ter uma influente revista literária, Inimigo Rumor (1997-2007), e vem acumulando reconhecimento de público e crítica, apresentando um catálogo dedicado à literatura, sobretudo aos livros de poesia, através dos quais investe em novos poetas.
Essa força do mercado pode explicar um dos porquês de o Rio de Janeiro ter feito tanto volume na antologia. Entretanto, perceber que a centralização em uma localidade do Sudeste não se atenuou é um tanto desapontador, ainda mais num momento histórico em que a poesia se expandiu para além do livro e a internet diminuiu distâncias, podendo ser uma ferramenta para uma seleção mais ampla daquilo que se propõe nacional, principalmente algo organizado por alguém que é apresentada como uma leitora que “acompanha com entusiasmo a produção poética brasileira de hoje”.
Não é como a antologia da FUNARTE, 41 poetas do Rio (1998), sob a organização de Moacyr Félix, que tinha por objetivo se circunscrever a poetas que residiam no Rio de Janeiro. É agora como nunca se apresenta como um recorte da poesia contemporânea brasileira. Talvez o problema esteja novamente no subtítulo da referida antologia, pois, se é óbvia ao se confessar incompleta, é inconsequente ao se presumir nacional.
Por isso me preocupa a sua suposta despretensão. Vendida como “livro de férias”, a antologia é um mapeamento da poesia contemporânea mais recente que vai para as salas de escolas e universidades, foi inclusive lançada em Portugal pela editora Cotovia, uma das parceiras da 7Letras na Inimigo Rumor. Não por ser algo particular, mas por ser algo que se tornou público, mesmo que o livro não queira entrar na seara do debate acadêmico, ele instiga diversas discussões que vão além do irrefletido “por que esse e não aquele poeta?” ou do preguiçoso julgamento “isso não é poesia!”.    
Algumas coisas continuam agora como sempre. Cabe a nós leitores problematizá-las. Este texto existe não para questionar a importância da antologia É agora como nunca, mas por perceber nela mais importância do que ela mesma se dispõe a oferecer. Afinal de contas, toda antologia é uma convocação à leitura.

REFERÊNCIAS

CALCANHOTO, Adriana. É agora como nunca: antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

HOLANDA, Heloísa Buarque. 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Editora Labor, 1976.

_____________. Esses poetas: uma antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2001.  

MORICONI, Ítalo. Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

_____________. Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Nêumanne Pinto, José. Os cem melhores contos brasileiros do século. São Paulo: Geração editorial, 2001. 

21 de julho de 2017

Empoderamento de Professores e Professoras

Camila Alexandrini (PUCRS)
Tiago Martins de Morais (UFRGS)

Imagem: Marina Ancona


Ser professores tem sido nossa maior aventura. E há quem considere os aventureiros algum tipo inconsequente, que, sem elaborar o trajeto da viagem, sai em busca do nada. É exatamente na contramão deste discurso que instauramos nosso devir-ser. Somos professores jovens, porque nos compreendemos sempre aprendendo, e há aqueles que sabem muito mais do que nós. E aqui a condição básica do devir-docente: considerar o percurso um acontecimento - acontecimento esse que é ruptura.

Neste percurso que se constitui por meio de experiências vividas, trocas de saberes, incômodo contínuo, pesquisa rizomática, ser professor tem sido uma aventura nômade, onde o deslocamento é provocado pelo desejo e pelos agenciamentos de seu fazer. Por estarmos juntos, convidamos outros professores-aventureiros a continuar - porque esse não deve ser um investimento solitário.

Juntos e empoderados deveriam estar todos os professores. E é claro que não estamos cegos à realidade educacional brasileira, sentimos seus efeitos e convivemos com as suas amarras. Estamos aqui, porém, pensativos sobre um dos sentimentos que percorre nossos dias: a insegurança. Tantas vezes fruto de um sistema educacional  - que desvaloriza o fazer docente, que desprestigia a sua rotina diária, que desencoraja a inovação, a criatividade e a vivacidade da utopia de um saber sempre compartilhado - a insegurança transforma o corpo (do) docente em um corpo que reproduz velhos hábitos, velhas didáticas, velhas formas de se pensar o espaço de ensino e aprendizagem. A insegurança resulta na impossibilidade do professor se ver como autor e criador desse(s) espaço(s). Quando inseguros, somos levados, muitas vezes, a duvidar de nossa capacidade profissional e acadêmica de decidir o que consideramos melhor a estudantes com quem construímos o saber.

Tanto em instituições privadas, quanto em instituições públicas de ensino, as instituições de poder e saber provocam seus abalos. Sob diversas camadas de autoridade, professores chamados de subversivos poderão ser silenciados. Professor é, no entanto, máquina de guerra, avessa à compreensão que o Estado faz do universo social. Para ser professor é preciso que se encontre o ritornelo de todas essas camadas para dali sair e se tornar outro. Professor age neste território sem dono, sem hierarquia, sem propriedade. Em outras palavras, se considerarmos o conhecimento a maior pulsão à transformação de nossa sociedade e de nossas relações sociais e afetivas, professores serão sempre a subversão deste jogo.

Há cerca de um ano e meio, estamos atuando na formação de professores e temos encontrado sujeitos curiosos com a prática que eles mesmo constituem. Parecem duvidar do que sabem, do que podem fazer, da potência de sua prática. Ouvem-se pouco, compartilham saberes que não são os deles, subjugam-se diante da realidade das escolas, das salas de aula, do Estado. A curiosidade com que se olham não se trata da curiosidade epistemológica da qual nos fala Paulo Freire. Trata-se da curiosidade estranha de não se reconhecerem como linha de fuga ao que aprisiona suas práticas.

Essa fraqueza de empoderamento passa por diversas questões: (1) de ordem subjetiva - quando jovens, pensamos ser a ausência de larga experiência o que nos faz tão impotentes diante do complexo território que é o do ensino; quando experientes, desacreditamos do que anos de vivência nos ensinaram; (2) de ordem do político - ensinar é tarefa política, cambaleiam entre empregos mal remunerados e instituições de ensino conservadoras os professores que compreendem o ensino como tal; (3) de ordem institucional - o sistema educacional de ensino no Brasil, com poucas exceções, vê o professor como o último membro da hierarquia institucional, suas escolhas e decisões continuam atreladas ao topo desta organização. (4) de ordem social - que lugar ocupa o professor no território da sociedade? Quando não atrelados às demandas do Estado, da própria escola, de instituições privadas, da família brasileira, professores podem se sentir apenas os responsáveis pelo cumprimento de tarefas distantes da realidade de seus alunos, da vida que almejam construir em comunidade, das relações humanas fundamentadas naquele espaço de vida que, afinal de contas, é a sala de aula.

Em outra via, no papel de professores, dentro de instituições, muito ouvimos de nossos colegas um discurso potente, cheio de sonhos e utopias sobre o papel do ensino. No entanto, ao mesmo tempo em que potentes, esses sonhos eram ditos em voz baixa, cheios de medo e obliterados pela resignação das imposições institucionais, da pressa, da burocracia, do acúmulo de trabalho e da sombria meta de “vencer” quantidades excessivas de conteúdo. No papel de formadores, em cursos e palestras, quando puxamos a discussão sobre o que é afinal ser professor/a - sabedores de que a visão que temos sobre nossa identidade docente determina nossas práticas - recebemos palavras-ponte, palavras-sonho, mas apenas palavras. Apenas palavras, pois na prática vemos um aprisionamento na falsa segurança das tradições, o medo do voo, o receio do desvio.

Daí, pois, entendemos que um dos principais objetivos da formação de professores é o empoderamento. É a prática de estimular que as palavras-potência ditas em tom baixo se tornem gritos e consciência ética da impossibilidade de continuarmos a praticar uma educação que não vincula conhecimento e vida, que não estimula à criação, que não olha a diversidade, que não foge das práticas homogeneizadoras.

A prática da formação de professores precisa tocar na ferida desconfortável de que temos treinado nossos estudantes, seja na escola seja no ensino superior, para passar em provas, para memorizar palavras e fórmulas, para se sobrecarregar de conteúdos e ter pouco espaço para pensar e para criar. Com isso, não queremos, é claro, manter o eixo apenas nos problemas ou mergulhar tanto no passado a ponto de nos soterrar de um conhecimento histórico e erudito que nos impeça de pensar a partir do momento presente com a urgência da revolução necessária. No entanto, naquilo que se refere ao ensino, temos percebido como olhar para o passado nos faz entender (a partir da lógica do susto) que práticas estão se repetindo há tempo demais.

No contexto de trabalho pedagógico dos jesuítas - a partir de 1547 -, encontramos ações comuns entre muitos profissionais hoje. O professor repete o livro, estimula que o estudante assimile palavras mortas e as copie para uma folha em branco. A qualidade da cópia do estudante - prova de sua boa memória - é a garantia do aprendizado.  

Ainda hoje, em nós docentes, habita esse professor-explicador e repetidor que igualmente ensina aos estudantes que sejam repetidores. E não é que façamos por mal, muito pelo contrário, assimilamos que melhores somos quanto melhores são nossas explicações, quanto mais conteúdo e informações conseguirmos “transmitir” durante um semestre ou ano letivo. Nos esforçamos imensamente, às vezes ao ponto da sobrecarga emocional, para oferecer aquilo que achamos ser o nosso melhor, sem nos darmos conta - por não habitar um sistema que estimule o contrário - de que emancipar e dar autonomia é caminhar por outras vias. Subjetivados por um modus operandi que nos cerceia a subversão, ensinamos de uma maneira homogeneizadora ignorando que aprender é uma prática individual e, portanto, singular. Cada um aprende de formas diversas e a manifestação dessa diversidade de formas de acessar um conhecimento é o que enriquece o ambiente de aprendizado. No entanto, as formas sacralizadas prendem os docentes a um padrão de comportamento que estimula nada além de sua própria passividade, de sua incapacidade de ser autor da própria aula. Mecanizam-se e mecanizam as gerações vindouras.

A nós, professores e professoras, cabe não esquecer, também fomos desestimulados à criação quando, por uma média de 14 anos, estivemos submetidos ao ensino tradicional. Fomos alunos e alunas, filhos e filhas de escolas-prisão. Antes de adentrarmos as licenciaturas, assimilamos uma imagem retrógrada do que é a docência. O quadro insuficiente da formação de professores das universidades quase nada resolve para tirar de nosso organismo uma educação-tradição, uma educação opressiva. Quando assumimos nossos postos, as salas de aula, tanto as instituições quanto muitos de nossos colegas nos estimulam na direção do passado.

Muito embora, a maior parte dos grandes pensadores da educação tenha afirmado que mais aprendemos quanto mais agimos, que mais uma prática pedagógica faz sentido quanto mais tiver vínculo com a realidade do estudante, quanto mais for cheia de vida e de potência, muito embora um arsenal maravilhoso de pensamento sobre o ensinar-aprender, predominam figuras de autoridade nas direções, nas coordenações e até mesmo entre os professores que, vítimas de um autoritarismo sistêmico, estão sempre prontos a dizer àqueles que saem da rota que um passo para longe das tradições não é uma aula, não é educação. A força do conservadorismo é tão forte que apaga qualquer incêndio de ousadia e criatividade de professores dispostos a ir além.

O quadro é talvez digno de uma tragédia kafkiana. Temos teorias pedagógicas pulsantes que nos encaminham a uma outra forma de agir-docente, temos parâmetros curriculares e leis que nos estimulam a sair do marasmo do conteudismo empilhador, dos conceitos vazios, dos quadros cheios, temos Paulo Freire, temos LDB, temos PCN’s, temos BNCC, temos autores nos recordando do papel social do Ensino Superior, da importância da interdisciplinaridade e, ainda assim, tudo isso não basta para impedir que continuemos a caminhar para trás.  

Sejamos nós, quando no papel de formadores de professores, a estimular o acesso a esse arsenal de guerra contra a tradição, a lembrar que ensinamos para a emancipação e para a autonomia, para a ruptura com modelos que têm como premissa a ausência de liberdade e todas as perigosas consequências de tal ausência.

Sejamos nós, quando nesse papel de formadores, a insistir que as instituições de ensino sejam locus constante de pensamento conjunto - evitando a prática individualista - sobre o ensino. Seja o desafio de formar professores prática de relembrar a consciência ética de que cada uma de nossas ações docentes deve ser pensada para estimular a curiosidade, a criação, o desvio, e não a repetição, a subserviência e a impossibilidade do devir-ser.

1 de julho de 2017

Literatura indígena: quando as vozes da origem falam [e escrevem]

Luana Pagung
Universidade Federal de Rondônia

Imagem: Devair Fiorotti



A cultura indígena pode ser vista como parte essencial da formação da cultura brasileira, todavia, sua inestimável contribuição, em especial nas manifestações da nossa literatura, é pouco conhecida, difundida e valorizada. Falar sobre povos indígenas ainda é adentrar em um espaço marginalizado. Abordar sua literatura é, nesse sentido, se equilibrar ainda mais à margem, considerando a invisibilidade que esta produção sofreu e ainda sofre. Os povos nativos foram expostos a um longo e progressivo período de apagamento de sua memória cultural desde os primeiros encontros, que, com o início do ciclo colonial, se aprofundou na imagem ambígua de idealização ou de demonização dos povos ameríndios. Com esse movimento, toda sua elaboração narrativa também foi silenciada. Esse histórico reverbera ainda hoje nos preconceitos e estereótipos estabelecidos em relação a esse grupo e suas manifestações literárias.
A diversidade de povos indígenas no Brasil, bem como as suas particularidades culturais são grandiosas. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA)[1], há aproximadamente 253 povos indígenas no Brasil, dos quais 45 também vivem do outro lado da fronteira, em países limítrofes. Estima-se que existem hoje cerca de 150 línguas indígenas em território brasileiro, classificadas em dois grandes troncos, o Tupi e o Macro-Jê, que se subdividem em diversas famílias linguísticas. Entretanto, somente a partir da Constituição da República Federativa de 1988, ficou reconhecida, oficialmente, a existência de línguas indígenas no Brasil. Desde então, com esse reconhecimento e tendo seus direitos assegurados em outras medidas legais, os povos originários passaram a ter a possibilidade de desenvolver um processo de ensino-aprendizagem diferenciado e, consequentemente, a criação e o aprimoramento de suas práticas de escrita e de produção literária, tanto em suas línguas de origem, quanto em português.
É relevante salientar que a Literatura Indígena no Brasil mostra-se como um movimento literário contemporâneo enquanto entrada no universo da letra e do mundo impresso, porém, a vocação enunciativa dos povos indígenas sempre existiu através da oralidade. Antes do contato com povos não-indígenas, as populações ameríndias brasileiras eram ágrafas (sendo que ausência de tradição escrita não necessariamente significa ausência de tradição gráfica, existe uma picturalidade diversa muito viva entre a maioria dos povos) e sua expressão da arte narrativa sobreviveu por meio da tradição oral, repousando unicamente na memória do contador/narrador. Nas sociedades indígenas cabe aos mais velhos e sábios da etnia essa função. São eles que repassam esse conhecimento através da fala, do contar das estórias tradicionais.
O registro impresso das narrativas de tradição oral iniciou-se com o trabalho de diversos pesquisadores, em particular antropólogos, etnólogos e escritores folcloristas. Desse percurso, surgiram coletâneas de mitos e contos populares, muitas delas sendo estabelecidas como Folclore no imaginário brasileiro. Contudo, foi apenas em um processo recente de apropriação dessa escrita, que os povos indígenas passaram a figurar como sujeitos da literatura e não mais apenas como seu objeto, textos de autoria indígena passaram a evidenciar-se nesse cenário.
Os escritores e escritoras indígenas escrevem sobre os mais variados assuntos que perpassam sua cultura, sua realidade e suas crenças. Dão vida a textos tanto em prosa quanto em verso, transitando entre gêneros literários multímodos. Seus livros são compostos de histórias de antigamente (narrativas tradicionais compartilhadas na autoria coletiva de suas etnias) e da atualidade (narrativas de autoria individual, que repousam tanto na ficção, quanto na escrita de resistência, atravessadas pelas lutas e causas indígenas). Constantemente, são permeados por criatividade verbal e elaboração da composição narrativa. Uma escrita que é ligada ao seu local de pertencimento, assim sendo, faz parte do locus que é a Literatura Brasileira.
Esse reconhecimento e emancipação dos povos indígenas no que tange às suas próprias manifestações narrativas têm sido fundamental para que, nas três últimas décadas, tenha ocorrido uma mudança de perspectiva sobre esse objeto: se antes as manifestações literárias indígenas apresentavam-se muito mais como objeto de estudos antropológicos, cada vez mais a matéria estética dessas narrativas têm adentrado na área das Letras e dos Estudos Literários.
Dessa maneira, compreende-se a importância da valorização e fortalecimento das narrativas indígenas, que refletem sua cosmovisão e apresentam-se como um veículo de renovação da identidade étnica. Para nós, leitores não-indígenas, abordá-las é ter contato com um mundo performático criativo e elaborado – linguístico, estético e historicamente – que nos possibilita entender e acompanhar a inserção dessa cultura no mundo atual. Ademais, nos aproxima e traz a oportunidade de conhecer melhor a si através da compreensão do outro, uma reflexão para a sociedade brasileira a respeito de um patrimônio que lhe é constitutivo. Se as vozes dessa nova origem falam e escrevem, nós precisamos ouvi-las e lê-las. Como pesquisadores na universidade, precisamos cada vez mais nos debruçar sobre essas produções, cuja diversidade literária foi ainda tão pouco explorada.




[1] (ISA) - https://pib.socioambiental.org