2 de dezembro de 2017

Da produção tardia de Lygia Fagundes Telles

Vanessa Maranha


Lygia Fagundes Telles



Com uma carreira vasta, pontuada por uma produção admirável e com a rara qualidade de ser quase unanimemente reconhecida por público e crítica, dois livros da produção mais tardia de Lygia Fagundes Telles e que passaram quase desapercebidos, tal a magnitude de sua obra pregressa, merecem destaque: A noite escura e mais eu e Conspiração de nuvens.
Em A noite escura e mais eu, belo livro de contos de 1995, reeditado pela Companhia das Letras em 2009, tem-se quase uma síntese estilística de sua obra: estão ali o fantástico, a crueldade humana, o narrador insólito (em “O crachá nos dentes”, a autora apresenta um conto sob o ponto de vista de um cão narrador e, em “Anão de Jardim”, a estátua de pedra é quem conduz a trama).
“Uma branca sombra pálida”, que evoca a canção “Whiter Shade of Pale”, de Credence Clearwater, é das narrativas mais geniais de todo o seu acervo de contos, revisitando seus temas íntimos: a tocar no suicídio de uma jovem, na ambiguidade sexual; uma mãe que é quase o desdobramento descritivo da pulsão de morte freudiana.
Nesse conto, a autora tangencia a loucura trabalhando com maestria a caracterização psicológica a partir das ações e pensamentos das personagens. Com Conspiração de nuvens, Lygia fecha o ciclo memorialístico iniciado em 1980 com A disciplina do amor; retomado em 2000, no volume Invenção e memória e continuado em 2002, com Durante aquele estranho chá.
Conspiração de nuvens, nesse arremate, segue a linha de engajamento pela escrita límpida e inconfundível de Lygia e permite a ficcionalização das memórias, demonstrando a tênue fronteira a separar (ou não) a ficção da realidade, na ideia heideggeriana que indica ser a arte o “pôr-se em obra da verdade”.
Esse o ponto mais impactante de toda a escrita de Lygia Fagundes Telles: adensar-se em busca de alguma “verdade” sem aferrar-se a nenhum sistema rígido de verdades. Se a ideia de “clássico” baseia também o estatuto de autores que conseguem ser plurais mantendo sua identidade literária mesmo quando se debruçam sobre suas lembranças pessoais, Lygia é, sem dúvida, um clássico.
O livro agrega dezenove crônicas bem alinhavadas de lembranças sem ordenação cronológica, no mote explicitado pela própria escritora: “a memória enleada de invenção”. Em “A quermesse”, ela faz uma viagem de volta à infância repleta de imagens, perguntas e temores, confirmando a tese de Santo Agostinho, que dizia ser a memória a casa da alma.
No livro, a autora não se furta às reminiscências do amor por seu marido, já falecido, Paulo Emílio Salles Gomes, o crítico “de voz flamante” e que em pelo menos três crônicas será afetuosamente citado.
O texto “Conspiração de nuvens”, a emprestar o título para a antologia, narra a moção encabeçada em 1976 por Rubem Fonseca, ladeada por Nélida Piñon, entre outros, durante a fase mais sombria da ditadura militar no Brasil e denominada “O Manifesto dos Mil”, para se opor à censura que vinha mutilando indiscriminadamente obras literárias de grande valor, quando não as vetava e também contra os horrores que surdamente ecoavam dos porões do regime de exceção.
Lygia Fagundes Telles relembra ainda amigos caros como Décio de Almeida Prado e Érico Verissimo. Dedica páginas quase líricas a Machado de Assis e Álvares de Azevedo, amalgamando, na forma, o acento ensaístico ao da contística.
“Tunísia”, talvez o mais literário dos textos que escolheu para compor a obra, é também o mais sinestésico de todos e, por isso mesmo, leve como um cartão-postal: nele o leitor alucina cantos berberes, olhos núbios, perfume de jasmim, suks e tapeçarias magníficas.

Finalmente, num texto impecável, intitulado “O chamado”, a autora de Ciranda de pedra discorre sobre questões que julga relevantes para o seu êxito nas letras. A principal delas, a disciplina adquirida na prática de esportes, em especial, a esgrima. Sobre a vocação, escreveu: “obedecer à vocação seria simplesmente exercer o ofício da paixão, era o que me ocorria quando diante da pequena mesa abria o estojo com as canetas, escolhia a pena preferida, molhava no tinteiro e começava a escrever minhas histórias (...) Na vocação não está incluída a glória, tantas vocações verdadeiras e o silêncio, ninguém leu, ninguém viu”, avisa.

25 de novembro de 2017

Literatura e religiões de matriz africana

Bruna Santos


Imagem: Robson Khalaf



Lá fora, no céu dor de íris, um enorme angarô multicolorido se diluía lentamente, enquanto Ponciá Vicêncio, elo e herança de uma memória reencontrada pelos seus, não se perderia jamais, se guardaria nas águas do rio.
Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio


Falar sobre religião na literatura brasileira contemporânea nem sempre é fácil. Se pensarmos em religião ligada ao que aparece em romances, por exemplo, facilmente seremos guiados para representações de religiões cristãs. Mas, e a representação das religiões de matriz africana?
De acordo com estudo coordenado por Regina Dalcastagnè junto ao Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, sobre a representação dos personagens em romances publicados entre os anos de 1990-2004, “em relação à religião, observa-se que ela está mais presente nas representações das personagens indígenas e negras. Enquanto 62,5% dos orientais, 58,8% dos brancos e 47,4% dos mestiços não apresentam indícios de filiação religiosa, a proporção cai para 37,8% no caso dos negros e 33,3% no caso dos indígenas. Trata-se de efeito da forte vinculação destas personagens com, num caso, os cultos indígenas e, no outro, a umbanda e o candomblé. Entre os indígenas, 40% são indicados como praticantes de cultos tradicionais. E 26,5% das personagens negras aparecem como seguidores das religiões afro-brasileiras, isto é, mais de 70% dos fiéis destes cultos são negros”. Dessa forma, para que se fale sobre a ideia da representação literária das religiões de matriz africana não podemos deixar de lado o vínculo da religião à questão racial.
De acordo com os dados apresentados no censo do IBGE de 2000, 50,4% dos seguidores das religiões afro-brasileiras – umbanda e candomblé agrupados – se declaram brancos e apenas 18,2% de pretos. Ainda, os pardos são 29,8% e 0,3% de amarelos. É de se pensar porque a representação literária traz tão poucas personagens brancas ligadas a essas religiões, quando a realidade mostra uma outra composição racial.
Durante muito tempo as religiões de matrizes africanas foram (e talvez ainda sejam) consideradas como menores, são vistas como menos importantes e suas práticas foram e ainda são apontadas como coisas do demônio (terreiros são queimados, mães de santo são perseguidas, livros que tratam da religião são abolidos por pais intolerantes). Parte disso se liga ao pensamento preconceituoso de que o que veio com os negros escravizados, em oposição às religiões cristãs predominantes, é negativo, perigoso e sem valor para nossa sociedade.
 O fato das religiões de matrizes africanas terem suas tradições registradas de forma oral também contribuiu para esse pensamento. Como diz Reginaldo Prandi em Mitologia dos Orixás,             “até onde se tem notícia, data de 1928 o primeiro documento extenso escrito contendo os mitos da arte oracular, um caderno compilado por Agenor Miranda Rocha, membro letrado de um dos terreiros da Bahia, em que tradições divinatórias haviam sido preservadas à moda dos antigos babalaôs, mas esse documento somente foi trazido à luz mais de meio século depois de ter sido escrito”.
Assim, o fato de mais personagens negras serem ligados a religiões de matrizes africanas pode ser explicado pelo infeliz pensamento enraizado na nossa sociedade de que o que é “coisa de preto” não tem importância.
Entretanto, algumas obras literárias já trazem pontos de vista importantes e diferentes sobre essa situação. 
Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves é uma das obras que traz a religião e religiosidade como temas que se entrelaçam e dão vida à narrativa principal. O candomblé, catolicismo e islamismo são religiões que em seus desdobramentos são importantes para a personagem durante a narrativa.
O candomblé é a religião que se faz mais presente. Kehinde, ou Luisa, conta das tradições trazidas de África e de como as adaptações aconteceram na época do Brasil escravocrata para que os cultos e a fé do povo continuassem sendo exercidos, mesmo com toda violência que foi imposta aos escravizados.
No livro, o candomblé de Jeje é o mais explorado, embora em alguns momentos as raízes Ketu e Angola também sejam comentadas: "Mas eu e o Piripiri já podíamos conversar, e achei muito bonito o que ele me contou, pois os angolas sabem respeitar e louvar a natureza muito mais do que qualquer outro povo. Para eles, todas as folhas têm seu nome e seu nkisi (...). Os Nkisis, a quem as folhas são consagradas, têm nomes bonitos como Lemba, Dandalunda, Kaiaia, Kitembu, Matamba ou Mametus, e achei que alguns também se parecem muito com orixás ou voduns, como Pambu Njila (...) ou Kavungu”.
Os Nkisis são as divindades cultuadas no candomblé de Angola, assim como os Orixás no de Ketu e os Voduns em Jeje.
 Já em Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, a presença do Nkisi Angorô é retratada pela cobra e também se faz presente de forma paralela durante a narrativa através da superstição do arco-íris: “Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio. Recordou o medo que tivera durante toda sua infância. Diziam que menina que passasse por debaixo do arco-íris virava menino. Ela ia buscar o barro na beira do rio e lá estava a cobra celeste bebendo água”.  Em Diário de Bitita, de Carolina Maria de Jesus, o arco-íris também se faz presente na história.  Carolina não gosta de ser mulher e quer virar homem e sua mãe recomenda:  “Quando você ver o arco-íris, você passa por debaixo dele que você vira homem. ” E ainda, na fala de Carolina:  “eu pensava que deveria passar por debaixo do arco-íris para virar o homem correto para auxiliar os homens. ”
A princípio não há ligação direta dessa superstição com as religiões, mas basta uma pequena busca sobre a origem dela para que a ligação com o Orixá Oxumaré se estabeleça. Como mostra Ana Maria Gonçalves em seu romance, houve uma mistura dos cultos para que a religião resistisse.  Angorô se assemelha a Oxumaré. Então, em Um defeito de cor, encontra-se uma explicação sobre o arco-íris e a cobra: “Algumas pessoas acreditam que o arco-íris é uma serpente das profundezas que vai beber água no céu, mas a minha avó dizia que ele é Oxumaré, o que controla o bom tempo. Nos dias de sol, o orixá se transforma em arco-íris e sobe até o céu, levando água para o castelo de Xangô, que fica acima das nuvens. A chuva é a água que ele deixa respingar sobre a terra, porque as mãos estão sempre ocupadas, carregando duas serpentes de ferro. Oxumaré não é homem nem mulher, mas as duas coisas juntas. Durante seis meses ele vive como homem e mora perto das árvores e durante os outros seis é uma mulher muito bonita que vive nas matas e nas lagoas”.
Pode-se entender, por essa associação, o medo de Ponciá Vicêncio em passar por baixo do arco-íris e virar menino, e o desejo de Bitita em poder fazer o mesmo.

         É relevante, então, pontuar e fazer conhecer que algumas das crenças tidas como populares e presentes na sociedade atual têm ligação direta com as religiões de matriz africana e que com o passar dos anos as referências, de forma indireta ou mais direta estão, aos poucos, se fazendo mais presentes.  O volume de obras de autoria negra no Brasil vem crescendo em número e importância, assim como as religiões de matriz africana tem ganhado um número crescente de adeptos e publicações de obras não-literárias sobre essa religião tem ganhado um pouco mais de espaço nas prateleiras de livraria.  Dessa forma, é preciso que os pesquisadores e pesquisadoras percebam a necessidade de conhecer melhor a mitologia e cosmogonia africana, para que cada vez mais análises possam ser feitas e narrativas possam ser interpretadas.

18 de novembro de 2017

Fora do Plano: o espaço como forma de exclusão em narrativas brasileiras contemporâneas

                                             Anderson de Figueiredo Matias


Imagem: Adauto Cruz

A tristeza era grande. Olhava ao redor e só sentia a frieza das algemas. Quantas vezes fora preso por tráfico. Duas? Três? Não se recordava. Estava meio confuso com o que acabara de ouvir. Ainda mais porque fora dito por um policial. Eles só queriam bater, ferrar e matar a gente! (...) Mas a frase ficava se repetindo em sua mente. Às vezes como se fosse um sussurro. “Todos podemos mudar e melhorar. Por que com você seria diferente? Tente.” A voz era calma e ele não parecia querer me esfolar vivo.
(PAVIANI, 2015, p. 124)

          A epígrafe, parte do artigo “A geopolítica da violência urbana e o papel do Estado”, de Marília Steinberger e Ana Izabel Cardoso, publicado no livro Brasília: dimensões da violência urbana (2015), antecipa a dimensão do problema aqui apresentado. Trata-se do relato de um cidadão autuado em uma delegacia de Ceilândia, cidade distante 30 km de Brasília. De início, um aspecto chama a atenção: a atuação equilibrada, ética e respeitosa de um policial militar, que apresentaria um tratamento mais humanizado por aqueles que implementam ações do Estado de combate à violência e ao crime na periferia.
Mesmo sendo o Brasil, pelo menos no plano teórico, uma sociedade democrática e, portanto, inclusiva, atuações como essas não são uma regra. O que se vê ainda é a ação de um estado autoritário que distingue cidadãos com mais e menos poder e utiliza a estratégia de combate ao inimigo, principalmente nas regiões periféricas e contra populações pobres. Por essa razão, é preciso pensar as relações que se estabelecem entre espaço, violência e Estado, uma vez que a gênese da violência urbana é normalmente atribuída às desigualdades sociais materializadas na segregação espacial.
Outro artigo, publicado no mesmo livro, aborda justamente essas relações. Em “A violência e as condições degradantes do meio urbano”, Marta Adriana Bustos Romero analisa a periferização institucionalizada pelo Estado a partir da relação centro-periferia, usando como exemplo duas cidades de Brasília. De um lado, o Plano Piloto, com larga oferta de infraestrutura e serviços públicos. Do outro, Ceilândia, com poucos equipamentos públicos, sem lugares para o exercício de relações de convívio e com grande oferta de força de trabalho em um evidente processo de segregação urbana. Ainda segundo Romero, em relação à Ceilândia, “o tamanho, a disposição, a escassa diversidade, a falta de tratamento, a falta de definição dos espaços, a falta de identidade, a pobreza do vocabulário formal, etc. contribuem para a elaboração de um espaço que reforça as relações conflituosas do lugar”.

Nesse sentido, Ceilândia, que já nasce como uma ação de violência cometida pelo Estado, é um caso a respeito do qual se deve pensar. O próprio nome aponta para isso, pois deriva da sigla CEI (Campanha de Erradicação de Invasões), resultado de uma política de segregação cujo intuito real era preservar a pureza do Plano Piloto. Para isso, em 1970, mais de 80 mil moradores das favelas da Vila do IAPI, Vila Tenório, Vila Esperança, Vila Bernardo Sayão e Morro do Querosene foram removidos à revelia pelo governo para um local sem infraestrutura, com escassa acessibilidade.
De acordo com o discurso oficial, essas favelas eram uma quebra no padrão habitacional de Brasília. Daí a necessidade de transferi-las e, assim, oferecer condições melhores para a população carente. Além da promessa de aquisição da casa própria, que, embora em áreas distantes, seguiria os mesmos princípios de planejamento moderno, o Estado, para justificar a remoção, usou um argumento ideológico: os moradores deixariam a condição de invasores.
Entretanto, os benefícios anunciados por esse discurso desapareceram diante da violência na remoção das famílias e da precariedade dos novos assentamentos, a qual, de certa forma, é mantida até hoje. Para verificar essa afirmação, vale considerar dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD), publicada em 2015/2016, pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). Os resultados mostram que apenas 19,2% dos domicílios contam com ruas arborizadas, 4,8% com espaço cultural e 4,9% com jardins e parques. Além disso, essas condições podem ser associadas a outras, como condições bioclimáticas desfavoráveis, a difícil mobilidade e a dependência socioeconômica do Plano Piloto.
Nesse sentido, é preciso compreender como opera, nos espaços físicos e políticos da cidade, a segregação, que acaba marcada também por recortes de classe e raça. No caso de Ceilândia, o Estado utilizou o planejamento urbano com objetivo claro: silenciar, separar, isolar e confinar geograficamente elementos indesejados – no caso, os pobres – e manter esse grupo social em condição de subalternidade. Isso porque a configuração sociocultural desse espaço altera profundamente valores, resultando, muitas vezes, em violência empregada como recurso, como estratégia para afirmação de identidades socialmente negadas, oportunidade para compensar frustrações e raiva. Assim, ao mesmo tempo em que se produziu um território marginal, marcado por um modelo urbano pobre, passível de desintegração e deterioração, criou-se uma visão estigmatizada dessa população, sobre a qual a degradação própria do espaço se projeta.
Essa constatação, que também pode ser observada em outros lugares no Brasil,  remete-nos a questões interessantes para aqueles que, a partir de uma perspectiva crítica, desejam uma sociedade mais justa e menos excludente. Entre elas, está: como se pode garantir espaço para a expressão dos socialmente excluídos?
No centro do debate suscitado por essa questão está a reflexão acerca da função da arte e do seu potencial de humanização, a partir dos quais se pode romper a linha contínua, existente desde o fim do século XIX, entre um imaginário social eivado de preconceitos e as práticas excludentes. Isso porque em narrativas literárias a representação do espaço pode reconstruir a periferia como um lugar do qual personagens se apropriam a fim de ressignificar o sentido da degradação e da precariedade, sem perder de vista a abordagem crítica dos problemas sociais e a consciência da necessidade de superação desses problemas. Pode-se considerar, como exemplo dessa representação, duas narrativas: o filme A cidade é uma só?, de Adirley Queirós (2013), e o romance Becos da memória, de Conceição Evaristo (2006).
No filme, observa-se o contraste entre dois ambientes interdependentes, já que são faces de um mesmo acontecimento, tanto na realidade quanto na ficção. De um lado, Ceilândia, espontânea e caótica. De outro, o Plano Piloto, planejado e estéril. Por isso o nome do filme, uma pergunta que mostra como a segregação criou uma cidade inacabada e aponta para consciência crítica acerca dessa segregação.
Essa consciência está diretamente relacionada ao personagem Dildu, que trabalha como servente no Plano Piloto e faz o percurso entre a rodoviária e a Ceilândia. Na sua função é invisível, mas, em Ceilândia, é reconhecido e mostra a indignação com a situação da periferia por meio de sua campanha para deputado distrital, reivindicando o reconhecimento de uma população não incorporada à cidade que ajudou a construir.
Já em Becos da memória, a violência do processo de desfavelamento pode ser observada na passagem em que a narradora, Maria-Nova, apresenta a organização da festa junina, patrocinada pelo moradores do bairro nobre, ao lado da favela. Segundo a personagem, “bancavam para que os favelados não os importunassem. Havia outros bairros perto de favelas em que as casas eram constantemente arrombadas. Parece que havia mesmo um acordo tácito entre os favelados e seus vizinhos ricos. Vocês banquem nossa festa junina, deem-nos as sobras de suas riquezas, oportunidades de trabalho para nossas mulheres e filhas e, antes de tudo, deem-nos água, quando faltar aqui na favela. Respeitem nosso local, nunca venham com plano de desfavelamento, que nós também não arrombaremos a casa de vocês”. Essa passagem materializa, no campo literário, um fato que demostra a importância de se estudar a violência impingida às populações periféricas.
É também por meio dessas memórias que a narradora apresenta uma ficção singular, marcada por narrativas particularizadas, pelas quais personagens como Bondade são retratados. Bondade é um agregado de passado desconhecido cujo nome remete a uma característica muito peculiar, a capacidade de acolher os mais necessitados mesmo vivendo a miséria. Para a narradora, “Bondade fazia jus ao apelido. Não tinha pouso certo. Morava em lugar algum, a não ser no coração de todos. (…) O tempo ia passando, Bondade ficando ali. Comia em casa de um, bebia em casa de outro. Era amigo comum de dois ou mais inimigos. Não era traidor e nem mediador também. Quando chegava a casa de um, por mais que indagassem, por mais que futricassem, Bondade não abria a boca. Desconversava, conversava, e a intriga morria logo. Vivia intensamente cada lugar em que chegava. Cada casa, cada pessoa, cada miséria e grandeza a seu tempo certo, no seu exato momento”.  
O comportamento de Bondade impede a visão estereotipada que associa a degradação do espaço das periferias com a degradação dos personagens e revela a coexistência de misérias e grandezas, um retrato normalmente ignorado pelos noticiários e pela escrita hegemônica.
Dessa maneira, personagens como Dildu e Bondade, moradores de espaços com tantas ausências, demonstram que, no contexto no qual vivem, existe a possibilidade de sobreviver à precariedade e assim defender a própria identidade. Isso constitui uma estratégia de relevante importância política e cultural, já que permite ao leitor vivenciar a representação das diferenças sociais e raciais em nossa sociedade por uma outra perspectiva.

11 de novembro de 2017

Mulheres escritoras na literatura marginal

Pollianna de Fátima Santos Freire


Imagem: Massagona Sylla, art collage

No Brasil, cujo cânone literário foi constituído e edificado a partir de obras produzidas por homens heterossexuais, brancos e de classe média alta, a valorização da literatura produzida por diversos grupos minoritários é um fenômeno relativamente recente. Trabalhos desenvolvidos no âmbito da crítica literária feminista, por exemplo, têm se empenhado em mostrar que, aqui, o cânone se configurou excluindo da historiografia literária nacional as escritoras mulheres, a exemplo de Maria Firmina dos Reis — que publicou, em 1859, Úrsula, considerado o primeiro romance de autoria feminina — e Júlia Lopes de Almeida, que escreveu vários livros de sucesso, entre eles, Memórias de Marta, seu primeiro livro, publicado em 1888.

Essas constatações são reforçadas por críticas como Rita Terezinha Schmidt que, em seu texto “Cânone/ Contra - Cânone: Nem aquele que é o mesmo nem este que é o outro”, já havia denunciado, na última década do século passado, essa tendência de exclusão de grupos minoritários do campo literário. De acordo com a autora, no Brasil, “o discurso crítico sempre esteve atrelado à herança de uma identidade cultural ocidental europeia na medida em que [...] compactuou com a política das exclusões que sustenta a lógica canônica” (Schmidt, 1996, p. 117). Em seu texto, ela argumenta que todo processo do cânone é excludente porque, geralmente, a sua constituição está pautada em seu processo de reprodução, que, por sua vez, tem uma força homogeneizadora que atua sobre a seleção e reafirma as identidades, excluindo, portanto, as diferenças.
            
No entanto, contrários a essa tendência de exclusão das diferenças, escritores e escritoras vêm, nas últimas décadas, denunciando, dentro e fora da sua produção literária, o alijamento de grupos minoritários do campo literário, nos termos do sociólogo Pierre Bourdieu, bem como vem atuando politicamente para que esses grupos, por meio da escrita literária, se autorrepresentem ou trabalhem com a representação das minorias, a fim de questionar e desestabilizar as estruturas sociais conservadoras que, durante séculos, calcaram a nossa produção literária.
         
Nesse contexto, destaca-se, no cenário cultural brasileiro atual, a corrente literária que se autodenomina Literatura marginal. Essa corrente literária, que está ligada a uma certa necessidade de os escritores e as escritoras transformarem a sua produção artística em potência política e ética que dá voz e direito de representação justa a grupos minoritários, ganhou força, como instância política, nos saraus que começaram a ser realizados em regiões periféricas, na cidade de São Paulo, no início do século XXI. Com relação ao conceito, Heloísa Buarque de Hollanda explica, em seu texto Literatura Marginal, que Ferréz, um dos nomes de destaques dessa corrente literária, entende por marginal

a busca de um lugar na série literária para aqueles que vem da margem. E explica melhor: Literatura marginal é aquela feita por marginais mesmo, até por cara que já roubou, aqueles que derivam de partes da sociedade que não têm espaço. Mas adverte: “Quando a gente consegue alguma coisa por meio da arte, não quer dizer que a vamos sossegar. Temos é que organizar o nosso ódio, direcioná-lo para quem está nos prejudicando. Tudo o que o sistema não dá, temos que tomar”. (Hollanda, 2016, s/n)
            
Então, a Literatura marginal, definida como um tipo de instância política pelo seu representante mais conhecido, Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, luta para tirar da invisibilidade a literatura produzida nas periferias de grandes centros urbanos e seus disseminadores reivindicam reconhecimento do valor literário, cultural e simbólico das suas produções. Esse autor, que se alimenta da realidade em que vive para produzir sua literatura, vem, timidamente, ganhando espaço no campo literário, direito que ele reivindica ao longo do tempo. Ainda de acordo com Heloísa Buarque de Hollanda, em 2004, durante a sua participação em uma mesa no Seminário Cultura e Desenvolvimento, o escritor afirmou: “Quero entrar para o cânone, para a história da literatura como qualquer um dos escritores novos contemporâneos. E não acho também que minha comunidade deve se limitar à minha literatura, ela tem o direto de ter acesso ao Flaubert.” (Hollanda, 2016, s/n).
         
Os escritores e as escritoras que se consideram como produtores de Literatura marginal reivindicam para si e para a sua comunidade o direito de acesso a bens culturais e reconhecimento do valor literário das suas produções, o que implica mudanças de paradigmas relacionados à representação de grupos minoritários e local de fala. Nesse sentido, a designação Literatura marginal marca um posicionamento político que choca com a tendência de vários escritores, especialmente os contemporâneos, de não quererem atrelar diretamente a sua produção literária a categorias, como, por exemplo, literatura de autoria feminina, para não assumirem abertamente as implicações políticas inerentes a esse tipo de posicionamento.
         
Também no contexto da produção da Literatura marginal destacam-se os textos produzidos por mulheres escritoras, a exemplo de Elizandra Souza, Dinha, Mel Duarte, Raquel Almeida, Luiza Romão e Jéssica Balbino. A produção de autoria feminina, por sua vez, torna esse movimento uma instância política ainda mais significativa, já que a presença de mulheres e sua atuação política e literária no movimento Literatura marginal contribuem significativamente para ressignificação de identidades duplamente estigmatizadas — mulher e periférica. Essas escritoras trabalham para questionar a autoridade e o privilégio patriarcal nos espaços público e privado e, embora ainda timidamente, no campo literário, já que, como enfatizado anteriormente, o alijamento da produção literária de autoria feminina do campo literário não é um fenômeno recente.
             
Nesse contexto, a literatura produzida pelas mulheres que habitam periferias — as quais, em geral, carregam marcas de preconceitos, injustiças e desigualdades de gênero, sobretudo no que se refere ao reconhecimento do valor das suas produções literárias — tem operado com a representação literária de resistência e atuado como uma instância de renovação e de ruptura de padrões e de promoção de igualdade de direitos, no que se refere à representação literária e ocupação de espaços públicos e privado, conforme argumentarei a seguir.

No que se refere ao espaço, sabe-se que, inicialmente, a Literatura marginal ganhou força nos saraus das periferias da cidade de São Paulo. Esses eventos que ressignificaram os modos de produção e de divulgação das produções literárias de sujeitos oriundos das periferias, tornam-se mais significativos quando pensamos a sua definição a partir da proposta da pesquisadora Lucia Tennina no artigo “Saraus das periferias de São Paulo: poesia entre tragos, silêncios e aplausos”: “reuniões em bares de diferentes bairros suburbanos da cidade de São Paulo, onde os moradores declamam ou leem textos próprios ou de outros diante de um microfone, durante aproximadamente duas horas. Muitos bares [...] funcionam, desde então, também como centros culturais.” 

Os saraus que, conforme a teórica acima, são eventos abertos à comunidade e acontecem geralmente, em bares, são pensados aqui, inicialmente, como espaços de resistência, já que, ainda de acordo com Tennina, são “espaços nos quais normalmente acontecem os episódios que se transformam em estatísticas posteriormente (os assassinatos e o alcoolismo)”, mas que, no momento dos saraus, funcionam como espaços estratégicos utilizados pelos sujeitos oriundos dos espaços periféricos para dar visibilidade, com uma nova dimensão política, a problemas que se encerravam nas próprias periferias: por um lado, eles ocupam espaços estigmatizados do contexto social em que estão inseridos e transformam, por meio da arte, sobretudo da representação literária, questões das margens em questões do centro; por outro, inauguram na literatura brasileira contemporânea uma fase em que os escritores e as escritoras começam a reforçar a luta contra os estereótipos e desigualdades sociais por meio da reconfiguração do seu próprio local de fala.

                   
No que se refere à participação feminina nesses saraus, o fato de esses eventos acontecerem em bares torna-se então um evento ainda mais significativo se pensarmos que, historicamente, esse espaço sempre fez parte da história dos homens, e não da história das mulheres. Essa determinação dos espaços inerentes à mulher e ao homem está relacionada a modelos culturalmente estabelecidos de padrões de comportamentos femininos e masculinos, instituído pelo ideal de família burguesa, que é uma criação com pouco tempo de existência histórica, e que designou o espaço privado como o espaço legítimo das mulheres, ao passo que o espaço público foi designado como espaço legítimo dos homens. Logo, bares, na perspectiva patriarcal e conservadora, sempre foram considerados lugares inadequados para mulheres “decentes”.
         
Nessa perspectiva, conjecturo que o fato de os saraus acontecerem em bares, que passam também a ser ocupados por mulheres, as quais transitam livremente e participam de modo ativo das atividades culturais, desestabiliza noções conservadores de sexo/gênero, sobretudo àquelas intrinsecamente relacionadas aos espaços cultural e socialmente designados como sendo legítimos de homens — espaço público — e de mulheres — espaço privado. Aqui, o próprio espaço onde se promove a literatura ajuda a desconstruir discursos hegemônicos, já que as mulheres passam também a ocupar os bares e abrir caminho para novas formas de representação, que não só questiona esse sistema de base patriarcal, mas atua para desestabilizá-lo.

Voltando ao plano literário, as várias mulheres escritoras que vem se destacando nessa produção de literatura marginal estão inaugurando uma fase da literatura de autoria feminina no Brasil que oferece novas perspectivas em relação à posição que a mulher pobre, negra e periférica ocupa no cenário da produção literária. Em geral, essas produções denunciam e ressignificam as situações de opressão e violência a que as mulheres são submetidas nas relações sociais.


Com uma posição política clara e bem marcada, elas reivindicam o direito de falar por si mesmas e questionam os modelos femininos de submissão herdados da sociedade patriarcal. Nos textos, evidencia-se o discurso de luta pela emancipação feminina, o qual funciona para dar visibilidade às questões de gênero e, consequentemente, ajuda a movimentar as discussões sobre a necessidade de romper com paradigmas patriarcais relacionados à posição das mulheres na sociedade e no próprio campo literário. 


Aqui, destaco a poetisa Elizandra Souza, escritora negra e feminista que atua também como promotora de cultura, arte e, principalmente literatura, em bairros da periferia de São Paulo. Sobre a escritora, Sílvia Regina Lorenso Castro, em seu artigo “Elizandra Souza: escrita periférica em diálogo transatlântico”, afirma que


a vida e a obra da escritora Elizandra de Souza tornam-se uma espécie de lente de acesso, permitindo-nos ler a literatura e a periferia brasileiras partindo de outra perspectiva: uma perspectiva negra, feminista, jovem, urbana, conectada com as inovações tecnológicas da vida moderna, relacionada a um agir local e um pensar global a partir de referências afrodiaspóricas, em consonância com as teorias negras feministas e com o pensamento descolonial latino-americano. Vida e obra de Elizandra estão inseridas em um diálogo mais amplo sobre a atual geração de jovens escritores e escritoras da periferia de São Paulo, adeptos da cultura hip-hop e responsáveis pela produção literária e pelos saraus em bares nos bairros periféricos da cidade. (Castro, 2016, p. 52)

Elizandra Souza tem 33 anos e nasceu no bairro de Jardim Iporanga, periferia Sul de São Paulo. A escritora morou alguns anos na Bahia, terra natal dos pais, mas retornou à São Paulo na adolescência, momento em que conheceu o hip-hop e passou a frequentar, em 2004, o sarau da Cooperifa. Em 2006, ingressou na universidade, cursou jornalismo e hoje compõe uma voz significativa na representação de mulheres escritoras negras no ativismo e na Literatura marginal de autoria feminina. Inspirada em outras mulheres negras escritoras, como Conceição Evaristo, Elizandra Souza já publicou dois livros, Punga (2012) e Águas de Cabaça (2012). 

Com relação a essas publicações, o livro Punga traz poemas como, por exemplo, “Meu único dia de mulher”. Nesse poema, o eu lírico, ao expor as angústias da mulher que sofre violência física e simbólica cotidianamente, dá visibilidade a mecanismos de subalternização e de opressão existentes nas relações de gênero, como, por exemplo, a data simbólica 8 de março — Dia Internacional da Mulher —, desconstruindo os sentidos sociais associados a esse tipo de data para denotar como o patriarcado recorre a esses recursos para tentar coagir as mulheres e mantê-las silenciadas nas relações sociais e pessoais.


Oito de março lembraram de mim
Mandou flores, tocou até tamborim.
Como presente de consolação
Além dos bombons ganhei cartão
Elogiou tanto o meu caráter
E me fez se sentir rainha
Fingiu esquecer que não cobiçava o meu corpo
Mas sim a minha carinha

A estrofe acima, que inicia o poema “Meu único dia de mulher”, questiona a hipocrisia social associada aos incentivos midiáticos, cujo objetivo precípuo é o estímulo ao consumo, de valorização do sujeito feminino em um único dia que, na perspectiva do eu lírico, é marcado, simplesmente, por agrados materiais e compreendidos, ironicamente, como presentes de “consolação”, em contraponto às violências físicas e simbólicas vivenciadas por ela nos demais 364 dias do ano.

Nove de março que decepção
Pia cheia e toalha no chão
Pedi para tirar o prato da mesa
E quase levei um bofetão
Disse que o serviço de casa era minha obrigação.
Que mulher só prestava para cozinhar,
Fazer sexo,
Gerar filhos e amamentar.
[...]
Os dias passam e fico esperando
Meu único dia de mulher.
Oito de março.

Nesse poema, a escritora também problematiza a questão da injusta distribuição do trabalho doméstico entre os sexos — um dos grandes desafios das agendas feministas na atualidade — como mais um mecanismo de opressão e de subordinação feminina. Esse poema traz em seu bojo o anseio de não se deixar coagir e subjugar por dispositivos discursivos que invisibilizam as reais condições das mulheres em uniões como as do eu lírico com o seu companheiro — que, no poema, aparece representado ora como sujeito indeterminado ora como sujeito oculto, mas com clara referência a um sujeito do sexo masculino — e o desejo de tornar visíveis os mecanismos de opressão femininos existentes nesse tipo de união.

No que se refere ao campo literário, Elizandra Souza não se esquiva, em sua militância, de apontar as dificuldades enfrentadas por uma poetisa negra da periferia para escapar dos preconceitos. Em uma entrevista ao blog Polifonia Periférica, ela afirmou que o seu trabalho

“é uma luta cotidiana [...] Não é fácil ser uma mulher negra, poeta e da periferia. [...] existem situações complicadas como o assédio, discriminações de gênero, raça/etnia e social que entrelaçados você não sabe porque foi menosprezada se por ser negra, por ser mulher ou por morar na periferia. E tudo isso contribui para que o racismo seja apenas tratado como um tipo de preconceito… ser poetisa negra da periferia é ter dificuldade para publicar livros, as poucas poetisas negras presentes nos saraus não tem publicações dos seus trabalhos, e isso não é só com as poetisas negras, as poetisas em geral tem pouca participação nas antologias e livros, eu ainda não sei definir porque isso acontece, tenho uma hipótese que está muito relacionada com a educação que nós mulheres recebemos que são envolvidas com as atividades do privado, ou seja, atividades domésticas, enquanto os homens são estimulados a voaram cada vez mais alto. As poetisas mulheres negras e não negras mostram pouco seus trabalhos, preocupadas com o que a sociedade irá pensar sobre os seus textos. Como ela será vista depois de recitar um poema.”

Elizandra Souza representa um grupo de escritoras da periferia que, conscientes da exclusão das mulheres da historiografia literária, vem lutando, nos últimos anos, pelo direito de se autorrepresentarem e de representarem, em seus escritos, as demandas de diversos grupos minoritários que não têm espaço na produção literária dos escritores consagrados pelo cânone nacional. Portanto, o que fica evidente é que essas escritoras reivindicam, assim como Ferréz, reconhecimento e acesso não só aos bens culturais, mas ao próprio campo literário como escritoras de obras com significativo valor literário.

Por fim, ressalto, nesse texto, que entendo a Literatura marginal — como prática artística e como movimento social — como uma corrente que atua, nos termos de Teresa de Lauretis, como uma das tecnologias de gênero. Essas produções — que também se relacionam com uma sociedade ainda extremamente conservadora e resistente a modelos não hegemônicos — vêm reivindicando espaço no campo literário e se mostrando como uma potência política e estética de renovação e ruptura de padrões.



2 de novembro de 2017

Falemos de Aleppo

Marcel Fernandes


Imagem: detalhe de Aprendizaje por la vista (1979), de Fermín Eguía.

 
falemos das pinturas revolucionárias no muro em deraa
falemos dos adolescentes torturados pelas forças de segurança
falemos da primavera árabe se estendendo pelos países da região
falemos da resposta violenta do governo
falemos das armas que os civis tiveram que empunhar
falemos de como um confronto ganhou contorno de guerra
falemos das bombas, dos gritos, dos corpos no chão
falemos da febril imagem de uma criança morta
falemos das mais de quatrocentas mil pessoas mortas
falemos de aleppo
falemos de aleppo
falemos de aleppo

falemos também do brasil

falemos de itaberli lozano,
de 17 anos, homossexual morto pela mãe e queimado pois ela “não aguentava mais ele”

falemos de dandara dos santos,
de 42 anos, travesti apedrejada e morta a tiros, no ceará. "vários rapazes. um dava um chute  e outro uma pedrada. outro dava murros e outro bateu com um pau na cabeça dela”

falemos de alailton ferreira,
de 17 anos, vítima de um espancamento coletivo, em serra. “foi morto por pedras, barras de ferro e pedaços de madeira, por ser negro”

falemos de carla roberta barbosa,
de 9 anos, que foi estuprada e morta por renato mariano, em santos

falemos de fabrício junior,
de 25 anos, que tirou a própria vida, em belo horizonte, pois sofria com a intolerância por ser homossexual

falemos das últimas palavras de fabrício

"quero deixar minhas pegadas sobre as areias do tempo, sei que havia algo lá e algo que deixei para trás. quando eu deixar este mundo não vou deixar arrependimentos. vou deixar algo para lembrar, então eles não vão esquecer.
eu estava aqui
vivi, amei,
eu estava aqui.
fiz, concluí, tudo que queria. vou deixar minha marca para que todos saibam,
eu estava aqui.
quero dizer que vou viver cada dia até eu morrer e saber que eu tinha algo na vida de alguém, os corações que toquei serão a prova que deixo que fiz a diferença.”

ele esteve aqui
eles estiveram aqui
eles estarão sempre aqui



O poema foi publicado originalmente no blog A voz pública da poesia, um espaço que convida e acolhe manifestações sobre o momento presente.


27 de outubro de 2017

Inscrições e escrituras do corpo-lugar/não-lugar

Amanda Holgado

Foto: Davis Ayer


Ao falarmos em corpo, pode ser que pensemos em diversas coisas: em sua fisiologia, moda, esportes e afins; porém, podemos pensá-lo também através da arte ou como ele aparece e é visto socialmente. E quando se trata de música e literatura contemporâneas também? Sim. Aqui trago duas compositoras, Karina Buhr e Karol Conka, e duas personagens escritas por autoras, Elvira Vigna e Conceição Evaristo, que questionam de forma crítica as relações e regulações corporais cultural, social e históricas. Mas, primeiramente, que relações são essas?
 Ao ser atribuído ao corpo uma pessoalidade, “a própria categoria sexual parece pressupor uma generalização do ‘corpo’ que preexiste à aquisição de seu significado sexuado”, como afirma Judith Butler, ou seja, é inscrito nele uma fonte cultural externa em relação a ele.  O corpo é definido dialogicamente, desde um primeiro contato, um corpo de homem ou um corpo de mulher. A sua materialização é base da diferenciação da relação entre homens e mulheres, divisão que estruturou uma concepção binária de identidade dentro do meio social, gerando, historicamente, divisões de afazeres, esferas da vida, acesso a direitos e subordinação.
Esse conceito definido e demarcado em relação à mulher, partindo das estruturas patriarcais, que a subordinaram em função de seu corpo, materializando-o, não ficou por aí.  Demandas externas foram exigidas, e para esse corpo definiu-se um padrão de beleza, como observa Guacira Lopes Louro: “os grupos sociais que ocupam posições centrais, ‘normais’ (de gênero, de sexualidade, de raça, de classe etc) têm a possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros”, apresentando assim, como padrão, a sua própria estética, estabelecendo relações de poder. Estas podem ser vistas, sobre os corpos negros, transexuais / transgêneros, ou em pessoas com deficiência, por exemplo.
 Na mídia, em propagandas ou revistas, essas diferenças entre corpos não existem, embora isso venha mudando, por exemplo, em propagandas, principalmente nas veiculadas na Internet, de produtos de beleza que atendem a diversos públicos. Porém, de maneira geral, os corpos são universalizados, mais uma vez materializados e subordinados às demandas do meio externo, o que gera a falta de reconhecimento de si e a busca por um alcance que muitas vezes são inatingíveis, corpos também são dotados de privilégios, pois para alguns corpos isso não é uma escolha.
Por outro lado, movimentos alinhados ao feminismo (em suas diversas facetas), que emergiram depois de muitos estudos e militâncias, vêm surgindo para contrapor a essas que têm vigorado. Nos últimos anos, com a força das redes sociais, a ideia de empoderamento feminino se fortaleceu e a circulação dessa ideia tem colaborado, em alguma medida, para um despertar de consciência dessa regulação dos corpos e reconhecimento da beleza na diversidade, além de repensar esses valores socialmente construídos.
Na música, Karina Buhr, em Selvática, álbum lançado em 2015, expressa em suas composições o resgate do poder da mulher, enquanto guerreiras de histórias de séculos atrás, e denuncia esse complexo enquadramento sobre o “jeito” de estar no mundo em que mulheres foram colocadas, em “Eu sou um monstro”, por exemplo, Buhr diz “Hoje eu não quero falar de beleza / Ouvir você me chamar de princesa / Eu sou um monstro”, subvertendo essa ideia de perfeição destinada à mulher.
Karol Conka também tem feito um trabalho na música que expressa abertamente a beleza, a força e a liberdade das mulheres. A cantora e compositora se coloca no lugar experiencial das suas canções e se coloca como mulher, negra e periférica consciente do seu corpo e da beleza do que está fora das determinações sociais.
Na literatura, trago duas personagens, de épocas anteriores à das cantoras, que de alguma forma não atendem aos padrões estabelecidos socialmente e em conformidade com essa divisão binária sexista em relação aos corpos, as personagens estão em processos de reconhecimento e aceitação desse corpo no mundo.
No romance Coisas que os homens não entendem, de Elvira Vigna, publicado em 2002, Nita, sua protagonista e narradora, conta que foi uma jovem jornalista da sessão policial, onde somente trabalhavam homens. Quando mais velha, fotógrafa, independente, uma mulher em trânsitos, viveu diversas relações – homo e heterossexuais – apesar de não ser esse o foco do romance, Nita se apresenta como uma mulher consciente de seu corpo e sua história, mas em sutis brechas deixa escapar uma inconformidade com sua figura: “E em uma das janelas, por trás de uma cortina de flores, alguém dizendo: tem uma mulher estranhíssima parada no portão.”; e com seu corpo: “Eu sempre tive inveja das pessoas que se sentem em casa, seja no assento de um carro, seja em seus próprios quadris”.
Este exemplo fomenta a ideia da pressão que os corpos sofrem, muitas vezes, devido à naturalidade designada, que acaba por definir uma estética única, jogando para a margem o que não é concebido como “normal”. Esse  poder lança sobre o indivíduo um fardo que interfere na esfera privada influenciando na pública. Um corpo que não reconhece seu valor, ou não se vê representado, acha-se sem forças para lutar e recorrer a seus direitos.  
A outra personagem que trago é Isaltina, do conto Isaltina Campo Belo, de Conceição Evaristo, publicado no livro Insubmissas lágrimas de mulheres, em 2011. A primeira relação que a personagem coloca quanto ao corpo é que quando criança não se reconhecia como mulher, ela se sentia um menino e se impressionava com a não percepção dos adultos sobre o fato. Na adolescência esse estranhamento aumenta, pois tudo que via ou aprendia sobre o corpo da mulher e do homem não condizia com o que percebia em si mesma:

descobrimos, na rua e nos livros, tudo sobre o corpo da mulher e do homem. Sobre beijos e afagos dos homens para com as mulheres. Lembro-me que fui invadida por certo sentimento, que não sei explicar até hoje, uma sensação de estar fora de lugar. Eu via e sentia meu corpo parecer com o de minha irmã e se diferenciar do porte de meu irmão.

Ao crescer, Isaltina, que morava no interior, foi estudar na cidade, lá conhece um rapaz, com quem começa um namoro, ela era uma mulher negra (estigmatizada socialmente como objeto de desejo), e isso levava o rapaz a afirmar ainda mais que ela “deveria gostar muito e muito de homem, apenas não sabia”, marcando a relação de poder e afetação do homem sobre a mulher e fixando a heterossexualidade compulsória. O namoro não se desenvolve, porém continuam amigos. O rapaz a convida para uma festa na casa dele com mais cinco amigos, acontece, então, um estupro coletivo, eles diziam que estavam ensinando-a a ser mulher. Isaltina engravida, porém só se dá conta no sétimo mês, ela tem a criança. No primeiro ano de escola de sua filha, ao levá-la na aula se apaixona pela professora. É neste momento que, finalmente, reconhece sua identidade de gênero: “E foi então que eu me entendi mulher, igual a todas e diferente de todas que ali estavam”.  
No caso de Isaltina, o não reconhecimento de seu corpo é em torno de sua sexualidade, o que é mais um fator regulado socialmente, gera traumas, dificuldades de reconhecimento e não pertencimento ao meio.
 Esses são poucos exemplos dentre diversos que possam suscitar tal tema, e ainda mais, outros que possam representar outros tipos de debate acerca do corpo, como o corpo com deficiência, que também é colocado num não-lugar de reconhecimento social.

Desta forma, entende-se o corpo como um lugar no mundo, dual e complexo, que antecipa sua chegada, classifica o ser, inscreve acontecimentos sociais e culturais, porém não é determinado, pois o corpo é em si uma força, de escolhas e resistências. Deixar que o corpo seja determinado, regulado, condenado ou negado, assim como suas práticas, necessidades, desejos e prazeres, e categorizá-lo hegemonicamente como único, segundo um padrão, é cristalização e redução do sujeito. Para tanto, destaca-se aqui a relevância da discussão desse tema e permanência do reconhecimento da diversidade corporal nas variadas formas de arte.