Lucía Tennina
Universidade de Buenos Aires
Imagem: Dragan Bibin |
Paralelamente
ao trabalho de cientistas e epidemiologistas para encontrar uma vacina que
acabe com o coronavírus, o confinamento global agitou teclados, agendas e
projetos para pensar em horizontes possíveis e desejáveis após o término da
pandemia. O futuro nos envolve com uma incerteza que não apenas nos enche de
esperanças de uma mudança global em termos sociais e climáticos, mas também nos
assusta com novas catástrofes e realidades distópicas ou nos preocupa, ao pensarmos
que tudo voltará ao que era antes.
Mas o que
acontece portas adentro, na vida diária mais íntima?
Tomando
como ponto de partida meu lugar de enunciação como mulher branca em um mundo
ainda patriarcal, de classe média, professora universitária, pesquisadora, mãe
de duas filhas muito pequenas, me ocorre pensar que esse nós do qual faço parte
está imerso em um cotidiano permanente, em um dia a dia que se repete e que vai
acumulando os hábitos uns sobre os outros, embora sem deixar de ser um
diferente do outro. Cercada por brinquedos, diálogos imaginários com bonecas,
role-playing onde às vezes eu sou um bebê, outros eu sou o lobo, montanhas de
louças, roupas sujas para lavar ou limpas para pendurar, compras de
supermercado para desinfetar, trabalho pendente para resolver, contas a pagar. Ruídos
de água corrente, aspirador funcionando, telefone tocando, aquecimento por
microondas. Gritos, choros, TV ao fundo, silêncios, diálogos. Tudo dentro de
casa. E, enquanto isso, o calendário avança.
É possível
falar sobre o futuro neste modo de vida? Prefiro dizer que estamos vivendo um
presente que não dá lugar ao futuro. E também não sei se é possível falar do
presente, mas de uma interioridade cheia de instantes intangíveis à primeira
vista e que estão por trás do pensamento em uma dimensão, ainda, de tentar
entender. Seria, de acordo com Clarice Lispector, um instante – já tão difícil
de definir, porque é algo como uma quarta dimensão, trata-se do desconhecido
dos instantes sempre iguais. Mas não igualitários. Porque essa conjuntura de
uma pandemia mundial colocou sobre a mesa que nem todo mundo tem o direito de
dimensionar seus instantes e que, para esses, os instantes se tornam urgências
que gritam racismos, que gritam abandono e revelam que as mortes que estão
acontecendo não são apenas tragédias, mas também assassinatos e que o futuro
faz tempo que é impensável.
As
perguntas que surgem, então, são: Que responsabilidade nos cabe, a nós que nos
dedicamos à pesquisa básica, nestes momentos? Como devemos administrar os
instantes para pensar em nosso cotidiano não apenas como repetição, mas como
momentos de criação e agência? Que posição devemos tomar em relação às
urgências que anulam o direito aos instantes?
Nestes
dias estive lendo uma poeta chamada Marília Garcia e em um de seus poemas, do
livro Parque das ruínas, ela menciona um termo de Georges Perec: o
infraordinário. Marília diz:
“o que se passa todos
os dias e que volta todos os dias
o banal o cotidiano o óbvio o comum o
ordinário
o infraordinário
o barulho de fundo o hábito
— como perceber todas essas coisas?
como abordar e descrever aquilo que de
fato
preenche a nossa vida?”
Parece-me
que esse fragmento define muito bem o que, acredito, nos cabe como intelectuais
nesse momento de confinamento. Quanto podemos pensar no futuro nessas
circunstâncias que não deixam de ser privilegiadas? E o que resta do presente?
Mais do que pensar no futuro ou no presente, acho que hoje seríamos forçados a
pensar, antes, no todos os dias, pensar essas novas coordenadas de
representação de nossos hábitos através do infraordinário, entendendo esse tipo
de reflexão como política no sentido rancieriano de elaboração de uma
sensibilidade do anônimo, do ainda não nomeado. Paradoxalmente, nesses tempos
em que o distanciamento é a regra, a saída estaria em se debruçar com uma lupa
sobre a potência do nosso cotidiano. E, como contrapartida, em assumir a
desigualdade dessas reflexões, levando em conta que existe outro tipo de anonimato,
o de grupos sociais historicamente marginalizados e abandonados, sufocados (literalmente) mais do que nunca neste momento, que não têm direito a esta
repetição e que nos obrigam a replicar não apenas o "ruído de fundo do
hábito", mas também os slogans dos protestos que essas violências reacendem.