Nicoletta Vallorani*
As palavras dão forma ao mundo. Enquanto
digo isso, me assusto, porque penso nas palavras que estão se apagando agora,
nesta infeliz contingência, e me convenço que talvez seja melhor permanecermos
mudos. As palavras são pedras, como diz Portelli, combinando injustiças
diferentes e colocando lado a lado casos como Giulio Regeni [um doutorando
italiano da Universidade de Cambridge, que foi sequestrado no dia 25 de janeiro
de 2016 e encontrado morto em 3 de fevereiro daquele ano na cidade do Cairo,
Egito. As condições do corpo demonstravam sinais de tortura. Até hoje as
autoridades egípcias não respondem a todos os questionamentos para uma
investigação transparente sobre o assassinato de Regeni. Uma campanha da
Anistia Internacional persiste pedindo verdade sobre o que foi feito contra ele]
e BlackLivesMatter. As palavras dão aparência a e fazem desaparecer pessoas,
tornam-nas visíveis ou apagam as coisas e situações. São armas que devem ser
usadas com cautela.
As palavras da pandemia, em particular,
como escreveu anteriormente Susan Sontag, têm uma validade dupla, uma
genealogia metafórica dupla, que combina o desejo de abstrair-se da dor com a
consciência de que o corpo doente é real, existe, é violável, é violado. As
medidas “simbólicas” que dias atrás invocavam um dos governadores de uma região
italiana são – se definidas como tais – ofensivas e perigosas. Estas cancelam a
consciência dos corpos verdadeiros para preencher o espaço com um léxico político
conveniente.
Há alguns anos, a partir do meu ponto de
vista não médico, me ocupei dos temas
epidemia e contaminação, trabalhando sobre Derek Jarman e sua potente expressão
artística que, para esse extraordinário pintor e filmaker, é ligada à consciência
de uma morte à época inevitável para quem adoecia de AIDS. Antes, como hoje, o
léxico prevalente para falar de infecções virais era maniqueísta: saudável ou
doente, limpo ou sujo, normal/normativo ou anormal/anômalo. Nenhuma gradação,
nenhum espaço intermediário. Acima de tudo, uma terminologia bélica penetrante,
militarizada já a partir dos acrônimos utilizados: quem contraía AIDS, por
exemplo, era um PWA (“Person with AIDS/ Pessoa com AIDS”), uma definição com
mais de uma proximidade com o militar POW (“Prisioner of War/Prisioneiro de
guerra”).
Praticamente, desde os estudos de Susan
Sontag sobre como se contam as epidemias em relação à linguagem expressiva de
hoje, pouco mudou, senão que as metáforas biopolíticas de caráter militar por
vezes são usadas comicamente sem um propósito. Como por exemplo, alguns dias
atrás, tivemos que ler em um jornal de tiragem nacional as palavras de um
secretário da região da Lombardia que declarava orgulhosamente: “Estamos
perfeitamente equipados para enfrentar a Armada Vermelha”, quase como se o
vírus fosse um comunista – o único comunista sobrevivente, provavelmente, no
planeta – e pudesse ser derrotado com armas.
Na verdade, uma das tantas coisas que
estão indo parar na conta das vítimas é a capacidade de “ver” aquilo que está
acontecendo, e de contá-lo de modo que a narrativa sirva àquilo que servem as
histórias: entender, encontrar caminhos, tornar visível, desvendar o emaranhado
de erros. Na estupidez política que parece um sinal dos tempos, esta capacidade
de dar forma ao desastre é um dos ilustres desaparecimentos, enquanto aparecem
em todos os lugares especialistas em política, epidemiologia, especialistas em
adolescentes, escolas, economistas autodidatas.
Entre esses se move, perdido, o cidadão
comum, e este adjetivo, como poderemos ver, é importante – é um pouco como o
estrangeiro, o migrante, a mulher, o homossexual, a figura não normativa, isto
é, todos precisam se esforçar para não sê-lo (fingindo-se, portanto, de
especialista em qualquer coisa) e de não vê-lo (se conseguiu sair da categoria
de invisível).
Em alguns lugares que não se aconselha
frequentar, o cidadão comum é formalmente inserido como criatura de segunda
ordem. “Durante a pandemia, o sistema de saúde privado abriu seus quartos
luxuosos para pacientes comuns que eram transferidos do setor público”
proclamava o secretário de saúde da Lombardia, Gallera, no dia 24 de junho de
2020, e hoje essa mesma voz, com relação à vacina antigripal, diz: “O objetivo
é cobrir as faixas de risco. Livre mercado? Não podemos nos ocupar do paciente
comum”. Nos anos 70, Raymond Williams, professor, estudioso e ativista,
orgulhosamente afirmava “Culture is ordinary”: a cultura é de todos, um bem
comum, não prerrogativa de uma elite de intelectuais. Hoje temos o “paciente
comum” que sustenta o privado com seus impostos, mas deve esperar a complacente
beneficência, dentro de uma moldura administrativa que se constitui como um
sistema autoimune, no qual a crítica não penetra, não porque não exista, mas
porque é feita desaparecer antes mesmo de entrar nas fronteiras institucionais.
Se desmaterializa, um pouco como os arquivos de um tempo quando são
digitalizados.
Entretanto, nesta festa de desaparições,
também outros são os desaparecimentos. Desapareceram, por exemplo, os corpos
dos vivos. Não existem os sorrisos, as caretas tristes e alegres, as bocas
fechadas ou escancaradas, cheias de dentes. Para tantos de nós que continuamos
a lecionar, desapareceram os estudantes, transformados em bolinhas, no melhor
dos casos decoradas com avatares que designam identidades imaginárias.
Desapareceram os abraços. Na relação entre as pessoas, desapareceu a pele.
Além disso, desapareceram os corpos dos
mortos. As pessoas que partiram são objetos sem respiração que não se pode ver.
Entes queridos desaparecidos, dos quais apenas podemos imaginar a cerimônia
fúnebre, em vez de vivê-la. A memória se evapora rapidamente, enquanto a dor
permanece intensa, sem ser possível o consolo de uma despedida adequada.
Desapareceu a cultura, uma vez que ao
contrário de a usarmos para contornar o problema, a empurramos para os cantos,
nos interstícios da história. Reduzida a assunto de carteiras com rodinhas[1] [para retorno dos alunos
às aulas presenciais] e acrônimos de duvidosa transparência, a cultura se
afogou.
Enfim, desapareceram a responsabilidade
e a obrigação da competência: teríamos, em teoria, como adultos, uma
responsabilidade na relação com os mais jovens. Teríamos também a
responsabilidade de evitar que desaparecessem as coisas que importam, por
exemplo, as relações, a dimensão ética, a ideia de comunidade. Deveríamos,
talvez, convencê-los de que não irão se afogar nas máscaras apertando entre
punhos cerrados um título de estudo que vale pouco, especialmente se da área de
humanas, porque com o passar do tempo esqueceu-se para que serve a cultura.
Devemos, talvez, admitir que somos capazes de argumentar, discutir, mas não de
elaborar os conflitos; de nos indignarmos, mas não de nos comprometermos; de
pretender que devemos ser salvos, mas sem renunciar àquilo que contribuiu para o
desastre.
Pagamos – aqui em Milão, na minha
percepção, mas talvez também em outros lugares – um outro desaparecimento
importante, ainda mais penoso e originário: o desaparecimento da capacidade de
entender aquilo que acontece ao nosso redor. Para esse tipo de compreensão, é
preciso um tempo lento, uma reflexão que se tornou essencial, de uma
consciência inédita, um olhar atento ao caos, que é nosso companheiro e, como
escreve Haraway, é a condição permanente de um planeta que arrisca desaparecer
também.
[1] Na Itália, a maioria das
salas de aulas são dotadas de carteiras “duplas”, a mesa com cadeiras para dois
alunos. Com a pandemia do novo coronavírus, a proposta mais divulgada (não sem
polêmicas) do Ministério da Educação foi a aquisição de carteiras individuais
com rodinhas, que permitiriam facilmente a administração do distanciamento
entre os alunos. Os custos e a prioridade que se deu ao projeto foi muito
criticado pela própria comunidade escolar, que apontava como mais preocupantes
a própria falta de espaços para realocar os alunos distanciados e a necessidade
de contratação de professores para cobrir os diferentes horários de aula e a
substituição dos professores da faixa de risco que não poderiam voltar às aulas
presenciais.
[1] Na Itália, a maioria das
salas de aulas são dotadas de carteiras “duplas”, a mesa com cadeiras para dois
alunos. Com a pandemia do novo coronavírus, a proposta mais divulgada (não sem
polêmicas) do Ministério da Educação foi a aquisição de carteiras individuais
com rodinhas, que permitiriam facilmente a administração do distanciamento
entre os alunos. Os custos e a prioridade que se deu ao projeto foi muito
criticado pela própria comunidade escolar, que apontava como mais preocupantes
a própria falta de espaços para realocar os alunos distanciados e a necessidade
de contratação de professores para cobrir os diferentes horários de aula e a
substituição dos professores da faixa de risco que não poderiam voltar às aulas
presenciais.
* Escritora e professora de
língua, literatura e cultura inglesa e anglo-americana na Università degli
Studi di Milano.