O livro de estréia de Rawet, Contos do imigrante, articula a problemática do êxodo judaico ao do pobre suburbano brasileiro, além do doente à beira da morte, do caminhante solitário pelas ruas, dos marginalizados em geral. Essa analogia tem seus motivos explicitados pela forma como o autor pensa o que seja um individuo em seu grau máximo de incompletude e solidão. O conjunto, forma e conteúdo, desses contos são a maneira de expressar esse pensamento. Escolher seu próprio caminho, em tal ambiente, torna-se tarefa penosa, solitária e irreversível. Seus protagonistas estão apartados de qualquer grupo, só assim eles podem tomar suas próprias escolhas, mesmo quando buscam seus familiares atrás de conforto ou segurança, a força dessas histórias está no que os personagens encontram em meio a solidão.
Rawet propõe-se a difícil tarefa de dizer o silêncio dessas personagens, cada palavra da narrativa conduz o leitor a experienciar o deslocamento lingüístico e social por que passam, e isso não apenas com os personagens estrangeiros. São envolvidas pelo silêncio que as personagens surgem, pouco é dito sobre o passado, o leitor é jogado no meio de uma vida e apenas por fragmentos de reminiscências a linguagem abre espaço no amplo silêncio, isso porque a lógica narrativa é extremamente ligada ao individuo em sua vivência; ora, um cego não fica a todo instante dizendo ou lembrando que é cego, ele vivencia a cegueira e portanto o narrador trata a cegueira indiretamente, sem nunca dizer “fulano é cego”, ele se utiliza das sensações de olfato, do ruído de uma cadeira fundidas a descrições espaciais para preencher o que não foi dito. E o imigrante desses contos vivencia a solidão de uma forma ainda mais específica por quanto não conhece a língua do país onde se estabeleceu. Isso o torna alvo da ironia e crueldade daqueles pertencentes a uma rede social já estabelecida, sua possibilidade de interação se dá através do corpo, um gesto, um olhar, um empurrão.
A violência de se viver em um meio estranho é latente, e envolve o próprio veículo de expressão; a linguagem é arrancada de seu contexto nacional, pertencente a uma dada literatura , para exprimir esse meio deslocado, pertencente a lugar algum que é a perspectiva desses imigrantes. A narrativa não se desenvolve linearmente de um passado estável a um destino de antemão planejado e fixo, através de uma consciência fragmentada o fio narrativo vai se traçando e de repente algo não lingüístico atravessa o texto, um silêncio estrangeiro a qualquer lugar, como aquele verso do Álvaro de Campos “minha Pátria é onde não estou”. O profeta, A prece e Gringuinho são exemplos desse silêncio e torna-se cada vez mais forte em outras obras do autor. Isso porque para Rawet, a linguagem, em toda sua capacidade de expressão, só é possível através da errância e experiências de vida, não no acumulo de saberes eruditos ou através da conservação de tradições que esmagam as possibilidades individuais.
A relação familiar é a principal característica negativa do livro, a família como modelo do sedentarismo vitorioso, dos valores absolutos e intolerância ao desconhecido. Nada se conquista ficando em casa; por maior que seja a fruição da dor, enquanto possível o deslocamento, mesmo que apenas da consciência, (como em Consciência do mundo), ainda existe algo. Cada personagem vivencia experiências que vão distanciando-o de um núcleo familiar rígido. Em contraponto, a rua e a errância aparecem como alternativa. Em uma entrevista a Flávio Moreira da Costa, Rawet declara: “Sou fundamentalmente suburbano. O subúrbio está muito ligado a mim. Aprendi português nas ruas, apanhando e falando errado e acho essa a melhor pedagogia. Eu aprendi tudo nas ruas”(Andanças e mudanças de S. Rawet). Com efeito, essa língua deslocada cria em Contos do imigrante um cerne desagregador, expõem a fratura irreversível de um mundo que não sabe lidar com sua incompletude.
Como foi dito, o português torna-se uma língua estrangeira a si mesma contaminando por dentro seu núcleo identitário nacional. Como diz Proust em seu livro Contra Saint Bouvet “os belos livros estão escritos numa espécie de língua estrangeira”. Isso na contracorrente dos discursos de uma literatura nacional, fundamentados no tripé língua, pátria e raça. Essa é uma grande inovação na prosa de Rawet, pouco explorada até agora pela crítica, o único estudo que conheço a esse respeito, devem haver outros, é o da professora da PUC-Rio, Rosana Kohl Bines, em um texto chamado Escrita diaspórica (?) na obra de S. Rawet. É preciso mostrar essas características da obra de Rawet, para não fechar as leituras possíveis em temas como o intimismo, a angústia da fragmentação, a busca irrealizável pelo todo, etc. Não que esses elementos não estejam presentes em Contos do imigrante, mas podem esconder essa possibilidade positiva de uma literatura deslocada, sua atitude crítica contra os regimes autoritários de uma literatura nacional, que se pretende unificadora das mais diferentes obras produzidas no Brasil. Rawet (ainda em entrevista) nos conta que não vê objetivo com sua obra na literatura brasileira “minha obra é produto de minha atividade como indivíduo, é a manifestação do meu corpo, aqui e agora no mundo”. (E continua) “Escrevo em português, no Brasil. Não domino bem a língua, ainda. E dominá-la não é ser fiel a preceitos gramaticais. É manifestar espontaneamente o miolo da língua, suas raízes populares, na gênese simultânea de idéia e emoção da consciência.”.
Embora a condição de imigrante nunca tenha abandonado completamente a figura de Rawet, vemos em contos como Salmo 151 ou Noturno, expressões desse miolo da língua que demonstra grande experiência do autor como brasileiro capaz de expressar a epiderme de seu povo sem, no entanto, precisar apelar para discursos nacionalistas ou buscar uma posição privilegiada no cenário literário nacional, permanecendo fiel a si mesmo, comunicando-se com as solidões, Rawet construiu essa obra dissonante que atravessa a literatura com uma vibração estranhamente nova.
Gabriel Antunes é mestrando em Literatura Brasileira na Universidade de Brasília - UnB.