24 de agosto de 2019

A produção literária brasileira sobre a ditadura: uma breve lista



Berttoni Licarião

Anomalie 03, de Eric Lacombe

Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.
José Saramago.


Vez ou outra, preciso me apresentar em uma roda de conversa e dizer que sou um pesquisador de literatura ocupado com a memória da ditadura na ficção contemporânea brasileira. As reações que recebo são as mais variadas e renderiam, elas mesmas, uma longa tese. No amplo espectro das respostas mais comuns, há, naturalmente, num primeiro extremo, aqueles que reconhecem a importância do tema e me parabenizam pela escolha. Em seguida, bem no meio dessa régua imaginária, encontra-se o grande conglomerado dos “incrédulos desinformados”, que ora perguntam se tem mesmo alguma coisa para se estudar, ora preferem encarar um silêncio constrangedor, levemente arrependidos da pergunta. Por fim, localizadas num ponto diametralmente oposto ao primeiro grupo concentram-se as pessoas que mais me preocupam: são as que sugerem, quase entre dentes, meu “desperdício de tempo” com “um tema superado”, isso quando não deixam escapar um alarmante riso negacionista.

A ditadura não é “uma página virada da nossa história”!

Essa percepção da ditadura civil-militar brasileira como página virada de nossa história não é uma onda recente e se alimenta, principalmente, da ausência de políticas da memória efetivadas a nível institucional. Frente a normatização do esquecimento, as esferas culturais reagem como podem. Para ficarmos apenas no campo da literatura, textos literários sobre a ditadura brasileira não apenas existem como são abundantes, enchem bibliotecas, recebem prêmios, são discutidos e estudados nas universidades. No entanto, por falhas estruturais em nossa transição para a democracia, eles carecem de capilaridade e rapidamente caem no ostracismo dos livros que não ocupam as listas de mais vendidos. As exceções existem, ainda que raras, como foi o caso de O irmão alemão (2014), de Chico Buarque, autor que sabemos ser capaz de transformar em best-seller até mesmo um livro de receitas com 150 maneiras de preparar chuchu.  
O silêncio que muitas vezes sufoca ficções e relatos sobre a ditadura é um projeto de longa data. Após assumir o controle do país em 1979, o ditador João Batista Figueiredo enviou ao congresso, sob enorme pressão de vários setores da sociedade civil, o projeto de lei que concedia anistia aos crimes cometidos durante os anos de exceção. Na época, o militar declarou: “Eu não quero perdão porque perdão pressupõe arrependimento [...]. Eu apenas quero que haja esquecimento recíproco.”[1] Com efeito, o desejo do ditador fez-se lei, e o trauma da ditadura foi varrido para debaixo do tapete, ao invés de ser encarado coletivamente.
A falta de elaboração coletiva de um período em que crimes contra a humanidade foram cometidos por um Estado autoritário gera incompreensão e mal-estar social, e suas consequências podem ser sentidas ainda hoje. Quem aí tentar enxergar as filigranas de nosso tecido democrático, conseguirá perceber o quanto a Constituição Cidadã de 1988 guarda trechos inteiros da Constituição autoritária de 1967 (e sua emenda de 1969). Como nossa lei da Anistia, de 1979, apesar de não prever o perdão para torturadores (porque crimes de tortura não são anistiáveis) foi considerada como valendo para todos e prossegue garantindo impunidade a quem torturou, matou e desapareceu aqueles que se opuseram ao regime. Que o nosso direito à verdade e à justiça — condição para o funcionamento de uma democracia — tem sido constantemente negado pelas Forças Armadas que mantém escondidos da sociedade os arquivos da ditadura. E que pesquisas da última década[2] comprovam que o uso da tortura e da violência pela polícia brasileira aumentou após a redemocratização, não mais direcionado aos “comunistas subversivos”, mas à juventude negra e aos moradores das periferias.

A literatura e o resgate da memória coletiva

O governo brasileiro levou mais de 20 anos para instaurar sua Comissão da Verdade — iniciada em 2012 e finalizada em 2014. Tornando-se, portanto, o último país latino-americano a estabelecer uma comissão para apurar crimes e irregularidades cometidos durante governos antidemocráticos. Semelhante atraso em um processo de resgate fundamental à memória coletiva gera aquele temerário quase-esquecimento contra o qual a literatura está sempre pronta a reagir. Afinal, a literatura sempre foi, e continuará a ser, “a maldição das ditaduras”, nas palavras do crítico e escritor argentino Alberto Manguel. Foi assim que, resistindo à censura das décadas de 1960 e 1970, ela nos presenteou com obras-primas como Quarup (Antonio Callado, 1967), Incidente em Antares (Erico Verissimo, 1971), Sombras de reis barbudos (José J. Veiga, 1972), As meninas (Lygia Fagundes Telles, 1973) e Os que bebem como cães (Assis Brasil, 1975), entre tantos outros grandes romances.
Nas décadas seguintes, a literatura sobre a ditadura civil-militar brasileira se sustentou com força no testemunho de exilados, ex-guerrilheiros e sobreviventes das torturas. Como exemplo, temos os relatos imprescindíveis de Renato Tapajós (Em câmara lenta, 1977), Frei Betto (Batismo de sangue, 1982), Luiz Roberto Salinas (Retrato calado, 1988), Salim Miguel (Primeiro de abril, 1994), Flávio Tavares (Memórias do esquecimento, 1999) e, mais recentemente, aquele curto e belíssimo livro da Maria Pilla chamado Volto semana que vem (2015). Além, claro, das narrativas conciliatórias e, por isso mesmo, bastante problemáticas, de Fernando Gabeira (O que é isso, companheiro?, 1979) e Alfredo Sirkis (Os carbonários, 1980).
Na falta de monumentos, tribunais e lugares de memória, nosso trauma resiste ao esquecimento e se reelabora por meio da literatura, através de um complexo inventário que recria tudo aquilo que a historiografia é incapaz de dizer: a dor e as feridas, as lágrimas e o sangue, a tensão e o horror. O arquivo é duro, de pouco acesso, lugar para historiadores com suas luvas e máscaras de proteção; a literatura, ao contrário, consegue ser um pouco mais democrática, cabe na mão e atinge um público mais amplo, ávido por conhecer seu passado.
Durante os anos 1990 e início do século XXI, mais ficções apareceram para dar conta dessa memória áspera e ainda dolorida. Para exemplos, temos Amores exilados (Godofredo de Oliveira Neto,  1997), Romance sem palavras (Carlos Heitor Cony, 1999), Cinzas do norte (Milton Hatoum, 2003), Não falei (Beatriz Bracher, 2004), A chave de casa (Tatiana Salem Levy, 2007), Nem tudo é silêncio (Sonia Regina Bischain, 2010) e o surpreendente Azul corvo (Adriana Lisboa, 2010), uma das poucas narrativas que tratam da Guerrilha do Araguaia, massacre de opositores ao regime promovido pelas Forças Armadas e que foi negado durante muitos anos pelos militares.

K. Relato de uma busca: divisor de águas

Em 2011, às vésperas da criação da Comissão Nacional da Verdade, a novela K. Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski, se torna um verdadeiro divisor de águas da literatura nacional. De forma pioneira, misturando dados biográficos e históricos à invenção literária, Kucinski denuncia a precarização da memória brasileira sobre os anos de repressão através da história de um pai à procura da filha e do genro, desaparecidos políticos da ditadura. Esse ponto nuclear da narrativa parte da vivência do autor, que perdeu a irmã e o cunhado — Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva — quando ambos foram sequestrados em 1974 pelas forças de segurança do estado de São Paulo. A partir de K. um novo ciclo cultural tem início, no qual as obras literárias não apenas visitam o passado recente, mas apontam para a relação indissociável entre a violência do presente e o “mal de Alzheimer nacional”. Ainda sobre a ditadura, Kucinski publicou outros três livros, Você vai voltar pra mim e outros contos (2014), Os visitantes (2016) e A nova ordem (2019).
Com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), a literatura brasileira sobre a ditadura ganhou novo fôlego e se transformou num palco para o acerto de contas entre história nacional e memória coletiva. Fomentados pelo rebuliço nos arquivos, os livros se tornam, neste momento, “obstáculos levantados contra o convite ao esquecimento”, na expressão de Beatriz Sarlo.[3] Em 2012 foram lançados Mar azul (Paloma Vidal), Estive lá fora (Ronaldo Correia de Brito) e Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia (Liniane Haag Brum), e em 2013, Vidas provisórias, do Edney Silvestre. Já em 2014 foram publicados a coletânea de contos organizada por Luiz Ruffato, Nos idos de março, e os romances Damas da noite (Edgard Telles Ribeiro) e Qualquer maneira de amar (Marcus Veras). O ano de 2015 nos trouxe Ainda estou aqui (Marcelo Rubens Paiva), Cova 312 (Daniela Arbex), Mulheres que mordem (Beatriz Leal Craveiro), O amor dos homens avulsos (Victor Heringer), Palavras cruzadas (Guiomar de Grammond) e o vencedor dos prêmios Jabuti e José Saramago, A resistência, de Julián Fuks.

A literatura continuará a falar da ditadura

Nas palavras de Beatriz Sarlo, “as palavras são, de fato, testemunhas informantes”,[4] especialmente contra a atrofia da memória. Muito a contragosto de grupos conservadores ou negacionistas, o último triênio não apresentou qualquer queda na produção de textos literários sobre os anos de exceção. Preocupados em demonstrar como a violência da ditadura ocupa os mais diversos espaços da contemporaneidade, uma nova leva de livros continua a surgir sem descanso: é o caso de Cabo de guerra (Ivone Benedetti, 2016), Felizes poucos (Maria José Silveira, 2016), Outros cantos (Maria Valéria Rezende, 2016), O indizível sentido do amor (Rosângela Vieira Rocha, 2017), A noite da espera (Milton Hatoum, 2017), Silêncio na cidade (Roberto Seabra, 2017), Paris – Rio – Paris (Luciana Hidalgo, 2017), o infanto-juvenil Clarice (Roger Mello, 2018), Uma mulher transparente (Edgard Telles Ribeiro, 2018), Sob os pés, meu corpo inteiro (Marcia Tiburi, 2018), Correio do fim do mundo (Tomás Chiaverini, 2018) e Setenta (Henrique Schneider, 2018). Merece destaque, neste período, a Trilogia infernal da pernambucana Micheliny Verunschk composta pelos romances Aqui, no coração do inferno (2016), O peso do coração de um homem (2017) e O amor, esse obstáculo (2018).
Esta lista poderia ser muito mais longa, mas nunca foi seu propósito exaurir o assunto. Pelo contrário, deve ser encarada como um convite para leitoras e leitores que, seguindo o conselho de José Saramago que ficou lá em cima, reconhecem que somos, de fato, a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Se o que está em jogo é a capacidade ou não de reconhecermos nossa responsabilidade pela memória de um autoritarismo que continua a assombrar o presente, é preciso estar atento e forte para que, seguindo o exemplo da personagem kafkiana, a vergonha também não seja a única coisa que nos sobreviva.


[1] Monteiro, Tânia. Venturini: “O grande mentor da anistia foi Figueiredo”. O Estado de São Paulo, São Paulo, 22 ago. 2009. Disponível em: . Último acesso: 16 ago. 2019.
[2] Penna, João Camillo.  “Estado de exceção: um novo paradigma da política?”. In: Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Brasília, jan./jun. 2007.
[3] SARLO, Beatriz. Os militares e a história. In: SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. Trad. Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: EdUSP, 2005. p. 25-34.
[4] Idem.

10 de agosto de 2019

As representações do ódio e da violência pela literatura contemporânea

Carlos Wender Sousa Silva


"Cenas de Violência: Silêncio", da Marie-Ange Giaquinto.  




“Havia um homem antes da farda:
depois,
caos, um nada,
anterior talvez à farda
à espera que, de ordem, uma palavra
o preencha,
havia um homem”

Adriano Scandolara

Nossa sociedade é exposta diariamente a diferentes práticas humanas de intolerância e violência. Muitas delas são inexplicáveis de um ponto de vista racional, na medida em que se distanciam de parâmetros éticos, morais e filosóficos essenciais à vida coletiva. Essa violência decorre em alguma medida do inconformismo diante da irrealização de interesses humanos imediatos criadas dentro das relações de poder. As práticas humanas violentas perpassam pelos âmbitos institucional e privado, indo desde uma relação entre um casal ou entre vizinhos, até as relações profissionais previamente hierarquizadas. Esses conflitos provocados e ressignificados pela sociedade contemporânea exigem novas formas de se pensar nossas relações sociais a todo momento.
É nesse sentido que o romance Gog Magog, de Patrícia Melo, busca ressignificar alguns dos usos que atribuímos à violência. Patrícia Melo, escritora, dramaturga e roteirista, aproxima a literatura de vários dos elementos da barbárie nesse romance, em uma tentativa de colocar alguns questionamentos com relação às nossas próprias atitudes e interesses, tendo em vista que esses aspectos se desenvolvem diante de todo um processo de construção social e psicológica. Além de Gog Magog, a autora tem obras que já foram traduzidas em diversos idiomas. Ela recebeu prêmios por produções como Elogio da mentira, Inferno e Ladrão de cadáveres. O romance O matador foi indicado ao prêmio Femina na França e tornou-se filme em 2003, intitulado O homem do ano, com roteiro de Rubem Fonseca e direção de José Henrique Fonseca. Atualmente, a autora vive na Suíça. Gog Magog é o décimo romance da escritora.
A proposta nesse romance advém da necessidade contínua de dar uma resposta ao imediatismo a à dissolução das relações humanas na sociedade contemporânea. A narrativa aborda muitos aspectos presentes na realidade brasileira. São apresentadas algumas das diversas dificuldades de comunicação do nosso tempo. O barulho da vida moderna aparece como uma metáfora dessa incomunicabilidade nas relações pessoais e coletivas. Além de deixar em aberto as delimitações entre a violência estrutural – institucionalizada – e todas aquelas praticadas no âmbito privado.
As relações sociais neste início do século XXI têm sido delimitadas por um aglomerado de informações que se acumulam nos diversos âmbitos da vida. Há, muitas vezes, uma acumulação de informações, interesses e vontades que se sobrepõem constantemente. Logo, as relações privadas e públicas são reconstruídas sem as mesmas proporções de reflexão ou de entendimento com relação à organização mais complexa da sociedade e das relações humanas. Consequentemente, notamos uma contínua ressignificação dessas relações. O imediatismo e a pouca profundidade desses vínculos levam a experiências de frustração e inconformidade. Essa sociedade inconformada, diluída na insatisfação consigo mesma e na negação da alteridade do outro, forma indivíduos que menosprezam e assumem o ódio como resposta aos diferentes conflitos que essa organização social constrói.
O ápice desse processo é o não reconhecimento do outro e a própria banalização da vida humana, que levam a práticas de violência, de racismo, de homofobia, de xenofobia, de extermínio, de opressão e de silenciamento das diferentes vozes. É nesse sentido que Gog Magog busca captar na realidade alguns desses elementos e experiências da sociedade contemporânea, na tentativa de ressignificar esses abusos estruturais através do texto literário. O barulho, o ruído que incomoda o personagem central é o mesmo que constrói as relações sociais hoje. O romance é uma tentativa de compreensão e percepção de algumas das práticas humanas irracionais.
O romance tem como protagonista um professor de biologia, que mora em uma metrópole – São Paulo. A narrativa de Patrícia Melo é tecida dentro de uma relação espaço-temporal que rapidamente identificamos como brasileira, expondo aspectos da violência e das desigualdades próprias do nosso país. O professor, cidadão honesto e pacato, não tem nome, ao contrário do seu vizinho, Ygor, que se muda para o apartamento de cima. Ygor, ou Senhor Ípsilon, apelido atribuído pelo professor a ele, é a peça fundamental que levará o personagem central a ter sua vida completamente transformada e orientada de acordo com os hábitos e atitudes do seu novo vizinho.
Os ruídos provocados pelo Senhor Ípsilon vão ocupando a cabeça do professor de biologia, que vai se perder na sua própria irracionalidade. Esse movimento demonstra a incapacidade do sujeito de racionalizar diante de situações que dizem respeito a vida urbana contemporânea. O professor que já tinha um casamento fracassado, que não encontrava muita razão na sua própria existência, nem qualquer sentido na realidade na qual se confrontava, revela sua incapacidade em compreender a organização da vida humana. Sua vivência insignificante e sua visão de mundo limitada o levou a adotar atitudes violentas e criminosas.
Na medida em que recusa a relação social presente no romance, a qual deveria ser construída mutuamente, o professor, imbuído pela sua frustração, constrói concepções equivocadas do seu direito com relação ao de outro cidadão com quem precisa compartilhar um código social. É exatamente a perda desse código social como instrumento que orienta as relações pessoais e coletivas do indivíduo, que acaba levando o professor a tomar atitudes contrárias não somente ao código, como também opostas a vários princípios éticos, morais e filosóficos.
Além da sobreposição inadequada de um direito individual sobre o de outro indivíduo, quando na verdade deveria haver a conformação entre ambos, a narrativa revela ainda a dificuldade que o personagem tem diante dos diferentes conflitos que a vida apresenta no dia a dia. Ou seja, a atitude do professor de biologia é um reflexo do próprio movimento de interrupção do diálogo diante de uma situação na qual tem-se interesses divergentes. O barulho metafórico presente no romance representa os ruídos provocados nas tentativas infrutíferas de comunicação entre os indivíduos na atualidade.
Nessa zona de incomunicabilidade não há lugar para o diálogo nem para o consenso. A dificuldade do personagem em lidar com o barulho reflete a impossibilidade da contemporaneidade de convivência entre ideias diferentes em um espaço em comum. O senhor Ípsilon, integrado à organização da vida urbana moderna, tirava o sossego e interrompia o silêncio do professor. Esse silêncio, que a princípio poderia ser entendido como um direito de cada indivíduo, nos levando a interpretar as atitudes do personagem a partir de parâmetros racionais, era, na verdade, a revelação da incompreensão e da irracionalidade do personagem diante das situações dinâmicas da vida moderna.
Da irracionalidade vai-se ao ódio e à violência. O ato de violência é o ápice da relação entre o professor e o seu vizinho. É o encontro entre as seguintes estruturas do romance: personagem, desejo e conflito. As atitudes desse personagem autoritário que se perde em si mesmo, nas suas irrealizações e nas suas limitações, expõem algo muito mais estrutural presente na organização social. A indiferença e a falta de empatia diante das confrontações pessoais e coletivas, muitas vezes, colocam o indivíduo em uma posição ilusória de superioridade. Daí advém o menosprezo e as diferentes formas de preconceitos como dito anteriormente. Todo esse movimento leva em muitos casos a uma histeria coletiva. Essa histeria é resultado de comportamentos e percepções que levam os cidadãos a fazer escolhas injustificadas e inumanas.
No romance, a chave girando na trinca da porta do senhor Ípsilon, os seus passos ecoados embaixo, os objetos que caem no chão, tudo é motivo para desestabilizar o conforto do professor. A reprodução dos sons produzidos pelo senhor Ípsilon dentro da estrutura narrativa vai apontando pouco a pouco a maneira como o personagem central se perde na pequenez da sua própria existência.
Na vida real, basta uma fechada no trânsito, a recusa da sexualidade e da subjetividade do outro, um olhar atravessado, um negro carregando um guarda-chuva ou condenado por portar um desinfetante em um ato político, um homem que ameaça e agride a companheira ou um terceiro diante da fragilidade da sua própria masculinidade, para revelar estruturas sociais desiguais e excludentes. Todas essas práticas denunciam as diferentes formas de violência estruturais e suas desigualdades. A pluralidade cria alguns ruídos em determinadas camadas da sociedade, levando-as a agir em interesse próprio por motivo ideológico, econômico, político ou filosófico.
O senhor Ípsilon, assim como nessas situações corriqueiras do dia a dia, noticiadas ou não, o indivíduo (a vítima) não é mais visto como ser humano, mas como um objeto. O seu direito é reduzido diante do direito do agressor, do indivíduo autoritário e violento. Ocorre um processo de animalização daquele que é posto em uma posição de inferioridade por aquele outro que se sobrepõe arbitrariamente.
Eu – o professor: (...) E eu não pensava no senhor Ípsilon como um ser humano.
E o médico perguntaria: Não? Como você pensava então no seu vizinho?
E eu responderia: Como um objeto. Um emissor de ruídos variados e desnecessários. Sem conteúdo (MELO, 2017, p. 111). 
Não é estabelecida uma relação mútua, orientada pela conformação dos interesses divergentes, mas um movimento de silenciamento e de apagamento do outro. O outro provoca ruídos desnecessários; para o agressor é alguém vazio, sem conteúdo. Para ele, a única forma de experienciar a vida é a sua, não a reconhecendo como limitada e como apenas mais um movimento dentro de toda uma estrutura social. É essa mesma incompreensão da complexidade da realidade que leva o sujeito agressor, homem honesto e pacato – como podemos ler no romance, a violentar uma mulher, a agredir uma pessoa da comunidade LGBT, a perseguir ou prender alguém por posicionamento político ou ideológico diferente do seu, a torturar, a defender torturadores, a aprisionar ideias, a apagar vivências do outro.
Em todos esses casos o outro é objetificado. Há esse ruído entre a minha experiência e a alteridade do outro. No romance, o silêncio é o produto de luxo do personagem central, pelo qual está disposto a pagar qualquer preço, inclusive com a vida de outras pessoas. Na nossa realidade, esse produto (barulho) pode ser uma ideia, um preconceito, uma crença religiosa, etc. Nesse sentido, a obra literária se coloca como possibilidade de compreensão de uma realidade formada por inúmeros ruídos.
A incomunicabilidade das relações humanas na contemporaneidade é ressignificada no texto literário, de forma com que busquemos compreender essas relações, criando possibilidades de intermediação no encontro com outro. Por essa perspectiva, a literatura é uma possibilidade de construção crítica, uma ferramenta de conhecimento da relação mútua do eu face a alteridade do outro. A obra literária procura demonstrar que o eu não se apaga diante da experiência de vida do outro, demonstra, ao contrário, a possibilidade de interação entre ambas vivências por meio de processos de aprendizagem, reflexão e troca de experiências. A literatura surge como espaço de mediação dos diferentes conflitos.      

Referência bibliográfica:

MELO, Patrícia. GOG MAGOG. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

3 de agosto de 2019

Na favela e no hospício: a escrita de si em Carolina Maria de Jesus e Maura Lopes Cançado

Gislene Maria Barral Lima Felipe da Silva
Mônica Horta Azeredo


Uma fachada para Mondrian, de Devair Antônio Fiorotti

Em seus textos autobiográficos, as escritoras Carolina Maria de Jesus e Maura Lopes Cançado buscavam, ao falar de si, alcançar a comunicação com o Outro. Suas escritas situam-se, assim, como espaço de interação entre interlocutores, o que é, segundo postula o filósofo Mikhail Bakhtin (1997), o princípio fundador da linguagem.
Um diálogo entre as produções dessas duas autoras justifica-se pelos aspectos éticos e estéticos em comum de suas obras e contextos de vida. Suas palavras circulam em dispositivos de poder e fazem falar uma parcela da sociedade, de uma classe social, de um grupo de indivíduos que, de outro modo, não teriam reconhecida sua existência teimosa e lírica frente aos cânones literários, por vezes tão impermeáveis e surdos.
A escrita de si nas duas autoras, a despeito das acusações de egocêntricas e egoístas, contempla um universo mais amplo que apenas seus mundos particulares. Como escritoras, criam uma fala de si que se volta para o outro e também para a escritura, dialogando com a sociedade e com a tradição literária brasileira.
Da favela, Carolina Maria de Jesus fala de si
Negra, pobre, favelada, catadora de papel e outros materiais recicláveis, mãe de três filhos, criando-os sozinha, a escritora Carolina Maria de Jesus viveu em condições que poderiam tê-la levado a sucumbir às forças opressoras que faziam dela e de outros na mesma condição, não pessoas, não cidadãos, indivíduos desimportantes para a sociedade brasileira de meados do século passado. Em 1958, seu destino começa a mudar, com o impacto da publicação de reportagens sobre seus escritos, seguidas, em 1960, da publicação de Quarto de despejo: diário de uma favelada. Escritora por vocação, ela buscou representar sua vida e trabalho na hoje extinta favela paulista do Canindé por meio da palavra escrita. Escrevia ininterruptamente e até mesmo quando a fome, o cansaço, a miséria teimavam em impedi-la. De discurso individualizado, restrito, os escritos passaram a ter status de diálogo com o social.
O livro Quarto de despejo, um diário, é um entre a numerosa produção de Carolina Maria de Jesus; e hoje, traduzido em pelo menos 13 idiomas e vendido em mais de 40 países, serve como referencial do identitário nacional. Quando foi “descoberta” por Audálio Dantas, a escritora contava com mais de 20 cadernos manuscritos e cuidadosamente armazenados, à espera de um golpe de sorte que pudesse tirá-la, e seus filhos, da miséria e obscuridade, mas principalmente libertar a fala de si que recheava aquelas páginas encardidas.
Carolina usa o diário como espaço de confissão e na condição de objeto da esperança. Ela acredita que escreve para alguém especial, um interlocutor ideal. A esse leitor imaginário, ela reserva a tarefa de ser também o seu redentor. Alguém com poderes especiais para alçá-la da miséria e da dor em situação de silêncio absoluto. O diário é para ela o objeto que lhe garante continuar seu percurso sem desistir da luta, como relata ter sido tentada a fazer em diversas ocasiões. Assim como seus filhos, por quem vive e trabalha sem se entregar ao desespero, seus escritos têm a função de ancorá-la à dolorosa realidade e de lhe garantir a coragem para permanecer na lida, no diálogo constante com a adversidade.
A escrita de si é elemento emancipador para as angústias pessoais, ao mesmo tempo em que se traduz em texto de denúncia das mazelas que a atingem e aos que estão em semelhantes condições. Seu discurso contextualiza sua fala e pereniza sua condição, sua história, sua luta, por meio de um recorte peculiar do que pode ser entendido como parte da sociedade brasileira onde esteve inserida. Seu discurso nega, portanto, a noção de que a fala de si acaba por negligenciar as “forças sociais impessoais”, ideia difundida pelo crítico russo Dmitry Pisarev (apud HOLQUIST, 2010, p. 40).
Ao falar de si, Carolina Maria de Jesus debruça-se sobre o sofrimento do outro, ao lado de quem ela opta por ficar do ponto de vista político, como escreve em diversas passagens. No relato em 22 de maio de 1958, olha para fora de si e encontra o outro, em situação de miséria que, assim como ela, sofre por causa dos descaminhos da política social instituída no Brasil:
(...) Eu sei que existe brasileiros aqui dentro de São Paulo que sofre mais do que eu. (...) Para não ver os meus filhos passar fome fui pedir auxilio ao propalado Serviço Social. Foi lá que eu vi as lagrimas deslisar dos olhos dos pobres. Como é pungente ver os dramas que ali se desenrola. A ironia com que são tratados os pobres (...). (JESUS, 2004, p. 37)[1].
Carolina não se priva da autocrítica e da crítica ao social que a circunda. Lúcida e curiosamente analisa, no dia 21 de maio de 1958, o Brasil do seu tempo e conclui que
(...) Quem deve dirigir é quem tem a capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso pais é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcadores (JESUS, 2004, p. 35).
A escrita de si é a fala da denúncia, do grito de indignação, do pedido de socorro, buscando se libertar do universo da dor, da miséria e do sofrimento, mas principalmente do silêncio.
Carolina descreve-se como leitora voraz e refere-se à leitura como forma de enobrecimento, como caminho para o desenvolvimento intelectual, ou como entretenimento. A literatura é referenciada em cerca de catorze passagens, incluindo o registro de poemas escritos por Carolina e a citação de escritores, como Casemiro de Abreu. A própria descrição de sua rotina é feita, em várias passagens, de forma poética, como no dia 13 de maio de 1958: “A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido (...)” (JESUS, 2004, p. 28).
Registros como “passei a tarde escrevendo” (JESUS, 2004, p. 22); “nunca vi uma preta gostar tanto de livros quanto você” (id., p. 23); “eu estava inspirada e os versos eram bonitos” (id., p. 26), mostram que de um lado está o gosto pela escrita e a leitura de vários gêneros literários, de outro a necessidade de sobreviver à fome. Em tempos fáceis e difíceis, ela relata que o mais importante é escrever.
E tamanha importância tem a escrita também para Maura Lopes Cançado.
Do hospício, a escrita de si em Maura Lopes Cançado
Branca, rica, jornalista, herdeira de terras e filha predileta do pai fazendeiro, Maura Lopes Cançado é autora de Hospício é Deus, publicado em 1965. Escrito em forma de diário, a obra cobre o período de 25 de outubro de 1959 a 7 de março de 1960. A narradora-personagem encontra-se na condição de interna no Gustavo Riedel, hospital psiquiátrico situado no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Até o momento da narração, é a terceira vez que ela se interna nesse tipo de instituição, agora a seu pedido e com conivência do médico.
Ainda que o diário seja autobiográfico, isso não contraria a afirmação de que o eu do discurso constitui uma ficcionalização do eu da escritora, isto é, a autora cria a personagem Maura Lopes Cançado. Além da radiografia do sistema psiquiátrico que é possível fazer a partir da visão da narradora-internada, o diário reconstitui a trajetória de uma carreira de doente mental, nos termos do antropólogo social Erving Goffman (2018), registrando a dor da solidão, da culpa, da vergonha, do abandono e do medo, presentes na experiência solitária e singular da loucura.
Uma vez adaptada ao cotidiano do hospício, a autora ergue-se firme em seu propósito de denunciar a realidade miserável de uma categoria excluída de todos os processos e dinâmicas sociais, e o faz tanto na descrição subjetiva de suas angústias inerentes ao dia a dia no espaço asilar quanto na história de vida e na fala de tantas personagens ali esquecidas. Ao expor seu desconforto no mundo trágico da reclusão, a narradora infere que a condição de louco e o fantasma da loucura prometem o grau máximo de marginalização social. Isso porque a loucura pode atingir o ser humano naquilo em que, a princípio, todos são de fato iguais – o juízo, o pensamento, a razão – e arrastá-los à perda de si mesmos.
Em toda a narrativa persiste o diálogo entre sua condição de escritora, o contexto em que se formou e viveu, e a realidade do sistema psiquiátrico. Conforme registra, o hospício, até mesmo pelo seu aspecto físico, é um espaço que segrega a miséria e pobreza da maior parte da população brasileira acometida de transtornos psíquicos, mas funciona também como um espelho da sociedade, no qual se podem mirar representantes das distintas classes sociais, igualados pela insanidade:
Dificilmente alguma família está em condições de manter, por muitos anos, um doente internado em sanatórios dêsse tipo. Daí encontrarmos pessoas de alto nível social, cultural, até artístico, em meio a indigentes para os quais o hospital oferece confôrto nunca antes experimentado (CANÇADO, 1965, p. 71).
A escrita tem papel crucial nessa jornada de autoconhecimento, traduzindo-se como uma bem-sucedida experiência literária de enfrentamento da angústia e depressão. Posicionando-se no espaço do hospício e como interna, mas sobretudo como alguém que deseja explorar o tema e suas diferentes implicações, converte as páginas do diário em um espaço de discussão sobre o fenômeno da loucura, problematizando os vários sentidos do conceito, seus aspectos filosóficos e culturais e a hierarquização segundo o estado de arruinamento psíquico.
Assim como Carolina, Maura se reafirma como escritora que precisa cuidar de sua literatura e que conhece a força literária de sua escrita. Formula conceitos sobre estética, moral, ética, e registra suas reflexões acerca da criação e da crítica literária, de obras e autores consagrados. Invoca fatos literários e artísticos da época. Nomes da literatura brasileira, como Assis Brasil, Ferreira Gullar, Maria Alice Barroso e outros participantes do movimento literário concretista, tornam-se personagens de sua narrativa, registrando seu convívio intenso com o mundo literário. E o diário é o espaço sagrado de que precisa cuidar: “meu diário é o que há de mais importante para mim. Levanto-me da cama para escrever a qualquer hora, escrevo páginas e páginas – depois rasgo mais da metade (...)” (CANÇADO, 1965, p. 260).
O trabalho com a palavra impõe-se como uma exigência interior, de modo que sua maior luta consiste em equilibrar esse movimento ao mesmo tempo de entrega – “Meu conto ‘O Sofredor do Ver’ está me custando. (...) É o conto que mais tem exigido de mim. Considero-o muito cerebral. Talvez seja minha obra prima” (CANÇADO, 1965, p. 86-87) – e de resistência –“Até quando seria escritora em potencial? Até quando, se não escrevo? Apenas um futuro me acenando brilhante? (...) Esta consciência me mata. Não quero nada, não desejo nada” (id., p. 260).
Maura admite sua contumácia em falar de si própria; e sua escrita se volta obsessivamente para o eu. Mas mesmo que se afirme como egocêntrica, megalomaníaca e doente do eu, ela se trai ao verbalizar o desejo de homenagear cada interna com um conto, desde que isso pudesse melhorar um pouco a condição de cada uma, como o fez com Alda, no seu Introdução a Alda, o qual despertou a atenção de todos para o drama da colega. Sua consciência da condição de escritora emerge nessa autodeterminação de escrever por aqueles que não escrevem, falar pelos que não falam, enfim, tentar reconstituir um pouco daquela realidade que, pensa ela, “só o cinema será capaz de mostrar” (CANÇADO, 1965, p. 275).
A importância das obras de Carolina Maria de Jesus e Maura Lopes Cançado não se restringe ao seu valor estético e literário. Revestem-se de sentido político, pois extrapolaram o espaço da subjetividade e atingiram o campo da cultura, auxiliando o leitor na compreensão de si mesmo e de sua sociedade. No diálogo com a tradição literária brasileira, essas obras vieram causar um estranhamento que acabaram por abrir espaço não só para as suas falas, mas para outras vozes que, da mesma forma, estavam e permaneceriam silentes.
Carolina e Maura falam na condição de personagens de si mesmas, vivendo e construindo suas narrativas-limites, mas sobretudo sabem da força de sua escrita e arriscam-se a afirmar o valor da narrativa e seu poder transformador, buscando sua emancipação dos sistemas coercitivos que as mantinham prisioneiras da miséria e da loucura, respectivamente. No entanto, ao falarem de si, impulsionadas pelo desejo de gritar suas dores ao mundo, elas se debruçam sobre o sofrimento do outro. Conscientes de seu papel, de sua opção e responsabilidade como escritoras, reconhecem que essa sua condição exige que deem conta, em um âmbito mais amplo, do sofrimento humano, dos meandros e dinâmicas de funcionamento da vida nos limites, dos arredores da favela e dos muros do hospício.



REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1965.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 9. ed. Trad. de Dante Moreira Leite. São Paulo: Perspectiva, 2018.
HOLQUIST, Michael. Dialogismo e estética. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor (Orgs.). Mikhail Bakhtin: linguagem, cultura e mídia. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8. ed. São Paulo: Ática, 2004.




[1] Assim como o jornalista e editor do livro QD, Audálio Dantas, optamos por manter o texto fiel à sua escrita original, embora essa seja ainda uma questão que suscita posicionamentos contrários dentro e fora da academia.