Amanda Holgado
Foto: Davis Ayer |
Ao falarmos em corpo,
pode ser que pensemos em diversas coisas: em sua fisiologia, moda, esportes e
afins; porém, podemos pensá-lo também através da arte ou como ele aparece e é
visto socialmente. E quando se trata de música e literatura contemporâneas
também? Sim. Aqui trago duas compositoras, Karina Buhr e Karol Conka, e duas
personagens escritas por autoras, Elvira Vigna e Conceição Evaristo, que
questionam de forma crítica as relações e regulações corporais cultural, social
e históricas. Mas, primeiramente, que relações são essas?
Ao ser atribuído ao corpo uma pessoalidade, “a
própria categoria sexual parece pressupor uma generalização do ‘corpo’ que
preexiste à aquisição de seu significado sexuado”, como afirma Judith Butler, ou
seja, é inscrito nele uma fonte cultural externa em relação a ele. O corpo é definido dialogicamente, desde um
primeiro contato, um corpo de homem ou um corpo de mulher. A sua materialização
é base da diferenciação da relação entre homens e mulheres, divisão que
estruturou uma concepção binária de identidade dentro do meio social, gerando,
historicamente, divisões de afazeres, esferas da vida, acesso a direitos e
subordinação.
Esse conceito definido
e demarcado em relação à mulher, partindo das estruturas patriarcais, que a
subordinaram em função de seu corpo, materializando-o, não ficou por aí. Demandas externas foram exigidas, e para esse
corpo definiu-se um padrão de beleza, como observa Guacira Lopes Louro: “os
grupos sociais que ocupam posições centrais, ‘normais’ (de gênero, de
sexualidade, de raça, de classe etc) têm a possibilidade não apenas de
representar a si mesmos, mas também de representar os outros”, apresentando
assim, como padrão, a sua própria estética, estabelecendo relações de poder. Estas
podem ser vistas, sobre os corpos negros, transexuais / transgêneros, ou em
pessoas com deficiência, por exemplo.
Na mídia, em propagandas ou revistas, essas
diferenças entre corpos não existem, embora isso venha mudando, por exemplo, em
propagandas, principalmente nas veiculadas na Internet, de produtos de beleza
que atendem a diversos públicos. Porém, de maneira geral, os corpos são
universalizados, mais uma vez materializados e subordinados às demandas do meio
externo, o que gera a falta de reconhecimento de si e a busca por um alcance
que muitas vezes são inatingíveis, corpos também são dotados de privilégios,
pois para alguns corpos isso não é uma escolha.
Por outro lado,
movimentos alinhados ao feminismo (em suas diversas facetas), que emergiram depois
de muitos estudos e militâncias, vêm surgindo para contrapor a essas que têm
vigorado. Nos últimos anos, com a força das redes sociais, a ideia de empoderamento
feminino se fortaleceu e a circulação dessa ideia tem colaborado, em alguma
medida, para um despertar de consciência dessa regulação dos corpos e
reconhecimento da beleza na diversidade, além de repensar esses valores
socialmente construídos.
Na música, Karina Buhr, em Selvática, álbum lançado em 2015, expressa
em suas composições o resgate do poder da mulher, enquanto guerreiras de
histórias de séculos atrás, e denuncia esse complexo enquadramento sobre o
“jeito” de estar no mundo em que mulheres foram colocadas, em “Eu sou um
monstro”, por exemplo, Buhr diz “Hoje eu não quero falar de beleza / Ouvir você me chamar de princesa / Eu
sou um monstro”, subvertendo essa ideia
de perfeição destinada à mulher.
Karol
Conka também tem feito um trabalho na música que expressa abertamente a beleza,
a força e a liberdade das mulheres. A cantora e compositora se coloca no lugar
experiencial das suas canções e se coloca como mulher, negra e periférica
consciente do seu corpo e da beleza do que está fora das determinações sociais.
Na
literatura, trago duas personagens, de épocas anteriores à das cantoras, que de
alguma forma não atendem aos padrões estabelecidos socialmente e em
conformidade com essa divisão binária sexista em relação aos corpos, as
personagens estão em processos de reconhecimento e aceitação desse corpo no
mundo.
No
romance Coisas que os homens não entendem,
de Elvira Vigna, publicado em 2002, Nita, sua protagonista e narradora, conta
que foi uma jovem jornalista da sessão policial, onde somente trabalhavam homens.
Quando mais velha, fotógrafa, independente, uma mulher em trânsitos, viveu
diversas relações – homo e heterossexuais – apesar de não ser esse o foco do
romance, Nita se apresenta como uma mulher consciente de seu corpo e sua
história, mas em sutis brechas deixa escapar uma inconformidade com sua figura:
“E em uma das janelas, por trás de uma cortina de flores, alguém dizendo: tem
uma mulher estranhíssima parada no portão.”; e com seu corpo: “Eu sempre tive
inveja das pessoas que se sentem em casa, seja no assento de um carro, seja em
seus próprios quadris”.
Este
exemplo fomenta a ideia da pressão que os corpos sofrem, muitas vezes, devido à
naturalidade designada, que acaba por definir uma estética única, jogando para
a margem o que não é concebido como “normal”. Esse poder lança sobre o indivíduo um fardo que
interfere na esfera privada influenciando na pública. Um corpo que não
reconhece seu valor, ou não se vê representado, acha-se sem forças para lutar e
recorrer a seus direitos.
A
outra personagem que trago é Isaltina, do conto Isaltina Campo Belo, de Conceição Evaristo, publicado no livro Insubmissas lágrimas de mulheres, em
2011. A primeira relação que a personagem coloca quanto ao corpo é que quando
criança não se reconhecia como mulher, ela se sentia um menino e se
impressionava com a não percepção dos adultos sobre o fato. Na adolescência
esse estranhamento aumenta, pois tudo que via ou aprendia sobre o corpo da
mulher e do homem não condizia com o que percebia em si mesma:
descobrimos,
na rua e nos livros, tudo sobre o corpo da mulher e do homem. Sobre beijos e
afagos dos homens para com as mulheres. Lembro-me que fui invadida por certo
sentimento, que não sei explicar até hoje, uma sensação de estar fora de lugar.
Eu via e sentia meu corpo parecer com o de minha irmã e se diferenciar do porte
de meu irmão.
Ao
crescer, Isaltina, que morava no interior, foi estudar na cidade, lá conhece um
rapaz, com quem começa um namoro, ela era uma mulher negra (estigmatizada
socialmente como objeto de desejo), e isso levava o rapaz a afirmar ainda mais
que ela “deveria gostar muito e muito de homem, apenas não
sabia”, marcando a relação de poder e afetação do homem sobre a mulher e
fixando a heterossexualidade compulsória. O namoro não se desenvolve, porém
continuam amigos. O rapaz a convida para uma festa na casa dele com mais cinco
amigos, acontece, então, um estupro coletivo, eles diziam que estavam
ensinando-a a ser mulher. Isaltina engravida, porém só se dá conta no sétimo
mês, ela tem a criança. No primeiro ano de escola de sua filha, ao levá-la na
aula se apaixona pela professora. É neste momento que, finalmente, reconhece
sua identidade de gênero: “E foi então que eu me entendi mulher, igual a todas
e diferente de todas que ali estavam”.
No caso de Isaltina, o
não reconhecimento de seu corpo é em torno de sua sexualidade, o que é mais um
fator regulado socialmente, gera traumas, dificuldades de reconhecimento e não
pertencimento ao meio.
Esses são poucos exemplos
dentre diversos que possam suscitar tal tema, e ainda mais, outros que possam
representar outros tipos de debate acerca do corpo, como o corpo com
deficiência, que também é colocado num não-lugar de reconhecimento social.
Desta forma, entende-se
o corpo como um lugar no mundo, dual e complexo, que antecipa sua chegada,
classifica o ser, inscreve acontecimentos sociais e culturais, porém não é
determinado, pois o corpo é em si uma força, de escolhas e resistências. Deixar
que o corpo seja determinado, regulado, condenado ou negado, assim como suas
práticas, necessidades, desejos e prazeres, e categorizá-lo hegemonicamente
como único, segundo um padrão, é cristalização e redução do sujeito. Para
tanto, destaca-se aqui a relevância da discussão desse tema e permanência do
reconhecimento da diversidade corporal nas variadas formas de arte.