29 de agosto de 2015

Pode ligar o chuveiro?

Allan da Rosa

Imagem: Basquiat
O padrão de poste exigido pela prefeitura agora tem que ter 1 metro e 60. Caixa de frente pra rua, com 15 centímetros de teto. Se tiver 10, não lê tua luz. Multa e corta.
Antes era até relógio grudado com fita isolante, chiclete emendando vidro, palito de fósforo escorando. Tudo de madeira, chamuscada tinha uma porção com as gravuras do curto-circuito esparramadas na taubinha. Mas sem roubalheira. Honestidade e boa vontade pro serviço do rapaz que, cortando chuva ou comendo sol, todo mês marcava o consumo do quintal. Agora, qualquer frescura o patrício não confere sua luz. 
A caixa de energia ali, no banheiro de tomar banho, que o de urinar é na outra banda do quintal. Assim, quando cai a luz é só esticar bem o braço que dá pra levantar a chave de novo na pontinha do dedo. Mete uma sandália de borracha e volta pra tirar o sabão. É, respinga. Choque? Não, ainda não. Eu não.
Aqui antes de tomar banho tem que gritar se alguém noutra casa lá embaixo tá no chuveiro. Senão é queda. Sem novela, sem jogo, sem lâmpada. Banho gelado de cano. Penumbra, silêncio e vulto. Comprou vela?

TEM ALGUÉM TOMANDO BANHO AÊ!?
Limpar o doce, tirar essa pegalança no couro.
É Valdeci entrar no metrô e todo povo empina o nariz, fareja de onde vem esse aroma pesado, vapor enjoativo que impregna o vagão. Nhaca de açúcar.
Valdeci comanda o bolero de uma banca de churros. Tem de doce de leite, de chocolate e tem de catupiry pra passar no queijo ralado. Esse estraga fácil, um tubo por dia. Também vende favos e crepes. Guloseimas na saída dos colégios pagos em euro, herdeiros lotando a barraca exigem capricho no recheio. Brasão restrito no uniforme e gula vigiada pelo motorista particular.
E ele em casa é o burguês, trabalha em horário de galeria e não madruga pra sair. Atravessa o bairro do Almeirão, embarca no metrô Jabaquara e meio-dia levanta a porta. Minhoqueiro vai pelos debaixos do metrô, vocação toupeira, depois formiga na lida com o açúcar. Doce a vida. Mas bem antes de entrar em vagão, mesmo antes de pisar no tapetinho da cama, já se levanta com as dobras do braço se grudando. No pescoço parece ter cola.
Põe mais doce de leite aí! Enche pra mim, quero escorrendo, deixa de ser miserável!
Ontem uma guriazinha tirando em francês, as colegas mangando do servente. Nem atinou se era churro ou era favo, se era pernil ou era jiló o que ela queria. Mas ordenava, postura natural. Clientela poliglota de 12 anos de idade. Churro, cherrí? Vou botar mais sim, mademoizéli. Virar de costas e no desbaratino soltar uma bolota de catarro, antes do ápice de doce de leite. Tuf! Como se baleasse uma vira-lata. Toma. Sem troco, o sorriso é de graça, maior sapiência é a humildade. Vai com Deus. Obrigado. Como vovó Esperança ensinou.
Na lida o que não falta é gente e situação. Pra Valdeci o dia inteiro de pé, joia é deixar água cair pelando no tornozelo, escaldar na bacia com capim limão e flor de laranjeira.
Esfrega, quase se lixa, mas dá sábado, dá domingo e esse açúcar não larga nas dobrinhas do braço. Humilhação grudada, raiva peguenta, até atrás do joelho fica melando, entra por baixo do avental e da calça. Como chega ali esse açúcar?
Regula torneirinha, deixa morno... cachoeira... relaxo... um travesseiro dessa espuma, uma sereia conversando em mineirês benguela, aquele que a bisa às vezes solta falando sozinha. Sereia fitando seu churro, a ponta doce em Mongaguá... madrugada e mistério, mergulhar.
Cochila, acorda engasgado. Pelo vitrô sai a nuvem de capim limão e o grito pro quintal: – Já fechei! Pode ligar aí em cima!

TÔ LIGANDO O CHUVEIRO!
Nefertiti se dedilha. Violê, violá. Ai o galãzinho gostoso... ofertou pra ele um botão de melzinho, o que a professora dá na entrada da biblioteca pra degustar com livro. Nefertiti leitora viajante, imagina luas e tochas, toras e estripulias. Sonha a garupa ansiosa, os dois afastando cipó e pisando fino pra não chutar a escuridão, não trupicar na queda enquanto adentram o terreno baldio no fim da rua da padaria. Ali a madrugada chupando a febre, mordendo o peito do pássaro.
Se afaga, afoga, se afofa. Chuááá, sabonete de canela, safadelícia.
O mel que deu é o mel que sorve. Lábio desbravando os pelos do peito do galãzinho, os braços por dentro, o bafo emplumando por trás, Nefertiti arrebitada se oferece à encoxação, virilha trepida, nervo contrai. Seu gemido é canto de ave sobre o mar. A bunda rodando na viga. Rigidez do caule. A estocada, o acolhimento. A textura da vara gravada no beiço. Corredeiras. Lambuz. Sussurra e segura seu uivo no banho, tem discrição seu vulcão. A toalha pendurada na chave defende a fechadura dos espiões. Dá um tremelique, é o céu na ponta do dedo. Sino badala as seis horas da Ave Maria! Tem uma amiga com a bundinha sentada à sua frente na escola. A penugem da nuca... Como atenção na aula? Sabe que a colega posiciona a chana na beira da cadeira e rala a fricção, flutua elétrica. No fundão da sala finta a aula de biologia... e vem o gemidin. Assanha o tecido muscular, o sistema nervoso... Pôs o brinco na colega. Tó, pra você... posso colocar? A mesma mão que agora se explora. Segurou seu inflame pra não lamber aquela pontinha de orelha. Mamilo eriçado, duro, pedrinha de lagoa. O jato descendo nas coxas, mangueira diverte. Vestido suado é pano que desembaça o espelho e o corpo atiçado volta pra água pra se ver, mirar gozoso o vale entre os peitinhos, ali enxurrada. Hummm, tua língua em meu suvaco, os bicos nas costas, coladinha, circula na minha barriga o sabonete de canela, o encontro será atrás da quadra e já é no desenho da espuma, na sanha do dedo do anel, nu anel. 
Água quente invadindo o lábio, caldosa, borbulhosa.
Espuma dissolve. Primeiro o rodo triscando nas bordas, depois o chuveirinho encaixado no rego. Galopa. Um pé pisa no outro, o dedão aperta o mindiiiiiii.. aiiii  aiaiaiai   que saboroso  ai, me pega gata hummmmm  me língua, amigo.  Umbigo ensopado   tchec tchec  Desliza nas virilhas o sabonete barulhin Hummmm  A  barrig   BLAM BLAM BLAM!  Quer sair daí, ô Nefertiti da Glória da Silva! Só você que tem pra tomar banho, madame?
Porta balança mas trinco não cede. Enxugar rápido, tá atrasando pra escola. Bisavô tem que entrar também. Quem dá banho nele hoje? Ele teimando em se limpar sozinho mas e se escorregar? Molecada toda desse quintal ainda pra banhar, dormir cheiroso os erês. Bisavô Tebas imagina os meus caldos? A correnteza quentinha? Desconfia a demora? Ali tem experiência...
Que azulejo gelado. Sair de cabelo molhado nesse sereno. Na escola há de sapecar um chameguin na musa, narina no jardim da nuca. A amiga namorando um pagodeiro nem se imagina no dedo alheio, quer é vareta grossa, aquidavi ligeiro.
Cadê toalha? Pelada pingar até o varal. Resvala na mãe, é Dona Ceci possessa berrando com o cachorro que explode latição. Balbúrdia cega. Banhando também, a mascote morde mangueira, chacoalha seus pelos espumados e encharca Dona Ceci.

ALGUÉM ME ABRE O CHUVEIRO AQUI, POR FAVOR?
Pedreiro considerado foi o bisavô, Seu Tebas de Jenê. Nenhuma casa que fez há 30 anos precisou reforma. Furava cada tijolinho dos muros e chapiscava dentro. Não tem degrau de escada feito por sua colher que tenha rachado, procure quem quiser. Dizem as noras que construção hoje, com dois meses de feitura, o cimento já lascou tudo na ponta, fiação umedeceu, é um tal de porta empenada e empoçamento, fácil. Pra voltar e cobrar conserto. Muro dura nem três anos e bambeia, trinca ou arreia. Três temporais de validade.
Ele sabia manejar o clima nos cômodos, deixar aquecido na invernia e fresquinho quando brasava o verão. Dominava lápis, alicate e peneira, até arquiteto pedia sua opinião. Alguns ainda vem e convencem a sair, empurram sua cadeira de rodas pelas praças antigas do bairro do Catalônia, ninguém mexe não... tá com o bisa, tá com o ganga. E também rodam lá pela nobreza do Parque Granola. Quarteirões inteiros onde qualquer parede caiada teve estudo e toque do bisavô. Tantos bangalôs, tantas mansões assinadas por escritório de arquitetura...
A tia Ceci era menininha ainda e ruminava o nojo de beijar sua mão na porta da escola, de pedir bença encardida. Um dia confessou, pura, tadinha. Pediu pra não acarinhar a cabeça também, sua unha de encher laje era a comédia das amiguinhas. Peão. Porqueira. Vergonha do esmalte de cimento.
Don Tebas de Jenê pesquisou sabão, campeou xampu que dissolvesse o vexame escombroso da sua filha... uma semana sem ler sobre construção. E chegou mesmo foi no sabão de coco. Mais a ponta de canivete futricando unha debaixo da água quente.
Restou esse descabelo de esfregar os dedos até sangrar. Se tivesse força... mas nem alho hoje pica mais, nem casinha de baralho sua tremura güenta montar. E esse sestro não perdeu.
Desligar pras crianças tomar banho. Única infiltração em sua viga é a querença de trabalhar, corrosão no tédio que espeta a costela.
Bonito a erezada brincando. Don Tebas escuta a inocência e filtra ali o verdadeiro da passagem. Tem hora que pouco importa quem vai lhe dar o comprimido e limpar seu fraldão.
...
Mas limpar minha bunda e minha ferida na perna eu faço sozinho!

TEM ALGUÉM SE LAVANDO AÊ?
Que esperar esse povo todo o quê! Ivair esquenta na panela e enche bacia, uma dá conta. Precisa mais? Nesse frio ficar morgando? Ensaboou, esfregou, virou cada caneca e pronto. Acostumou.
Tem vez que ninguém tá banhando mas Vó Esperança não deixa entrar, vigia pro Bira bajulado.
Sabonete puro corante, escorre o azul. A promessa da pele do cartaz. Ivair contou moedas e levou a promoção, comprou cinco sabonetes e ganhou a escova dos dentes dos craques. No ralo, na embalagem manchada, esfarela-se o peito da atriz chamariz. Não é o mesmo que devotava à mãe de tardinha quando a reconhecia no portão da creche e largava a clausura. Aquela alegria traçada na cara, no reencontro, nostalgia que perdeu brilho na borracha da adolescência. Berros de Dona Ceci foram caneta e sua borracha não deu conta.
Caneca no balde e sabonete de luxo na beira da janela, a embalagem puída fica na poça com seu sorriso desmanchado, cariado.
Ô diacho, não tem uma camisa limpa nessa joça!
Vai pra rua tomar um quente, no boteco um remédio, caçar assunto. Ivair sai sem camisa, os pelos enroscando no vento. Pode. Fosse a atriz da embalagem ou a mãe da creche, expostas as mamas de mamar nenê, seria até escalpelado.

TEM ALGUÉM COM CHUVEIRO LIGADO AÍ EM CIMA?
Esfrego água sanitária no pescoço. Clarear.
Girei no torcicolo pra ver o gibi na carteira da desgramenta. Fica escondendo, regulando, deixa só um téquinho pra aguar eu. Diz que o pai lê revistinha pra ela no almoço e antes de deitar. Mentirosa. Diz que ele contou estória da bailarina que dança de ponta cabeça. Branquinha. E que eu era igual o dragão do mato.
Com cândida esfrego, arranho, esfolo cotovelo e joelho. Se funcionar vou usar no cabelo também. A bucha com sementes é daqui do quintal mesmo, áspera, minha bisa plantou e colheu. Meu Deus, me ajuda! Ficar a princesa do gibi, a rainha do prézinho.
Rolaram no chão de tanto me aloprar. As três fantasmas gargalhando no pátio que se encostarem em mim vão ficar imundiça. Professora viu. Na reunião falou pra minha mãe que não tem nada com isso, negócio dela é dar aula, vão na secretaria vocês. Lá mandaram falar com a inspetora.
O menino firmou que comigo não faz par na quadrilha. Nem adianta chorar.
Ai... já tô em carne viva.
Vou chutar o nariz daquela viada! Igual minha vó Ceci me chama. Viada! Vou quebrar os dentes. Mas e se depois nenhuma ali quiser mais ser minha amiga?


AQUI TÁ GOTA A GOTA!
Bisavó, Dona Esperança reza pra comer, sem ódio, apenas saudando a natureza e os trabalhadores que encaminharam comida pra sua mesa. A bisa carrega seus 77 anos e é Aquário, mas podem ser 79 e Capricórnio. Desde Bálsamo, seu arraial de nascença, até o cartório de Água de Ferro era tanto chão que registrar ficava pro talvez. E quando seu pai arriou da sela pra tirar o documento, lá não permitiram o nome escolhido pra certidão: Vingança. O nome desejado por todos meses de barriga de mãe: Vingança. Não pode ter nome assim no documento.
O pai, seu Avelino Lubango, já tinha visto um malungo derrubar uma barona em poça de sangue só com arrepio de palavra benguela, só no golpe de saliva. Força de oração. Ele arrenegou a censura do escrevente mas teve que bailar o pensamento e calar, nem lhe deram chance pra retruco. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Com o tempo achou melhor o veto, assim não escancarava o desencape do fio, ficava feito cobra em tôco véio. E dentro de casa sempre chamou a menina de Vingança, carinhoso.
No banho às sextas-feiras, Dona Esperança recordava do pai. No fim da lavação, ela deixava só pingando o nome na cabeça, uma a uma cada bolinha d´agua, cada gota era uma voz chamando Vingança no detalhe na orelha, uma lembrança pingando no nariz, um cristal da voz do seu Avelino emaranhando no cabelo, outro fio d´agua na nuca. Dona Vingança guardava sua caminhada e limpava o cultivo. Numa gota cabe o mar.
Por fim, escorrendo no vale, um pingo entre os seios. No peito mas não no coração.
Vó Esperançá! A senhora já fechou a água? A Tia Ceci tá lá embaixo querendo lavar as crianças...
Pode banhar sim, menina. Usa o sabão que eu fiz.
Sabão caseiro. Tem soda cáustica, óleo, pinho e cinzas da criação que morreu, cadela cremada em segredo. Ofertou a cuia com moedas e uma vela na beira do rio. Não vai mais ter bicho, é muita agonia quando se fina um.

AMACI
Ubirajara escovou com juá os dentes das palavras pesadas. Banha com as folhas de seu pai Mutalambô debaixo da mangueira. Abelhas não lhe picam.
Em casa, é tempo de passos mudos. Canseira das brigas, dos estilhaços vazando dos lábios. Fala menos agora, quase nada, as palavras arrematam os gestos e não mais o inverso. Foi muita confusão e é tempo de calar, sem navalhar com a sua opinião pouco pedida. Tanta crise já veio da sua lâmina sincera. Gongo, o Bira. Buzina, o Bira. Calma, Ubirajara... vá pra casa, tome um banho. Mas era também na moradia a nervosia. E a reverência do silêncio agora rege, broca a febre de conseguir se calar, evitar brotar treta. Conceber o som, calado. De presente a ausência quando seu metro e noventa paira no centro da sala. Ser invisível. Sem rumores e sem os berros da mãe, sem cadeado na goela, apenas a nobreza que um dia irá prevalecer. As gentilezas e os desacordos agora só nas pálpebras ou encafuados quietinhos no bolso da alma.
Mutalambô lhe regia proceder e gesto. Prosperidade. Catendê oferecia oriente.
Deixa vidrarem na novela, ajoelharem pra dízimo, que continuem se estapeando pelos bilhões do futebol, esgoelando fofocas conjugais e se deslumbrando com cirurgias plásticas dos astros... Quer esquecer, concentrar no aroma d´agua verde que desliza em cada centímetro da sua pele. O filete brilhando na pele preta, cristal recordando que ele é descendente de reis.
Chega de tormentas, chega da vó Esperança apaziguando guerras. Quanta saudade do Canjica, seu cachorro que endoidou no tumulto, quebrou corrente e babou mordida na coxa das crianças. Canjica baleado por Valdeci. Toda vizinhança no outro dia cochichando chacota. 
Parar de ser o montado na verdade. Bira passou a ser um adjetivo, gênero de unha encravada: “você tá um bira hoje”, “levar o vô no hospital é o maior bira”. Eis sua pecha, o chato. Birra, o Bira. Estorvo, o Bira. Não sabe caçar? Quer ser pastor? Mas ninguém tá vendo as meninas com essa testa puxada, caramba? Cabeça alisada obrigatória, séculos de chapinha, humilhação diária no couro. Desde a placenta o destino ditado é a pequenez espremida? Carcaça? Brincar dentro da saraivada de vergonha cotidiana? Como aceitamos ser essa caricatura quebradiça da humanidade alheia? Treta que Bira traz ou desvenda? Sincero estrangula. Calma, Bira. Vá pra casa, tome um banho.
Mapa do seu rumo a lápis nas montanhas do silêncio. Música a água tocando no chão, jóia mineral, bença de ouvir. Mental a trama. Acaricia cicatrizes: brigas da rua com os piadistas da colônia. Bira, o favorito das portas giratórias. No braço as marcas das canetas que os vigias lhe enfiaram na saída. Bira espancado num quartinho de fundo de loja, o sangue repicado na sua nota de compra que não provou nada. No lombo ainda a tatuagem coagulada dos cacetes num estacionamento, no chão estirado o suspreto de furto, com as chaves da sua própria Brasília véia no bolso. E no gogó ainda o travo, a ironia das professoras que humilhavam com sua ignorância. Nessa vida toda não dá tempo de cuspir tanto nojo da piedade desnecessária e pontiaguda. Brio, o Bira.
Desfruta o cheiro do seu suor mesclado ao sumo da pitangueira. Curva o quengo pra lavar a nuca e assim recorda o porque de aquietar: foi numa contenda de quebra-quebra com Valdeci, irmão socando irmão em papo de cor, que viu sua vó Esperança lhe baixando a cabeça. A matriarca da casa. Aí o ai. Inclinada a testa, curvada como se anunciasse uma continência. Bira compreendeu.
Esvazia balde, água se seca na quentura do corpo. Veste azul claro. Pra esteira vá seu sono limpo.
Dona Esperança ficou sentida, arrancou lenço da cabeça e penteou no espelho a clemência dos segredos do Rosário. Banho aquele dia foram as lágrimas, o ácido desgosto corroendo nas rugas. Excreção. Parando vagarosa de fungar, enlutado o peito muxibento. Tarde foi passando e úmida veio a paz possível depois da sua enchente. Banho de pranto miúdo.
E Bira ser pacato? Findou a era da deselegância, mas Dona Esperança sabia que toda aquela hombridade de convicto flecheiro não tinha a coragem de reconhecer Lavanda, sua filha que veio da concha de Pérola, moça lá da Vila Inhame. Lavanda germinada no motel Fechecler. Bira dizia que a nenê já tinha família e tio digno pra ajudar, que não se acertava com a mãe, que era do mundo, que lutava pra ter condição, que um dia daria tudo que preciso. Pagaria com juros a Pérola também.
Dona Esperança sabia de toda essa balela, acendia vela. Como aquilo minguava de revolta o coração de seu neto... Ela advogava e mandava calar o tribunal, defendia Bira do mesmo desacato que não admitia em outras casas da vila. O que era covardia, cebola estragada em outra freguesia, na sua casa era só um enrosquinho pra ternura, uma sopa gengibrina.
A sala de Dona Esperança, um útero. Ali o tempo dormia. Licença, vó, posso entrar? Ali o ninho de aprender o licença, o por favor, o obrigado, o desculpe.
Bira abre a panela que lhe sorri o cheiro. Fez quiabo, vó?
– Tá caro demais, Bira. Quiabo virou carne, sô! Mas cê falou que vinha. Pica uma saladinha pra nóis.
Lavar, fatiar, guardar os discos e álbuns de foto. Ela ensina letra de canção, pontos de trabalho. Dita o seguramento de faca, como é que se passa uma cortante pra outra pessoa pegar pelo cabo. Ensina tempos do coentro, sapiência dos fornos da vida. Ao lado da bíblia o licor de pitanga que ela faz, que Bira não toma em sua frente sem permissão, como não fuma diante do vô. Até uma cervejinha perante os seus primeiros já lhe pinica o peito. Na estante um apoio de nuca, madeira barroquinha talhada por Vô Tebas. Nessa peroba, Esperança se trançou penteados. No cafofo há talheres de cedro, cadeiras de jatobá, fivelas de umburana, máscara gravada no pilão, trinco de imbuia envernizado em flor. Estilosa mão firme de Tebas na estatuêra.
– A gente tem outras minas e campinas também, meu filho, gerais. Mina cristalina, fonte ... E mina de pisar, dinamite de depenar o pé até o joelho.
Vó Esperança aperta forte o queixo barbado. Firma carinho. – Vou fazer um doce prucê.
Cascando laranja, quem criança em Campinas mexia tacho maior que ela? Horas no melaço do fervo, borbulhava vontade mas não podia passar nem um mindinho na colher de pau. Pegou íngua de doce, mas Bira nasceu e ela retomou a mão boa.
Lava a mão, Bira.

MIJADA, VÓ!
Manhã. O primeiro bisneto da casa comanda os arrumadores de cama, conferentes de milímetros nas dobras dos lençóis. Havia ainda o batalhão dos fiscais de gosmas também, cadetes adequados à nóia meticulosa da arrumação. Cada mula realiza seus sonhos à sua maneira: peito batendo na sanha por brindes da caguetagem e alguns se sentem no cume do pódio, pelo gozo de delatar.
Vóóó! Araci já tomou banho hoje, a coberta tá toda molhada!
A menina sonhou que se arremessava e caía feito bomba em poças coloridas, jorravam rampas de água pro vento e assim encharcava o pijama e o mundo. Havia em volta um deserto amarelo onde fincava um pilar. Agora, no tanque, a caçulinha esfrega a mancha de urina no lençol.
Fique colada no colchão até os dois secarem, viu, nojentinha! – É a ordem do berro que estoura os caminhos. Vó Ceci ensinando a compreensão, educando em casa pra ninguém sofrer na rua.
A pequenita ardida vai voltar pra roda no quintal e pedir pra brincar, mas ali o maiorzinho que caguetou a xixilina vai bradar: – Se você foi capturada pelo inimigo e voltou, será isolada! E ela ganha esparadrapo na boca, metem-lhe uma máscara de caixa de sapato com formigas dentro. O que cê contou da gente, Araci? Cê fraquejou na tortura, ô mijona?! De rendição em rendição...
E irão pro chuveiro, no ralo aquele caldo lameiro. Fechar registro pra esfregar as canelas foscas, os braços ruços de tanta cabra-cega, depois abrir de novo. Venceram cerca, rolaram no chão, rasgaram joelho. Menos o Gu, fissurado no videogame. Compete com colegas de escola que moram nos predinhos do Jardim Granola, se chegar ao recorde tem que congelar a tela pra provar maestria. 
 No fundo do quintal, Vó Ceci bate a bagana e confere seu território: arame sobrado do galinheiro, uma motoquinha sem guidão, bonecas louras sem braço e tijolos da obra que o pai nunca recomeçou. Opa! Quem teve a ousadia de plantar arruda ali? Eita que ela proibiu essa planta... sabe a potência, usou há tempos na precisão, carência antiga de dissolver uma semente no seu bucho antes de firmar placenta.
Ceci pela buraqueira do muro vê três antigos patrões colocando seu Tebas numa carruagem, como se fosse um saco de cimento. Lá vão passear e o véio dar mais uma aula de graça, dessa vez trouxeram até estudante de faculdade pra palestra. Papai tá uma cova desfilando de chapéu. Vou mentir?
Fumada, Ceci irá de barraco em barraco perguntando baixinho, sem gritaria, se alguém tá se lavando. Seu banho é matinal, a criançada na leveza da traquinagem, as brigas poucas e ainda não há a manta de choro e pirraça que irá cobrir o quintal. Mas inda aproveita mais uns minutos rente à cerca pra pitar mais unzinho. Hora do seu banho de sol na penitência cotidiana. Detida com nove netos pra cuidar. Rouca.


Este conto faz parte do livro inédito de Allan da Rosa, intitulado Reza de mãe.

23 de agosto de 2015

Crise e violência na representação literária

Regina Dalcastagnè

Imagem: Renato Guttuso

Em 30 de dezembro de 1904, Euclides da Cunha escrevia ao seu pai desde Manaus: “a mais consoladora surpresa do sulista está no perceber que este nosso Brasil é verdadeiramente grande porque ainda chega até cá. Realmente, cada vez mais me convenço de que esta deplorável Rua do Ouvidor é o pior prisma por onde toda a gente vê a nossa terra”. A partir do momento em que o artista abandona o conforto da Rua do Ouvidor, ou da sua “perspectiva do alpendre”, para usar os termos de Roberto Ventura, um imenso campo de possibilidades se abre ao seu redor. São outras pessoas, outras experiências, outros significados sobre os quais é preciso aprender, seja para falar sobre eles, seja para calar. Como não cabe a um criador o silêncio sobre o mundo, ele pode expressar sua impossibilidade de dizer, a ansiedade diante da própria obra, o desconforto imposto por um objeto que teima em ser sujeito de sua história. Basta lembrar de Clarice Lispector em A hora da estrela, por exemplo. 

No entanto, o mais comum é que a vida dos grupos marginalizados seja representada à distância, de forma “monocromática” – como diria Löic Wacquant – e estática. Normalmente seus integrantes nos são apresentados ou como vítimas do sistema ou como aberrações violentas. É claro que sob uma perspectiva menos autocentrada seria possível vislumbrar entre eles uma infinidade de matizes e diferentes estratégias de resistência e de deslocamentos, ou tentativas de deslocamento, no espaço social. As implicações dessas estratégias na existência das personagens, e na economia da narrativa, tornam-se uma questão crucial para o entendimento de suas possibilidades. Já o modo como elas são vistas e descritas não deixa de refletir o julgamento que é feito, por vezes de forma inconsciente, dos integrantes destes grupos. 

De um modo geral, a personagem do romance brasileiro contemporâneo “sabe o seu devido lugar”. Ali – como, aliás, nas telenovelas, no cinema, na publicidade, no jornalismo, em suma, nas diferentes representações da realidade brasileira (ainda que não necessariamente nela própria) – a divisão de classe, raça e gênero é muito bem marcada: pobres e negros nas favelas e nos presídios, homens brancos de classe média e intelectuais nos espaços públicos, mulheres dentro de casa, sendo as negras na cozinha... Nas narrativas, os contatos entre os diferentes estratos são, em geral, episódicos. Quando representados, quase sempre estão marcados pela violência – mas, neste caso, costuma-se privilegiar a violência aberta com que por vezes se expressam integrantes das classes subalternas, em detrimento da violência silenciosa, estrutural, que é exercida sobre os dominados. 

Não são poucos os exemplos das representações nas quais a experiência dos pobres na sociedade brasileira passa pela exposição dessa violência aberta, seja na forma da criminalidade, seja da brutalidade policial. Basta citar um romance como Cidade de Deus, de Paulo Lins, os contos de Rubem Fonseca, ou mesmo filmes como Carandiru e Tropa de elite, por exemplo. Esse tipo de violência não é estranha aos grupos privilegiados. Eles sofrem, talvez, modalidades diferentes dela, possuem outras formas de proteção e mantêm outro tipo de relação com os poderes públicos; ainda assim, há uma identificação possível. Sobretudo, a violência aberta encontra uma condenação moral quase unânime – há uma resposta comum e sem maiores ambiguidades a ela. 

Mas outras formas de violência convivem no mesmo espaço. O filósofo esloveno Slavoj Žižek distingue três tipos de violência. O que chamei de violência aberta e ele chama de “violência subjetiva” é a mais evidente, aceita como tal, possui um perpetrador individual identificável, um “culpado” que podemos condenar. Mas há também uma violência simbólica (encarnada na linguagem) e uma violência sistêmica, que é fruto das estruturas sociais. Essas duas últimas determinam a vivência cotidiana, criando entraves e limitando possibilidades, impedindo as pessoas de decidir suas próprias vidas, constrangendo-as a privações e humilhações. Justamente por construírem o cotidiano, passam despercebidas, como algo próprio da natureza das coisas – e não são vistas como manifestações de violência. A condenação a elas não é automática, nem categórica; ao contrário, tem de ser disputada politicamente. 

A violência simbólica e a violência sistêmica atingem de maneira muito mais específica os diferentes grupos sociais. O leitor de classe média bem estabelecida se encontra em situação de completa exterioridade em relação à experiência daquele que vai ao supermercado contando os trocados, que tem que devolver produtos no caixa ou que sabe que o segurança desconfia de sua presença ali. A literatura pode ser um espaço onde essa perspectiva tenha lugar, permitindo uma aproximação a realidades que são, reiteradamente, silenciadas. Pode ser um espaço de acolhimento, o que implicaria na construção de novas estruturas narrativas, mas pode ser também um lugar de reflexão, impulsionando os leitores a repensarem o modo como ocupam o mundo. 

O problema é que a adesão a determinados enquadramentos – e a determinados estereótipos – é fácil para o leitor, que os encontra replicados nos mais diferentes tipos de discurso. Portanto, é fácil também para o escritor, que não precisa se arriscar a lidar com o estranhamento na construção do outro. O que não quer dizer que não existam aqueles que o façam, e com competência. De qualquer forma, é cada vez mais difícil ignorar a existência de uma crise na representação literária – que implica no questionamento sobre quem fala e em nome de quem. Instalada a dúvida, abrem-se brechas em um sistema em geral bastante uníssono, porque refratário à presença de grupos sociais diferenciados – sejam autores(as), sejam suas personagens. Daí os ruídos e o desconforto causados pela “intrusão” dessas vozes não autorizadas no campo literário brasileiro; daí a tensão e os deslocamentos gerados, inclusive, entre os autores já legitimados, que se veem diante da necessidade de explicitarem sua posição, abandonando a perspectiva de classe distanciada não para assumir o ponto de vista do outro, mas para declarar justamente a impossibilidade dessa apropriação.

15 de agosto de 2015

A violência contra a mulher e a literatura

Paula Q. Dutra


Imagem: Cindy Sherman
Our silence will not protect us.
Audre Lorde

Em 2006, a escritora norte-americana Alice Walker trabalhou para a organização Women for Women International e teve a chance de visitar Ruanda e o Congo depois do genocídio ocorrido na região. Mais tarde, convidada pelo grupo antiguerra CODEPINK, Walker viajou para a Palestina/Israel três anos após a devastação ocorrida na faixa de Gaza. Overcoming speechlessness (2010, Rompendo o silêncio, tradução minha) resulta dessa experiência. O livro é um relato de caráter mais pessoal sobre o que a autora presenciou e sentiu durante (e também após) essa visita a um cenário devastado pela violência. Diante de tanto sofrimento, Walker afirma ter retornado ao seu país carregando o peso das histórias contadas pelas sobreviventes. Após o período de choque inicial pelas histórias que falavam de uma dor para a qual parecia não haver palavras, a autora busca nesses relatos a força para recontá-las, ciente de que é necessário romper o silêncio para lutar contra a violência.
Compreender o mundo moderno e sua relação com a violência é, para muitos, um dos desafios da chamada modernidade. Susan Sontag, no livro Diante da dor dos outros (2003), afirma que ser um espectador de calamidades é uma experiência moderna essencial, o que nos leva a pensar sobre o fenômeno da violência como um todo e sobre o que essa exposição tão excessiva, que por vezes vulgariza e torna banal o sofrimento do outro, provoca em nós e na sociedade em que vivemos. Para Jean Franco, em Cruel modernity (2013), nem a crueldade nem a exploração da crueldade seriam algo novo, mas a aceitação e a justificação de atos de crueldade é o que se tornou uma característica da modernidade.
O relato de Alice Walker sobre esse encontro com as mulheres que sobreviveram a violências físicas, sexuais e psicológicas brutais nos contextos de guerra coloca em pauta a importância de se discutir a violência contra a mulher nos dias de hoje. Se diariamente somos soterrados por notícias sobre crimes, conflitos armados, tragédias no simples ato de folhear um jornal ou ligar a televisão, a violência cotidiana vivenciada pelas mulheres em todo o mundo ainda tem sido banalizada e aceita como algo “normal”, ainda que as estatísticas mundiais continuem alarmantes.
Um dos problemas ao tratar da questão da violência são os seus muitos significados, que por vezes impedem ou dificultam o reconhecimento, por parte das próprias vítimas, da situação de violência a que estão submetidas. Esse não reconhecimento de ações violentas como violência ocorre tanto por parte das vítimas como por parte dos agressores, o que demonstra a gravidade do problema da naturalização da violência como um sério empecilho à sua erradicação.
Só recentemente, devido a alguns avanços na legislação brasileira, a violência contra a mulher tem sido colocada em pauta no Brasil. Mas, se a violência urbana que assombra as grandes cidades é um tema recorrente nos romances brasileiros, a violência contra a mulher, em suas várias formas, ainda é pouco problematizada, mesmo por escritoras, conforme apontam as pesquisas de Regina Dalcastagnè em Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira Contemporânea (2010). O que esse silêncio pode nos dizer?
Podemos acreditar que a literatura é capaz de fazer algo contra a violência, uma vez que é um discurso que produz conhecimento sobre o mundo, e pode tanto reproduzir e disseminar estereótipos quanto contribuir com a criação de novas imagens e novas ideias. Como afirma Jaime Ginzburg no livro Violência e melancolia (2012), a convivência com a literatura nos permite entrar em contato com novas imagens, ideias, relatos e exemplos que contribuem para construir uma nova orientação ética, tanto individual quanto coletiva. Faz-se necessário ter em mente, contudo, que as representações de violência na literatura, no cinema e nas artes em geral também podem suscitar reações opostas, e o que inicialmente pretendia ser uma denúncia pode terminar por ser interpretado como algo banal ou, até mesmo, inevitável.  
Considerando a possibilidade e a legitimidade das representações, é importante pensarmos até que ponto e de que maneira as várias formas de violência contra a mulher, em todas as suas nuances e complexidade, podem ser representadas na literatura sem reiterar os estereótipos tradicionais de submissão, silenciamento e dissociação associado às mulheres. De que forma essas representações podem contribuir para a criação de um novo discurso sobre a mulher vítima de violência, sem tornar ambígua a sua dor, o seu sofrimento?
Do ponto de vista da literatura, espaço onde circulam ideias e discursos, é importante que novas perspectivas sejam retratadas abordando a situação das violências vivenciadas pelas mulheres de forma a contestar algumas visões de mundo que favorecem as exclusões e reforçam estereótipos negativos.
Para isso, no entanto, é necessário que a literatura de fato dê voz a essas mulheres, sem minimizar ou desconsiderar o seu sofrimento, oferecendo-lhes uma oportunidade digna de resistir e sobreviver sem violência.

8 de agosto de 2015

Terror

Leonardo Tonus


            Imagem: Rudolf Kalvach
Segundo artigo de Elise Vincent publicado no jornal Le monde de 22 de dezembro de 2014, mais de 160 mil migrantes atingiram, ao longo deste ano, a costa italiana. Em 8 de maio de 2001, segundo o mesmo artigo, três corpos de moças foram recuperados em pleno mar. Para algumas a autopsia a autorizou a menção “provavelmente de origem subsariana”. No final do ano passado, 360 migrantes morreram afogados após uma trágica travessia em direção do eldorado europeu. 
Curiosa a facilidade (e a incapacidade) de nossa civilização ocidental a forjar termos, conceitos e noções perante o inenarrável: o terror do fenômeno migratório atual, contrário aos ímpetos eufóricos culturalistas que ainda hoje condicionam nosso olhar acerca desta questão.
Dentro do quadro das representações tradicionais da exogenia, o clandestino forma uma subclasse própria e distinta das outras figuras dos deslocamentos (exilados, refugiados, trânsfugas, viajantes), cuja permeabilidade aos procedimentos de estetização aponta para sua inserção no campo literário. Ao contrário destas categorias mais nobres, ele permanece relativamente ausente no cenário mundial das letras, apesar de constituir um dos principais atores dos processos de deslocamento populacional.
Segundo dados fornecidos pelas Nações Unidas, o estoque de migrantes no planeta elevava-se, em 2010, a mais 214 milhões de pessoas (3% da população mundial), das quais uma grande parte vive em situação irregular. O Brasil não escapa a esta situação, uma vez que nos últimos anos registra um número significativo de estrangeiros legais e ilegais no país. Dados do Ministério da Justiça apontam para um acréscimo de 57% da mão-de-obra estrangeira que, em 2011, compreendia mais de um milhão de pessoas. O governo estima que existam hoje no país entre 60 mil a 300 mil imigrantes ilegais, dados contestados pelas instituições não-governamentais que preferem evocar a presença de  quase meio milhão de clandestinos oriundos de países africanos, latino-americanos, asiáticos e, mais recentemente, de certas regiões do Caribe.
Desde os meados do século XIX, o imigrante constitui uma das figuras centrais do imaginário nacional e da literatura brasileira. Sua capacidade a se adaptar às transformações socioeconômicas, culturais e estéticas são uma prova flagrante de sua importância na elaboração de um discurso oficial sobre a identidade nacional. Em sua qualidade de estrangeiro, o imigrante contribuiu (e continua a contribuir) para salvaguardar a ilusão de uma identidade forte que, ao se apropriar da voz do outro-estrangeiro, integrou-a em projetos avalizadores dos sistemas vigentes. Enquanto “encenação projetiva”, temporária e distanciada do “mesmo”, o imigrante-estrangeiro assegurou (e continua a assegurar) a neutralização dos antagonismos, dos contrapontos diferenciadores e das posturas conflitantes da comunidade que o acolheu e a qual ele supostamente representa. Em vez do conhecimento e do reconhecimento pleno de sua diversidade, tais dispositivos apontam para uma “interpelação” diferenciada de uma “outridade” consensual que a presença de dispositivos de alegorização, de loci enunciativos distanciados e de representação miméticos, acabam por acentuar. Tais procedimentos sublinham os limites e as ambivalências do discurso atual sobre a representação da “alteridade” no contexto brasileiro: por um lado, a hipervalorização de um ideal de diversidade e de coexistência pacíficas entre culturas fundadoras da identidade brasileira; por outro lado, a instrumentalização de uma diversidade em prol de um projeto cultural unanimista.
Ora,  como explicar a relativa ausência do imigrante clandestino na literatura brasileira? Como entender o pouco interesse que esta figura literária tem despertado junto a escritores cada vez mais motivados a expatriarem suas vozes e personagens para além das fronteiras nacionais? Constituiria esta ausência mais uma prova dos limites do discurso sobre alteridade no país? Viria ela expor a violência  dos procedimentos de silenciamento direcionados a vozes subalternas pouco “aptas” a representações consensuais da identidade nacional? 
O vasto campo de aplicação jurídico, político, sociológico e filosófico vinculado ao conceito de clandestinidade tende a associar frequentemente esta prática a atividades ilícitas que posicionam seus atores para além da esfera da legalidade. Quer se trate de oponentes a regimes políticos, de imigrantes ilegais, contrabandistas, traficantes ou terroristas, todas estas figuras compartilham uma territorialidade extraviada que, resultante de uma  ruptura com o espaço centralizador, priva o sujeito de um lugar habitável fixo. A clandestinidade é uma prática do minoritário que inscreve o sujeito no universo da fração.
Todo estado de clandestinidade implica um deslocamento pontual ou definitivo, voluntário ou involuntário do sujeito em relação a um espaço que o abriga ou do qual é oriundo. Tal deslocamento articula-se em direção a um espaço distinto que, apesar de identificável e inqualificável, segundo os parâmetros legais, conserva suas relações com o universo excludente: inclusão/exclusão, vizinhança, proximidade, lateralidade. A contradição do estado de clandestinidade repousa justamente nesta relação metonímica que o  sujeito clandestino mantém com o espaço de que é oriundo e no qual passa a residir. Ela implica uma conexão de contiguidade entre dois significantes que ele substitui. Em outras palavras, toda clandestinidade induz a uma dupla territorialidade em função da qual elaboram-se as condições de sobrevivência e de existência do sujeito clandestino. A partir desta dupla espacialidade o sujeito não-autorizado elabora e administra um espaço de liberdade cuja independência lhe possibilita resistir.
Tornar-se clandestino não significa necessariamente inscrever-se na marginalidade. A clandestinidade constitui menos a evasão do sujeito do que a modificação de sua subjetividade em relação aos espaços que parasita, sejam eles centrais, estáveis, periféricos ou marcados pela precariedade (aeroportos, squats, campos de refugiados, artefatos literários censurados). Contrariamente aos excluídos, cuja “extração territorial” pressupõe uma visibilidade pela exposição dos procedimentos de estigmatização, o clandestino encarna uma forma radical de invisibilidade. Toda a sua existência organiza-se em função de um anonimato que, reivindicado e praticado cotidianamente, visa a não-revelação em praça pública de sua diversidade. No universo da clandestinidade, a experiência da alteridade é nula, uma vez que o não-reconhecimento legal por parte das autoridades nega ao sujeito a possibilidade de se tornar “outro”. Ao apagar seus rastros deixados pelos espaços que transita, o clandestino prenuncia a figura do estrangeiro. Ele se apresenta, assim, como uma não-figura cuja ausência legal certifica sua permanência temporária ou prolongada no espaço, desarticulando a dialética entre lugar e não-lugar. “Não-figura” do “sem-lugar”, ele habita os  interstícios  dos  espaços antropológicos fomentores de identidades (os oponentes políticos, os terroristas, os anarquistas) e dos não-lugares onde se manifestam as perdas dos marcos identitários  (os imigrantes clandestinos, os refugiados e os desertores).

Ontem eu vi o terror
Nos olhos de um imigrante clandestino
Simplesmente
O terror

De um barco à deriva
De uma vida de silêncios
De uma existência usurpada

Ontem eu vi o terror dos meus olhos
Nos olhos de um imigrante clandestino
Meus olhos menos clandestinos
Também desembarcados aqui há 26 anos

O terror não se descreve
O terror não se narra
O terror não se esquece


***
 Este texto é um fragmento do capítulo Espaços na e da clandestinidade, publicado originalmente no livro Espaços possíveis na literatura brasileira contemporânea, organizado por Regina Dalcastagnè e Luciene Azevedo. Porto Alegre: Zouk, 2015.



1 de agosto de 2015

Tramas urbanas

                                                                                                               Lucía Tennina


Foto: Claudia Jaguaribe

En el documental A palavra (en)cantada, Chico Buarque cuenta que en los años ´30 la población letrada de la ciudad de Rio de Janeiro subía el morro a comprar composiciones. “La clase media iba a buscar la música al morro, iban al morro para abastacerse, las personas subían al morro para comprar samba”, dice Chico dejando escapar una risita de asombro. El mito popular recuerda que circulaba entonces un juego de palabras que bromeaba con llamar “comprositores” a los músicos que iban a comprar composiciones. En la escena siguiente Martinho da Vila continúa hablando de los compositores del morro y con un tono más nostálgico afirma: “El compositor hablaba de su mundo, de su barraco, de su mujer, de su trabajo, de sus tristezas, de su sociedad. Como sus sambas eran justamente del morro, había muchos sambas hablando del morro. Hoy no hay más esos sambas que hablan de la favela porque la favela cambió, cambió mucho”. A partir de cierto momento, efectivamente, decir “favela” comenzó a acarrear la idea de peligro y no de arte y luego la de arte del peligro.
¿En qué consiste ese cambio? ¿Cómo es hoy en día la trama que compone los espacios periféricos de las ciudades brasileñas y de qué manera se relaciona con los centros económicos y culturales? Haciendo eco del sentido común podríamos darle continuidad al juego de palabras que abre el testimonio de Chico Buarque y afirmar que en cierto momento el comercio de las favelas pasó de tener como objeto el samba a tener como objeto de intercambio la droga. Durante los años 90, en esa atmósfera mundial de profundización de las prácticas neoliberales que acarreaba la ampliación de las desigualdades, las periferias de los grandes centros urbanos de Brasil se fueron volviendo centros proveedores de cualquier tipo de estupefacientes ilegales, lo que trajo consigo el desarrollo de facciones criminales y en algunos casos la organización de ese crimen. Martinho no deja de llamar la atención al respecto en la misma escena antes citada: “La favela cambió, cambió mucho con este problema de la violencia, del crimen organizado, de las facciones, entonces los morros perdieron un poco su identidad, no totalmente pero perdieron mucho”. Para darle un nombre a estos nuevos tiempos el autor del célebre libro Cidade de Deus propone el término “neofavela”, un espacio atravesado por la guerra entre los traficantes de droga y la violencia y corrupción de la policía.
Esa reconfiguración del espacio periférico anuló los relatos sobre las favelas vinculados a las letras de samba; desde comienzos de la última década del siglo XX, cualquier tipo de referencia que se hiciera sobre las regiones periféricas tenían el matiz de los relatos del terror que los medios de comunicación alimentaban diariamente abriendo y cerrando sus programaciones con imágenes de tiros, de muertos, de helicópteros sobrevolando comunidades suburbanas, de persecuciones, de gritos y de llantos. La potencia de esos relatos fueron cristalizando un sistema semántico definitorio de la idea de “favela” que instaló una división moral traducida topográficamente. De un lado (“del otro lado del puente”, en el caso de San Pablo y “en el morro” en Rio de Janeiro) están los criminales, los traficantes, los inhumanos asesinos; ser pobre como sinónimo de ser ladrón. Del otro lado (en el “centro” para San Pablo y en el “asfalto” para Rio de Janeiro), están las víctimas que sufren el miedo, el terror, la injusticia y la inseguridad. Gramática de la criminalidad regulada por una topografía que arrastra consigo una fisonomía vinculada a la negritud.
Más allá de la fuerza que esos relatos del terror adquirieron en base a la realidad de las estadísticas de muertes y de asesinatos en las regiones periféricas de los dos principales centros urbanos de Brasil, también en los años 90 empezó a configurarse otro sistema semántico para darle sentido a esa realidad que proponía una explicación opuesta. Los mismos estigmatizados empezaron a hacer escuchar sus voces en el marco del movimiento del hip hop a través de las letras de rap, acercando una lógica de pensamiento alternativa a la de los grandes medios que ya se había instalado en el sentido común. Fue principalmente a partir de los versos del grupo Racionais Mc´s y su letra “Pánico na zona sul” que la resignificación de los espacios periféricos y sus habitantes empezó a tomar fuerza, dando inicio a la configuración de un cada vez más poderoso contrarrelato. Este nuevo relato que impactaba en las radios brasileñas proponía un develamiento de las operaciones criminalizantes de las instituciones del Estado – como la policía en este caso – provocando un desplazamiento del sistema semántico que suele asociarse al “centro” o al “asfalto”. “Pánico”, “inseguridad”, “injusticia” están ya no en los barrios de clase media de la ciudad sino en las calles de la zona sur. Las letras de rap empezaron a poner en funcionamiento una cada vez mayor variedad de relatos interesados en la resignificación del negro, del pobre y del favelado, reconfigurando así el mapa social y moral de los relatos hegemónicos. Operación doble: desterritorialización de las operaciones criminales y resignificación de las identidades criminalizadas.
Los nuevos relatos provenientes del rap empezaron a funcionar por esa época como una voz colectiva de afirmación de la identidad periférica en todas las favelas de Brasil, ampliándose enormemente la lista de grupos de jóvenes que armaban sus propios grupos de rap (entre los que se destaca Facção Central, formado en 1995). Pero ya a mediados de la década del ´90 empezaron a extender su llegada a otros sectores de la población. El gran salto sucedió en 1997 cuando aquel grupo de la zona sur de San Pablo, Racionais MC´s,  lanzó su cuarto disco independiente, “Sobrevivendo no inferno”, vendiendo 100 mil copias en tan sólo una semana, no solamente entre oyentes de las periferias sino también entre consumidores de las clases medias. Tanto en los pasillos de las favelas, como en los lujosos departamentos de los barrios ricos de Brasil entero se empezó a escuchar la voz de Primo Preto diciendo que “60% de los jóvenes de la periferia sin antecedentes criminales ya sufirieron violencia por parte de la policía; de cada 4 personas muertas por la policía, 3 son negras; en las universidades brasileñas apenas el 2% de los alumnos son negros; cada 4 horas, un joven negro muere violentamente en San Pablo. Aquí quien habla es Primo Preto, un sobreviviente más” (Capítulo 4, Versículo 6). Evidentemente empezó a haber una demanda de un relato alternativo al del terror también en los sectores no periféricos como consecuencia de una sucesión de acontecimientos tremendos que no hallaban consuelo en la lógica que el discurso hegemónico proponía, como la masacre de la Candelaria en Río, con el asesinato brutal en manos de la policía de 8 niños de los 50 que dormían en las escalinatas de esa Iglesia, y la masacre de Vigário Geral, que dejó como saldo 21 muertes inocentes también por parte de la policía. El mapa se presentaba más complejo de lo que el relato oficial pretendía y en esa coyuntura las voces del rap empezaron a funcionar como un contrarrelato que impactaba en varios sectores de la sociedad brasileña.
Al poco tiempo, el lenguaje se fue ampliando y, con un alcance inmediato y masivo, empezaron a aparecer en el mercado una serie de “productos favela” que le dieron dimensión internacional a este nuevo perfil que empezaron a tomar dichos espacios. De hecho, pasados unos meses de su lanzamiento, el disco “Sobrevivendo no inferno” participó y ganó por su video “Diario de um detento” el premio VMB del año 1997, una especie de Oscar de las emisoras de videoclips que le permitió al grupo ir a representar a Brasil en la fiesta que se llevó a cabo en Los Ángeles. Ese mismo año la editorial Companhia das Letras sorprendió en su catálogo con el libro Cidade de Deus, de Paulo Lins, un autor que nació y creció en la favela que le da nombre al libro. Y algunos años después, en el 2001, Fernando Meirelles presentó al mundo entero la película homónima basada en dicho libro que, como todos sabemos, alcanzó un éxito mundial. En palabras de Heloísa Buarque de Hollanda, “el mercado editorial y audiovisual, astuto, percibe y comienza a interesarse por esos relatos que responden a un creciente interés de la clase media en saber sobre el lado de allá”. Es pertinente recordar en este punto que la palabra “interés” deriva de una construcción impersonal latina inter est, que significa “es diferente”; es justamente como consecuencia de esa diferencia que se presenta como urgente la necesidad de relatos por parte de la clase media, perturbada por los relatos del terror que eran los únicos que le llegaban de ese “lado de allá”. Mientras que dentro de las comunidades el rap partía de la demandaba de un relato que resignificara el ser periférico otorgándole autoestima y construyendo una identidad, la clase media pedía un relato que tranquilizara el terror que la periferia le provocaba y fue el mercado el que vino a otorgarle este relato compensatorio.
Paralelamente a todo ese nuevo tráfico de relatos, se empezaron a levantar por las calles de los barrios del Gran San Pablo una serie de voces vinculadas a las letras de rap por sus temáticas, recursos, intenciones y por estar articuladas por habitantes de barrios de dicha región, pero identificadas no ya con el hip hop sino con la literatura. Durante los años 90 se empezó a escuchar en algunos recitales de rap la voz de Sérgio Vaz declamando sus propios poemas, y se empezaron a leer en el reverso de los carteles que publicitaban a ciertos políticos en el extremo sur de San Pablo poemas de un tal Binho. En el año 2000 este tipo de manifestaciones ganó fuerza a partir de la publicación de Capão Pecado, de Ferréz, un escritor del estigmatizado barrio de la zona sur de San Pablo llamado Capão Redondo. Se trata de un libro original en su contenido y su forma, dado que cuenta la historia de Rael, un habitante de aquel barrio, e intercala entre los capítulos textos de diferentes raperos de la zona sur. Fue a partir de la notoriedad alcanzada por esta publicación que Ferréz, en tanto “excepción cultural”, según apunta Erica Peçanha do Nascimento – la antropóloga pionera en estudiar estas manifestaciones literarias –, comenzó a colaborar como cronista al año siguiente en la revista Caros Amigos (una importante revista de izquierda nacida en 1997 con una intención de repudiar al neoliberalismo nacional y mundial). A los pocos años, en el 2001, dicha revista le dio un protagonismo mayor a aquel escritor autorizándolo a publicar un número especial ideado y organizado por él mismo, llamado Caros Amigos / Literatura Marginal. A cultura da periferia. Esta publicación tuvo tal repercusión que acabó teniendo dos números más, en 2002 y 2004. Estos números especiales –pensados desde estrategias de lectura que atrajeran no solamente a los lectores de trayectoria letrada que solían comprar la Caros Amigos, sino también a los trabajadores y chicos de las periferias del país- visibilizaron en aquel momento una escena literaria dispersa y desconocida incluso por los mismos colaboradores y le dieron un nombre para identificarla: “literatura marginal”. La fuerza con la que se instaló esta categoría no solamente le dio identidad a una serie reunida sino que también sentó las bases para un movimiento que viene tomando cada vez más fuerza y más lugar en la escena literaria brasileña.
Al año siguiente del primer número de la edición especial empezó a conformarse una nueva práctica literaria llamada “sarau” (una especie de peña poética), espacio clave de conformación y consolidación del Movimiento de Literatura marginal/periférica que funciona hasta hoy en día como cocina de la literatura marginal. Se trata de reuniones en bares de diferentes barrios del Gran San Pablo donde los vecinos declaman o leen textos propios o ajenos frente a un micrófono, durante aproximadamente dos horas. Muchos bares –espacios donde suelen ocurrir los actos que luego se vuelven estadísticas (los asesinatos y el alcoholismo)–, funcionan desde entonces también como centros  culturales. Los saraus da periferia se están multiplicando anualmente y conforman un circuito recorrido por una red de frecuentadores que se mueven de barrio en barrio, sin considerar las grandes distancias geográficas dentro del Gran San Pablo, ni las distancias que imponen la realidad del tráfico y la pobreza. Estos espacios se volvieron importantes centros de difusión (principalmente por la organización de antologías y la venta de libros autorales) y de formación de lectores y de escritores.
La escena de la cultura periférica a comienzos del siglo XXI se presentaba, así, de manera cada vez más compleja y amplia, y se desarrollaba en paralelo a una coyuntura política encabezada por el gobierno Lula y la gestión de Gilberto Gil seguido de Juca Ferreira en el Ministerio de Cultura que, con contradicciones, comenzó a incluir en las agendas la problemática de “las periferias” ya no desde una política del desarrollo sino desde la lógica de la gestión. Se implementaron así una serie de programas orientados al reconocimiento del trabajo comunitario, legitimando y alentando su visibilidad, como el Programa Cultura Viva. La cuestión central desde entonces comenzó a ser la “gestión”, tal y como lo señala João Camillo Penna en su iluminador artículo “Criminalización y culturalización de la pobreza”: “Así, la palabra que define la política contemporánea en su modo de ‘gobernabilidad’ es gestión: gestión de las ilegalidades (y no justicia), escribía Foucault; gestión de las inserciones (y no ciudadanía), decimos nosotros […] lo que está en juego aquí es la constitución de sujetos a partir de una división moral o penal – el jagunzo, el narcotraficante, el marginal – tornándolos objetos de cultura”. Frente a la represión por parte de la policía en sintonía con la pretensión de un Brasil desarrollado e integrado, este tipo de lógica comienza a pensar en la gestión de las diferencias a partir de sus manifestaciones culturales, partiendo de la política de la inserción. Penna identifica este proceso como “criminalización de la pobreza” y “culturalización de la pobreza”, respectivamente.
        En paralelo a esta gestión de la cultura de la pobreza por parte del Estado, las industrias culturales continuaron captando cada vez más las producciones vinculadas a esa temática y esas trayectorias. En 2011, por ejemplo, el mayor evento de literatura de Brasil, la Flip (Feria del libro internacional de Paraty) cedió el escenario principal al tema “Palavra das Ruas” (Palabra de las Calles), con dos escritores de la periferia de San Pablo y un rapero como invitados (Sérgio Vaz, Rodrigo Ciríaco y Cocão). Ese mismo año, el mayor evento de cultura que se lleva a cabo en las calles de la Ciudad de San Pablo armó un escenario especial llamado “Palco da Cultura Periférica”, donde incluyó rap, literatura, saraus, samba; y en 2012 dedicó un escenario especialmente a los Saraus. La revelación musical del 2012 fue Criolo, un artista del extremo sur de São Paulo, el barrio de Grajaú, que ganó en tres categorías (Revelación, Mejor Cantante y Mejor Album) del Premio da Música Brasileira. Y ese mismo año el Grupo Editorial Planeta publicó un libro de Paulo Lins y otro de Ferréz.
Trayendo a colación en el testimonio de Chico Buarque del comienzo de este artículo, podríamos decir que nuevamente se está “subiendo al morro” a comprar cultura, aunque no se trata ya de “comprositores” sino que son las corporaciones y multinacionales los que se interesan por las producciones periféricas.
Ahora bien, esta utilización de la periferia en tanto recurso cultural explotable (parafraseando a George Yúdice en El recurso de la cultura) hace que muchas veces no se preste atención al contenido en sí, sino que el habitus periférico del producto y su creador son lo que interesan. En otras palabras, el interés de lo periférico algunas veces termina echando sombra sobre la producción en sí misma, que acaba importando menos que su origen. Así, por ejemplo, al tiempo que un programa de televisión invita a un escritor periférico con una serie de libros publicados y reconocidos, invita a otro escritor que se autorreconoce también como periférico pero que no cuenta con ninguna producción pública más allá de su blog personal y es apenas reconocida dentro de su propio ámbito. A veces todo pareciera dar lo mismo mientras que sea “marginal”.
Esta voracidad por lo periférico por parte de las industrias culturales y los programas de gobierno termina siendo muchas veces un boomerang que se vuelve en contra de la producción de los mismos autodenominados “periféricos”, pues muchas veces terminan trabajando más en la construcción de su persona como “mano” o “mina” o como “escritor marginal”, que en su propia producción, que en el caso de la literatura, por ejemplo, termina reduciéndose a aforismos o refritos de textos viejos recopilados en un libro con otro título; los libros en esos casos más que novedades literarias, se vuelven pruebas que confirman el título de “escritor marginal” de quien los publica. Podría hablarse en estos casos de una autoexplotación del recurso “cultura de la periferia” que acaba en definitiva en una autoexclusión de cualquier otro tipo de manifestación cultural. Cabe citar aquí nuevamente a João Camillo Penna: “al eliminar la fuerza de pánico real en las identidades representadas en versión estética, las imágenes identitarias, estereotipadas y segmentadas, productoras de modas y estilos de la juventud, reproducen la misma distancia con el ‘Otro’ que estas mismas imágenes, teóricamente, deberían acortar”.
Ahora bien, dentro de este enredado entramado en el que el relato de “lo periférico” parece estar administrado en todos sus flancos, aparecen algunas “sorpresas” que desorientan las categorizaciones. Deus foi almoçar, el último libro de Ferréz, por ejemplo, fue publicado por Editorial Planeta; el contrato editorial fue firmado con anterioridad a la existencia de la novela, que fue esperada con ansias por los lectores de Ferréz y por el mercado del libro. En julio de 2012 llegó finalmente a las librerías, pero con una característica inesperada: a diferencia de todos sus libros anteriores, esta tercera novela no nombra en ninguna de sus 239 páginas la palabra “favela”, tampoco coloca el el foco en la injusticia social, las drogas y la violencia física ni presenta un lenguaje plagado de jergas. Se trata de la historia de Calixto, un personaje de clase media baja que se encuentra inmerso en una profunda depresión.
¿Cómo leer este inesperado gesto de la literatura de Ferréz?
Junto a la utilización de su nombre y de su trayectoria periférica que tanto él como la Editorial Planeta explotan al máximo (basta con leer la solapa del libro), Ferréz sorprende con una intervención que consiste en tachar en un gesto literario el calificativo “marginal” con el que se autoidentificó y legitimó como escritor. Con su nombre ya consolidado dentro del esquema de culturalización de la periferia, Deus foi almoçar infiltra otra propuesta. El libro funcionaría así como un sacudimiento del esquema sin salida de la idea de “artista periférico”, dado que lo que Ferréz lleva a cabo es una identificación ya no dentro de la “literatura marginal”, sino dentro de la “literatura”, produciendo un movimiento de autointegración dentro de esa categoría de trayectoria letrada, históricamente digitada por los “dueños de la escritura”, como los llamaba Ángel Rama. Desafío literario cuya respuesta por parte de la crítica literaria y los lectores de trayectoria letrada podría develar que detrás de las gestiones de la “cultura periférica” más que máquinas de igualdad hay tecnologías de poder.

Evidentemente, el intercambio entre las periferias y los discursos hegemónicos en términos de cultura ya no son tan simples ni unilaterales como cuando las clases medias subían a comprar samba a los morros. Hay un entramado complejo que pasa por la criminalización, el contrarrelato, la gestión y culturalización, la mercantilización, la autoexplotación y la autointegración que ponen en jaque las categorías simplistas y dicotómicas con las que se suelen leer las manifestaciones culturales de las periferias. El camino que une centros y periferias hoy en día ya no es, sin duda, solamente el de subir y bajar del morro, sino que hay idas y vueltas, atajos y caminos inesperados que plantean un mapa de difícil coordenadas que obligan a reenfocar la mirada y las categorías para pensarlo. 

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O texto completo, publicado na revista Informe Escaleno, pode ser lido aqui.