Regina Dalcastagnè
Poucos
escritores alcançam a unanimidade, entre público e crítica, de que Lygia
Fagundes Telles desfruta. Hábil fabuladora, exímia construtora de personagens e
com amplo domínio do estilo, ela é uma narradora completa. Não se furta a
utilizar, em seus romances e contos, técnicas narrativas sofisticadas, mas
jamais apela para o vanguardismo hermético que aliena o leitor comum. Os traços
distintivos da literatura contemporânea – a pluralidade de vozes, a
fragmentação e, em especial, a ambiguidade, que a autora maneja com maestria –
estão presentes em toda a sua obra. Mas há muito mais ali. Sem tampouco ter
cedido ao panfletarismo, Lygia Fagundes Telles sempre mostrou ser uma escritora
comprometida com o seu tempo e com o seu país. Esta postura é mais evidente no
romance As meninas, lançado em 1973, retrato de uma geração violentada
pela ditadura militar e que contém uma denúncia pioneira da prática da tortura
política no Brasil. Porém, a sensibilidade para as transformações nas relações
de gênero, de geração e familiares, bem como para os mecanismos de exclusão
social, é uma constante em sua obra.
O
medo, a confusão diante de tantas transformações, as ilusões perdidas, os
sonhos que nunca param de se renovar – as personagens de Lygia Fagundes Telles
vivem intensamente nossos dramas cotidianos, por pequenos que sejam. Dramas
muitas vezes com contexto preciso. Ninguém pode ignorar o autoritarismo dos
anos 1970, que dá contorno às existências de Lia, Lorena e Ana Clara, em As
meninas, por exemplo; mas as vicissitudes do período e do local específicos em
que a trama se situa mesclam-se à experiência do tornar-se adulto, com tudo o
que essa passagem implica em termos de escolhas e decisões – o que faz com que
o romance mantenha sempre vivo o interesse das novas gerações.
Sejam
jovens, como as protagonistas desse romance, de Ciranda de pedra ou de
Verão no aquário; crianças, como as dos muitos contos ao longo dessas
décadas de produção; mulheres maduras ou já idosas, como a atriz de As
horas nuas, ou as do belo A noite escura e mais eu – a
condição feminina ocupa um espaço fundamental na obra da autora, o que também é
um dos motivos de sua atualidade. Afinal, o último século foi, para as
mulheres, um período de transição. Transição entre os papéis tradicionais de
mãe e esposa, do passado, e uma nova situação, que ainda não atingimos
plenamente, mas pela qual continuamos lutando, de igualdade – quando poderemos
realizar nossas vidas das mais diferentes maneiras, sem as pressões e os
constrangimentos que tão bem são retratados nos livros da autora.
Isto
não quer dizer que a figura masculina não tenha espaço ali. Às vezes, o homem é
retratado justamente em sua ausência: o desinteresse em relação aos filhos, a
distância, o alcoolismo, até a morte. Quase sempre, ele se mostra confuso
diante de mulheres que já não se adaptam tão naturalmente às funções que seriam
destinadas a elas. Fica claro que, mesmo quando incorpora as vivências, as
angústias e os sonhos dos homens em suas narrativas, a autora fala de uma
perspectiva feminina. O que não limita, absolutamente, o alcance de sua obra.
Séculos de literatura em que as mulheres permaneciam nas margens nos
condicionaram a pensar que a voz dos homens não tem gênero e por isso existiam
duas categorias, a “literatura”, sem adjetivos, e a “literatura feminina”,
presa a seu gueto. Da mesma forma, aliás, que por vezes parece que apenas os
negros têm cor ou somente os gays carregam as marcas de sua
orientação sexual. Lygia Fagundes Telles nos ajuda a romper com estes esquemas
de pensamento. Sua obra é feminina (porque traz a perspectiva feminina) e é por
isso, e não “apesar” disso, que amplia nossa compreensão e nossa sensibilidade
para a humanidade como um todo.
Em A
noite escura e mais eu, volume de contos publicado em 1995 – na maturidade
literária da escritora –, temos quase que uma súmula de sua obra. Entre as nove
narrativas que compõem o livro, sete possuem foco narrativo ou a narração em
primeira pessoa de mulheres. Nos outros dois, a autora cede voz a um cachorro e
a um anão de jardim. Nada a se estranhar para quem já está familiarizado com
seu trabalho. Afinal, os animais domésticos e insetos (especialmente gatos e
formigas) percorrem seus livros com a desenvoltura de quem está em seu lugar.
Às vezes se convertem mesmo em personagens, quando não em protagonistas de
algumas narrativas. “Crachá entre os dentes” é sobre um cachorro que vira
homem, se apaixona, é abandonado e se transforma em cachorro outra vez,
amargando sua solidão.
Também
os anões de jardim estão sempre presentes em suas histórias, reaparecendo aqui
e ali, como testemunhas inanimadas, observando calados, servindo para compor o
cenário, mas também, talvez, para ser a marca da presença de outro olhar,
totalmente estranho – o leitor? – dentro do texto. Neste livro, pela primeira
vez temos a narração feita pelo anão de pedra. Ele é um pouco como Lorena,
de As meninas, gostaria de ser, espectadora distante e fria:
Bom
é ficar olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante, as pessoas tão
inofensivas na rotina. Comem e não vejo o que comem. Falam e não ouço o que
dizem, harmonia total sem barulho e sem braveza. Um pouco que alguém se
aproxime e já sente odores. Vozes. Um pouco mais e já nem é espectador, vira
testemunha. Se abre o bico para dizer boa-noite passa de testemunha para participante.
E não adianta fazer aquela cara de nuvem se diluindo ao largo porque nessa
altura já puxaram a nuvem para dentro e a janela-guilhotina fechou rápida. Eram
laços frouxos? Viraram tentáculos.
Mas,
como ela, nem o anão consegue ser só espectador. Aos poucos, as histórias
penetram seu corpo que não sente nem vê. E racham-lhe o peito de pedra.
Já
nesses dois contos – o terceiro e o último do livro –, encontramos a tônica do
volume inteiro e, na verdade, da obra de Lygia Fagundes Telles como um todo: a ambiguidade.
Nunca temos muita certeza do que querem e do que dizem as suas personagens.
Muitas vezes nem elas próprias têm certeza de coisa alguma. E se essa
ambiguidade aparece como uma consequência natural em alguns discursos, em
outros podemos notar que é finamente trabalhada, tomando o centro da cena: como
em “Papoulas em feltro negro” ou em “Uma branca sombra pálida”, por exemplo.
As
mulheres que habitam esse livro vivem diferentes idades – são meninas, moças,
mulheres maduras e velhas senhoras – e diferentes situações, quase sempre
conflituosas. A ambiguidade permeia as narrativas, seja pela situação em que
essas mulheres se inserem, seja pelo discurso que estabelecem, para si ou para
os outros. Em alguns dos textos podemos ficar em dúvida sobre o que aconteceu
de fato, mas é possível tirar conclusões, lidar com os nossos preconceitos e
valores e obter nossas respostas parciais, como em “Boa noite, Maria”. Mas há
ainda aqueles em que qualquer definição desmerece a narrativa, que foi
construída exatamente para ser a incógnita que é, como “Dolly” e mesmo
“Papoulas em feltro negro”.
Reembaralhando
os contos, separando-os de acordo com os objetivos da discussão, podemos
organizar alguns blocos. O primeiro já foi visto (inclui as histórias do
cachorro e do anão), e está vinculado a toda uma linha de narrativas fantásticas,
ao estilo de Edgar Allan Poe, que compõe parte da obra de Lygia Fagundes
Telles. O segundo reúne os dois contos que têm como protagonistas e narradoras
meninas: “O segredo” e “A rosa verde”. “O segredo” tem um recorte bem preciso,
da menina que, sozinha, se encontra diante de um mundo diferente, dentro do
próprio ambiente familiar. Talvez se possa dizer que ela descobre a ideia de
“segredo”, ou seja, ter algo que é só e exclusivamente seu, marcando a
separação da criança com os pais, estabelecendo, em suma, o início da formação
da sua individualidade, de sua identidade.
Já
no segundo, temos outra menina, que poderia ser a mesma – mesma idade, mesmo
espírito observador, mas vivendo outra situação: ela é órfã, mora com os avós
na casa dos tios, só com um primo, sem irmãos. É dali de dentro que ela enxerga
os ressentimentos, as mentiras, a dor; que percebe como as pessoas se
relacionam de modo enviesado, machucando-se. Faz também a descoberta de uma
palavra, que é o encontro de um mundo novo: “órfã”. Palavra que serve, mais
diretamente, para mostrar que ela está, de algum modo, sozinha no mundo. A
designação lhe dá identidade. Primeiro ela sofre com isso, é o momento da
ruptura. Ela não chora na morte dos pais, mas quando a professora pronuncia a
palavra que a define. No fim, ela usa a expressão em seu proveito, quer os
benefícios da orfandade, os privilégios da situação: o amor do avô, a lupa só
para ela, o direito de investigar as miudezas do mundo sem prestar contas a
ninguém.
Depois,
em outro bloco, poderíamos reunir três contos bastante violentos. “Dolly”,
narrado por uma jovem de 22 anos; “Você não acha que esfriou”, com o foco de
uma mulher de 45; e “Boa noite, Maria”, que traz a perspectiva de uma mulher de
65 anos. Três histórias angustiantes, com protagonistas dilaceradas. No
primeiro não sabemos se ela é simplesmente uma pessoa fria ou se só está
jogando para fora, na forma de imaginação (até literária, uma vez que diz
querer se tornar escritora), toda a raiva que guarda dentro de si. No segundo,
temos uma mulher ferida, que se torna cínica e cruel. No último, a mulher só,
que teve uma infância feliz, mas que nunca conseguiu construir um relacionamento
que a satisfizesse de fato. Ao envelhecer, foi sendo colocada de lado. A
violência aqui está ligada à certeza de que a morte a encontrará completamente
só.
Os
dois últimos contos, “Papoulas em feltro negro” e “Uma branca sombra pálida”,
poderiam ser lidos como uma espécie de frente e verso, apesar das situações e
personagens serem bem diferentes. Já a partir dos títulos, talvez apenas uma
coincidência curiosa, temos a inversão das cores, mas o mesmo número de
palavras e sonoridade parecida. Nesses dois contos, e muito especialmente no
segundo, a ambiguidade é trabalhada em detalhe. São discursos em primeira
pessoa de duas mulheres mais ou menos da mesma idade, uma professora de piano
e, a outra, uma burguesa. No primeiro ainda temos uma narrativa a se desenrolar,
no segundo somos despejados em um grande monólogo permeado pela culpa e pela
tentativa de responder ao olhar alheio que a acusa. Se no primeiro há a
presença concreta de uma outra personagem a nos indagar quem, afinal, está
mentindo, no segundo esse jogo é ainda mais complexo.
Não
precisamos de outra personagem para desencadear o processo da dúvida. Tudo se
dá no discurso-debate da própria narradora. É ela que, tentando parecer fria e
razoável, acaba dando voz ao seu sentimento de culpa. Culpa por não ter sido
uma boa mãe, por não ter sido cúmplice da filha, por não ter podido evitar que
ela se matasse. É claro que esse sentimento de culpa não é verbalizado pela
personagem, ele aparece justamente em meio ao que essa mãe se recusa a
pronunciar. Toda a narrativa é uma exposição da culpa dos outros – do pai da
moça, que era um fraco; de Oriana, a amiga e possível amante da garota; da
própria filha, Gina, uma espécie de anjo pervertido (tudo sob o ponto de vista
da narradora, é claro). Mas por mais que grite as falhas alheias é das suas que
ela está falando. São os seus preconceitos burgueses, sua impossibilidade de
dar afeto, sua culpa, enfim, que estão sendo expostos, polemizados.
Neste
livro não temos uma autora produzindo um manifesto, nem fazendo experimentos.
Ela já tinha 72 anos ali, era reconhecida como grande escritora, não precisava
provar nada a ninguém. Fica a sensação boa de alguém trabalhando em pleno
domínio de sua técnica, contando belas histórias, se deslocando pelo universo
que melhor conhece: as mulheres, com seus conflitos, suas descobertas e suas
mágoas, com sua crueldade, inclusive. Depois disso, ela ainda publicou vários
outros livros, recebeu prêmios, foi traduzida para diversos países, teve toda a
sua obra republicada pela Companhia das Letras e se manteve coerente com suas
escolhas estéticas e políticas. É por isso que só temos a comemorar sua
existência no dia de hoje, quando ela completa 98 anos. Porque Lygia Fagundes
Telles nos lembra de tudo aquilo que acreditamos essencial para o Brasil
devastado que nos espreita ali de fora – criatividade, ética, responsabilidade,
empatia, delicadeza.