3 de agosto de 2019

Na favela e no hospício: a escrita de si em Carolina Maria de Jesus e Maura Lopes Cançado

Gislene Maria Barral Lima Felipe da Silva
Mônica Horta Azeredo


Uma fachada para Mondrian, de Devair Antônio Fiorotti

Em seus textos autobiográficos, as escritoras Carolina Maria de Jesus e Maura Lopes Cançado buscavam, ao falar de si, alcançar a comunicação com o Outro. Suas escritas situam-se, assim, como espaço de interação entre interlocutores, o que é, segundo postula o filósofo Mikhail Bakhtin (1997), o princípio fundador da linguagem.
Um diálogo entre as produções dessas duas autoras justifica-se pelos aspectos éticos e estéticos em comum de suas obras e contextos de vida. Suas palavras circulam em dispositivos de poder e fazem falar uma parcela da sociedade, de uma classe social, de um grupo de indivíduos que, de outro modo, não teriam reconhecida sua existência teimosa e lírica frente aos cânones literários, por vezes tão impermeáveis e surdos.
A escrita de si nas duas autoras, a despeito das acusações de egocêntricas e egoístas, contempla um universo mais amplo que apenas seus mundos particulares. Como escritoras, criam uma fala de si que se volta para o outro e também para a escritura, dialogando com a sociedade e com a tradição literária brasileira.
Da favela, Carolina Maria de Jesus fala de si
Negra, pobre, favelada, catadora de papel e outros materiais recicláveis, mãe de três filhos, criando-os sozinha, a escritora Carolina Maria de Jesus viveu em condições que poderiam tê-la levado a sucumbir às forças opressoras que faziam dela e de outros na mesma condição, não pessoas, não cidadãos, indivíduos desimportantes para a sociedade brasileira de meados do século passado. Em 1958, seu destino começa a mudar, com o impacto da publicação de reportagens sobre seus escritos, seguidas, em 1960, da publicação de Quarto de despejo: diário de uma favelada. Escritora por vocação, ela buscou representar sua vida e trabalho na hoje extinta favela paulista do Canindé por meio da palavra escrita. Escrevia ininterruptamente e até mesmo quando a fome, o cansaço, a miséria teimavam em impedi-la. De discurso individualizado, restrito, os escritos passaram a ter status de diálogo com o social.
O livro Quarto de despejo, um diário, é um entre a numerosa produção de Carolina Maria de Jesus; e hoje, traduzido em pelo menos 13 idiomas e vendido em mais de 40 países, serve como referencial do identitário nacional. Quando foi “descoberta” por Audálio Dantas, a escritora contava com mais de 20 cadernos manuscritos e cuidadosamente armazenados, à espera de um golpe de sorte que pudesse tirá-la, e seus filhos, da miséria e obscuridade, mas principalmente libertar a fala de si que recheava aquelas páginas encardidas.
Carolina usa o diário como espaço de confissão e na condição de objeto da esperança. Ela acredita que escreve para alguém especial, um interlocutor ideal. A esse leitor imaginário, ela reserva a tarefa de ser também o seu redentor. Alguém com poderes especiais para alçá-la da miséria e da dor em situação de silêncio absoluto. O diário é para ela o objeto que lhe garante continuar seu percurso sem desistir da luta, como relata ter sido tentada a fazer em diversas ocasiões. Assim como seus filhos, por quem vive e trabalha sem se entregar ao desespero, seus escritos têm a função de ancorá-la à dolorosa realidade e de lhe garantir a coragem para permanecer na lida, no diálogo constante com a adversidade.
A escrita de si é elemento emancipador para as angústias pessoais, ao mesmo tempo em que se traduz em texto de denúncia das mazelas que a atingem e aos que estão em semelhantes condições. Seu discurso contextualiza sua fala e pereniza sua condição, sua história, sua luta, por meio de um recorte peculiar do que pode ser entendido como parte da sociedade brasileira onde esteve inserida. Seu discurso nega, portanto, a noção de que a fala de si acaba por negligenciar as “forças sociais impessoais”, ideia difundida pelo crítico russo Dmitry Pisarev (apud HOLQUIST, 2010, p. 40).
Ao falar de si, Carolina Maria de Jesus debruça-se sobre o sofrimento do outro, ao lado de quem ela opta por ficar do ponto de vista político, como escreve em diversas passagens. No relato em 22 de maio de 1958, olha para fora de si e encontra o outro, em situação de miséria que, assim como ela, sofre por causa dos descaminhos da política social instituída no Brasil:
(...) Eu sei que existe brasileiros aqui dentro de São Paulo que sofre mais do que eu. (...) Para não ver os meus filhos passar fome fui pedir auxilio ao propalado Serviço Social. Foi lá que eu vi as lagrimas deslisar dos olhos dos pobres. Como é pungente ver os dramas que ali se desenrola. A ironia com que são tratados os pobres (...). (JESUS, 2004, p. 37)[1].
Carolina não se priva da autocrítica e da crítica ao social que a circunda. Lúcida e curiosamente analisa, no dia 21 de maio de 1958, o Brasil do seu tempo e conclui que
(...) Quem deve dirigir é quem tem a capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso pais é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcadores (JESUS, 2004, p. 35).
A escrita de si é a fala da denúncia, do grito de indignação, do pedido de socorro, buscando se libertar do universo da dor, da miséria e do sofrimento, mas principalmente do silêncio.
Carolina descreve-se como leitora voraz e refere-se à leitura como forma de enobrecimento, como caminho para o desenvolvimento intelectual, ou como entretenimento. A literatura é referenciada em cerca de catorze passagens, incluindo o registro de poemas escritos por Carolina e a citação de escritores, como Casemiro de Abreu. A própria descrição de sua rotina é feita, em várias passagens, de forma poética, como no dia 13 de maio de 1958: “A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido (...)” (JESUS, 2004, p. 28).
Registros como “passei a tarde escrevendo” (JESUS, 2004, p. 22); “nunca vi uma preta gostar tanto de livros quanto você” (id., p. 23); “eu estava inspirada e os versos eram bonitos” (id., p. 26), mostram que de um lado está o gosto pela escrita e a leitura de vários gêneros literários, de outro a necessidade de sobreviver à fome. Em tempos fáceis e difíceis, ela relata que o mais importante é escrever.
E tamanha importância tem a escrita também para Maura Lopes Cançado.
Do hospício, a escrita de si em Maura Lopes Cançado
Branca, rica, jornalista, herdeira de terras e filha predileta do pai fazendeiro, Maura Lopes Cançado é autora de Hospício é Deus, publicado em 1965. Escrito em forma de diário, a obra cobre o período de 25 de outubro de 1959 a 7 de março de 1960. A narradora-personagem encontra-se na condição de interna no Gustavo Riedel, hospital psiquiátrico situado no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Até o momento da narração, é a terceira vez que ela se interna nesse tipo de instituição, agora a seu pedido e com conivência do médico.
Ainda que o diário seja autobiográfico, isso não contraria a afirmação de que o eu do discurso constitui uma ficcionalização do eu da escritora, isto é, a autora cria a personagem Maura Lopes Cançado. Além da radiografia do sistema psiquiátrico que é possível fazer a partir da visão da narradora-internada, o diário reconstitui a trajetória de uma carreira de doente mental, nos termos do antropólogo social Erving Goffman (2018), registrando a dor da solidão, da culpa, da vergonha, do abandono e do medo, presentes na experiência solitária e singular da loucura.
Uma vez adaptada ao cotidiano do hospício, a autora ergue-se firme em seu propósito de denunciar a realidade miserável de uma categoria excluída de todos os processos e dinâmicas sociais, e o faz tanto na descrição subjetiva de suas angústias inerentes ao dia a dia no espaço asilar quanto na história de vida e na fala de tantas personagens ali esquecidas. Ao expor seu desconforto no mundo trágico da reclusão, a narradora infere que a condição de louco e o fantasma da loucura prometem o grau máximo de marginalização social. Isso porque a loucura pode atingir o ser humano naquilo em que, a princípio, todos são de fato iguais – o juízo, o pensamento, a razão – e arrastá-los à perda de si mesmos.
Em toda a narrativa persiste o diálogo entre sua condição de escritora, o contexto em que se formou e viveu, e a realidade do sistema psiquiátrico. Conforme registra, o hospício, até mesmo pelo seu aspecto físico, é um espaço que segrega a miséria e pobreza da maior parte da população brasileira acometida de transtornos psíquicos, mas funciona também como um espelho da sociedade, no qual se podem mirar representantes das distintas classes sociais, igualados pela insanidade:
Dificilmente alguma família está em condições de manter, por muitos anos, um doente internado em sanatórios dêsse tipo. Daí encontrarmos pessoas de alto nível social, cultural, até artístico, em meio a indigentes para os quais o hospital oferece confôrto nunca antes experimentado (CANÇADO, 1965, p. 71).
A escrita tem papel crucial nessa jornada de autoconhecimento, traduzindo-se como uma bem-sucedida experiência literária de enfrentamento da angústia e depressão. Posicionando-se no espaço do hospício e como interna, mas sobretudo como alguém que deseja explorar o tema e suas diferentes implicações, converte as páginas do diário em um espaço de discussão sobre o fenômeno da loucura, problematizando os vários sentidos do conceito, seus aspectos filosóficos e culturais e a hierarquização segundo o estado de arruinamento psíquico.
Assim como Carolina, Maura se reafirma como escritora que precisa cuidar de sua literatura e que conhece a força literária de sua escrita. Formula conceitos sobre estética, moral, ética, e registra suas reflexões acerca da criação e da crítica literária, de obras e autores consagrados. Invoca fatos literários e artísticos da época. Nomes da literatura brasileira, como Assis Brasil, Ferreira Gullar, Maria Alice Barroso e outros participantes do movimento literário concretista, tornam-se personagens de sua narrativa, registrando seu convívio intenso com o mundo literário. E o diário é o espaço sagrado de que precisa cuidar: “meu diário é o que há de mais importante para mim. Levanto-me da cama para escrever a qualquer hora, escrevo páginas e páginas – depois rasgo mais da metade (...)” (CANÇADO, 1965, p. 260).
O trabalho com a palavra impõe-se como uma exigência interior, de modo que sua maior luta consiste em equilibrar esse movimento ao mesmo tempo de entrega – “Meu conto ‘O Sofredor do Ver’ está me custando. (...) É o conto que mais tem exigido de mim. Considero-o muito cerebral. Talvez seja minha obra prima” (CANÇADO, 1965, p. 86-87) – e de resistência –“Até quando seria escritora em potencial? Até quando, se não escrevo? Apenas um futuro me acenando brilhante? (...) Esta consciência me mata. Não quero nada, não desejo nada” (id., p. 260).
Maura admite sua contumácia em falar de si própria; e sua escrita se volta obsessivamente para o eu. Mas mesmo que se afirme como egocêntrica, megalomaníaca e doente do eu, ela se trai ao verbalizar o desejo de homenagear cada interna com um conto, desde que isso pudesse melhorar um pouco a condição de cada uma, como o fez com Alda, no seu Introdução a Alda, o qual despertou a atenção de todos para o drama da colega. Sua consciência da condição de escritora emerge nessa autodeterminação de escrever por aqueles que não escrevem, falar pelos que não falam, enfim, tentar reconstituir um pouco daquela realidade que, pensa ela, “só o cinema será capaz de mostrar” (CANÇADO, 1965, p. 275).
A importância das obras de Carolina Maria de Jesus e Maura Lopes Cançado não se restringe ao seu valor estético e literário. Revestem-se de sentido político, pois extrapolaram o espaço da subjetividade e atingiram o campo da cultura, auxiliando o leitor na compreensão de si mesmo e de sua sociedade. No diálogo com a tradição literária brasileira, essas obras vieram causar um estranhamento que acabaram por abrir espaço não só para as suas falas, mas para outras vozes que, da mesma forma, estavam e permaneceriam silentes.
Carolina e Maura falam na condição de personagens de si mesmas, vivendo e construindo suas narrativas-limites, mas sobretudo sabem da força de sua escrita e arriscam-se a afirmar o valor da narrativa e seu poder transformador, buscando sua emancipação dos sistemas coercitivos que as mantinham prisioneiras da miséria e da loucura, respectivamente. No entanto, ao falarem de si, impulsionadas pelo desejo de gritar suas dores ao mundo, elas se debruçam sobre o sofrimento do outro. Conscientes de seu papel, de sua opção e responsabilidade como escritoras, reconhecem que essa sua condição exige que deem conta, em um âmbito mais amplo, do sofrimento humano, dos meandros e dinâmicas de funcionamento da vida nos limites, dos arredores da favela e dos muros do hospício.



REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1965.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 9. ed. Trad. de Dante Moreira Leite. São Paulo: Perspectiva, 2018.
HOLQUIST, Michael. Dialogismo e estética. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor (Orgs.). Mikhail Bakhtin: linguagem, cultura e mídia. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8. ed. São Paulo: Ática, 2004.




[1] Assim como o jornalista e editor do livro QD, Audálio Dantas, optamos por manter o texto fiel à sua escrita original, embora essa seja ainda uma questão que suscita posicionamentos contrários dentro e fora da academia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.