27 de junho de 2020

Por uma gestão do infraordinário


Lucía Tennina
Universidade de Buenos Aires

Imagem: Dragan Bibin



Paralelamente ao trabalho de cientistas e epidemiologistas para encontrar uma vacina que acabe com o coronavírus, o confinamento global agitou teclados, agendas e projetos para pensar em horizontes possíveis e desejáveis ​​após o término da pandemia. O futuro nos envolve com uma incerteza que não apenas nos enche de esperanças de uma mudança global em termos sociais e climáticos, mas também nos assusta com novas catástrofes e realidades distópicas ou nos preocupa, ao pensarmos que tudo voltará ao que era antes.

Mas o que acontece portas adentro, na vida diária mais íntima?
Tomando como ponto de partida meu lugar de enunciação como mulher branca em um mundo ainda patriarcal, de classe média, professora universitária, pesquisadora, mãe de duas filhas muito pequenas, me ocorre pensar que esse nós do qual faço parte está imerso em um cotidiano permanente, em um dia a dia que se repete e que vai acumulando os hábitos uns sobre os outros, embora sem deixar de ser um diferente do outro. Cercada por brinquedos, diálogos imaginários com bonecas, role-playing onde às vezes eu sou um bebê, outros eu sou o lobo, montanhas de louças, roupas sujas para lavar ou limpas para pendurar, compras de supermercado para desinfetar, trabalho pendente para resolver, contas a pagar. Ruídos de água corrente, aspirador funcionando, telefone tocando, aquecimento por microondas. Gritos, choros, TV ao fundo, silêncios, diálogos. Tudo dentro de casa. E, enquanto isso, o calendário avança.
É possível falar sobre o futuro neste modo de vida? Prefiro dizer que estamos vivendo um presente que não dá lugar ao futuro. E também não sei se é possível falar do presente, mas de uma interioridade cheia de instantes intangíveis à primeira vista e que estão por trás do pensamento em uma dimensão, ainda, de tentar entender. Seria, de acordo com Clarice Lispector, um instante – já tão difícil de definir, porque é algo como uma quarta dimensão, trata-se do desconhecido dos instantes sempre iguais. Mas não igualitários. Porque essa conjuntura de uma pandemia mundial colocou sobre a mesa que nem todo mundo tem o direito de dimensionar seus instantes e que, para esses, os instantes se tornam urgências que gritam racismos, que gritam abandono e revelam que as mortes que estão acontecendo não são apenas tragédias, mas também assassinatos e que o futuro faz tempo que é impensável.
As perguntas que surgem, então, são: Que responsabilidade nos cabe, a nós que nos dedicamos à pesquisa básica, nestes momentos? Como devemos administrar os instantes para pensar em nosso cotidiano não apenas como repetição, mas como momentos de criação e agência? Que posição devemos tomar em relação às urgências que anulam o direito aos instantes?
Nestes dias estive lendo uma poeta chamada Marília Garcia e em um de seus poemas, do livro Parque das ruínas, ela menciona um termo de Georges Perec: o infraordinário. Marília diz:

            “o que se passa todos os dias e que volta todos os dias
o banal o cotidiano o óbvio o comum o ordinário
o infraordinário
o barulho de fundo o hábito
— como perceber todas essas coisas?          
como abordar e descrever aquilo que de fato
preenche a nossa vida?”

Parece-me que esse fragmento define muito bem o que, acredito, nos cabe como intelectuais nesse momento de confinamento. Quanto podemos pensar no futuro nessas circunstâncias que não deixam de ser privilegiadas? E o que resta do presente? Mais do que pensar no futuro ou no presente, acho que hoje seríamos forçados a pensar, antes, no todos os dias, pensar essas novas coordenadas de representação de nossos hábitos através do infraordinário, entendendo esse tipo de reflexão como política no sentido rancieriano de elaboração de uma sensibilidade do anônimo, do ainda não nomeado. Paradoxalmente, nesses tempos em que o distanciamento é a regra, a saída estaria em se debruçar com uma lupa sobre a potência do nosso cotidiano. E, como contrapartida, em assumir a desigualdade dessas reflexões, levando em conta que existe outro tipo de anonimato, o de grupos sociais historicamente marginalizados e abandonados, sufocados (literalmente) mais do que nunca neste momento, que não têm direito a esta repetição e que nos obrigam a replicar não apenas o "ruído de fundo do hábito", mas também os slogans dos protestos que essas violências reacendem.