25 de julho de 2015

Deslocamentos: modos da economia, modos da ficção

Paulo César Thomaz

Foto de Don Bartletti


Nas últimas décadas constatamos a intensificação da circulação – material e imaterial – de bens e pessoas, primeiramente no âmbito de fronteiras circunscritas a determinada nacionalidade, para logo observá-la em geografias estrangeiras. Ainda que atinja as regiões do mundo de forma desigual, uma das preocupações mais relevantes dos estudiosos tem sido justamente dar conta da complexidade e da especificidade desse fenômeno na contemporaneidade. Nesse sentido, por exemplo, a ampla e interdisciplinar pesquisa do geógrafo brasileiro Rogério Haesbaert, reunida no livro O mito da desterritorialização, contribui com o debate ao colocar em cheque o discurso da desterritorialização por meio do aprofundamento da discussão sobre o conceito de multiterritorialidade.
Constituído como um “mito” para o autor, o conceito de desterritorialização estaria impossibilitado de distinguir o aspecto imanente da multiterritorialização na vida dos indivíduos e dos diferentes grupos sociais na contemporaneidade. Mais do que a desterritorialização desenraizadora, e os pressupostos ideológicos e políticos de cunho eurocêntrico que em muitos casos a sustentam, teríamos, em seu lugar, um permanente processo de reterritorialização, espacialmente descontínuo, sumamente complexo e frequentemente desigual.
Para Haesbaert, um dos aspectos regressivos de pensar em procedimentos de desterritorialização seria a demasiada simplicidade do conceito e a perspectiva política imobilizante que poderia esconder. Segundo o autor, em um mundo globalmente móvel, inestável, caracterizado pela imprevisibilidade e fluidez das redes e pela virtualidade do ciberespaço, estaríamos sujeitos aos caprichos dos grupos que verdadeiramente dominam estes fluxos, redes e imagens. Outro componente negativo consistiria em que, ao nutrir conceitualmente aqueles que defendem o fim de todo tipo de obstáculo espacial, o discurso da desterritorialização legitimaria de algum modo a cessão do poder às forças do mercado, ao permitir a fluidez global dos circuitos do capital, sobretudo do capital financeiro, num mundo em que o propósito a ser alcançado passa a ser o desaparecimento do Estado.
Diante desse cenário, seria fácil demonstrar como a literatura latino-americana, e mais especificadamente a brasileira e a argentina, não está alheia ao debate sobre esses intercâmbios. Um dos elementos medulares das narrativas desses países, de expressivo valor simbólico no imaginário cultural presente, trata-se precisamente da figuração desses trânsitos físicos e culturais por territórios continentais e intercontinentais, sobretudo americanos e europeus. Alguns escritores, inclusive, vivenciaram ou vivenciam essa experiência multiterritorial e a incorporam, de diferentes modos, a seus projetos estéticos.
Concomitantemente, outro aspecto que sobressai no que podemos chamar de “tarefa literária” de parte da produção narrativa latino-americana mais recente tem consistido na configuração de universos ficcionais em que uma série de formulações, declaradamente de ordem política e econômica, ganha relevo. Ao incorporar às suas narrativas – implícita e explicitamente – enunciados teórico-conceituais derivados de diferentes áreas do conhecimento (sociologia, filosofia e economia), que denunciam sobretudo o caráter dissociativo e desintegrador da sociedade atual, diferentes escritores tensionam a interpretação do presente e fazem que suas poéticas, em nosso entender, atuem também como um saber aproximativo sobre a contemporaneidade, entendido, nos termos do escritor argentino Sergio Chejfec, “não como um discurso que arbitre ou faça uma espécie de mediação entre a realidade e sua suposta importância, mas entre as versões culturais que se disputam o significado do presente”.
Não foram poucos os danos políticos, econômicos, éticos e culturais causados pelo exercício do poder autoritário na vida cotidiana da América Latina entre as décadas de 1960 e 1980. Renovadas pelas lógicas neoliberais das últimas décadas, estas implicações nefastas parecem ainda de algum modo orientar o eixo narrativo de textos ficcionais recentes. Assim, não podemos esquecer que a hegemonia das correntes neoliberais na América Latina das últimas décadas, em suas mais diversas materializações e matizações, forçou os Estados nacionais do continente a implantar um programa de desmanche e aniquilamento das estruturas coletivas que, quem sabe, teriam permitido uma maior democratização e republicanização dessas sociedades.
O predomínio de um mercado comandado pela racionalidade técnica, que opera zeloso dos interesses do capital financeiro e com o propósito de alcançar proveitos e lucros em um curto espaço de tempo, tem negado, sem dúvida, o fortalecimento dos espaços públicos e a transparência nas disposições econômicas e políticas fundamentais. Esta ordenação dificulta que se formem experiências e comunidades políticas capazes de fundar sua alteridade como conflito e diferenciação crítica. Para as sociólogas Cibele Saliba Rizek e Maria Célia Paoli, os anos 1990 significaram, por exemplo, a destruição de quase todas as formas e caminhos, institucionais e não institucionais, pelos quais se conduzia o debate sobre as potencialidades da democracia e da democratização brasileiras. As autoras apontam a perda da potência da política como destruição das possibilidades do campo político como solo e meio pelo qual se poderia aprofundar e realizar a disputa democrática. Sendo assim, podemos dizer que os escritores latino-americanos não estão alheios a essa imprevista configuração do social no contemporâneo, maquinada pela dissolução das esferas pública e privada e sobre a base da predominância da economia.
É de se presumir, portanto, que resíduos desse capitalismo liberal tardio, com feitios democráticos precários, exercido sobre a vida e o trabalho de milhões de latino-americanos, disparem narrativas literárias que, muitas vezes, figuram por meio de suas propostas estéticas precisamente o encolhimento das redes sociais, a desproletarização, a informalização da população, a despacificação da vida cotidiana, a desertificação organizativa e a indiferença da sociedade a determinados sujeitos sociais e territórios urbanos – sem desconsiderar, igualmente, os contornos abstratos e metafísicos que essas questões podem conter. Não podemos esquecer que Michael Foucault já identificava, nas primeiras formas do liberalismo do século XVIII, o paradoxo de que esta corrente de pensamento devia construir os mecanismos coercitivos para a fluidez controlada da liberdade em uma direção não prejudicial para o conjunto da sociedade, mas que com isto corria o risco de destruir aquilo que desejava criar.
Além disso, e para encerrar parcialmente esta discussão, cabe assinalar que estas práxis ficcionais conformam-se, particularmente, em um contexto em que a emancipação pelas letras observa certo esgotamento de suas forças como prática cultural e como resolução imaginária e simbólica do subdesenvolvimento latino-americano, embora esta desidratação simbólica pela qual passa a literatura não seja exclusiva desta expressão cultural, pois atinge as demais práticas discursivas da contemporaneidade.

                                                       ***

Este texto é um fragmento do artigo “Formulações do político e do econômico na contemporaneidade: os imigrantes de Luiz Ruffato e Sergio Chejfec” publicado originalmente na revista Horizontes Sociológicos, AAS, ano 2, número 3, pp. 59-66.

18 de julho de 2015

A construção do feminino no romance brasileiro contemporâneo

Regina Dalcastagnè

Imagem: Barbara Kruger

O corpo feminino é um território em permanente disputa. Sobre ele se inscrevem múltiplos discursos – vindos dos universos médico, legal, psicológico, biológico, artístico etc. – que não apenas dizem desse corpo, mas que também o constituem, uma vez que normatizam padrões, sexualidade, reprodução, higiene. A questão é que esses lugares legítimos de enunciação ainda são ocupados predominantemente por homens, instalados, é claro, em sua própria perspectiva social. A dificuldade surge porque, mesmo que sejam sensíveis aos problemas femininos e solidários (e nem sempre o são), os homens nunca viverão as mesmas experiências de vida e, portanto, verão o mundo social a partir de uma perspectiva diferente. E, como “o olhar não dobra a esquina”, alguma coisa sempre se perde.

Isso não é diferente na literatura. Entre todos os 555 romances publicados pelas principais editoras brasileiras (Companhia das Letras, Record, Rocco e Objetiva/Alfaguara) no período de 1990 a 2014, as autoras não chegam a 30% do total de escritores publicados. O que se reflete também na sub-representação das mulheres como personagens em nossa ficção – as mesmas pesquisas mostram que menos de 40% das personagens são do sexo feminino. Além de serem minoritárias nos romances, as mulheres também têm menos acesso à “voz”, isto é, à posição de narradoras, e estão menos presentes como protagonistas das histórias.

É possível especular que a maior familiaridade com uma perspectiva social determinada leva as mulheres a criarem mais personagens femininas e os homens, mais personagens masculinas – e o mesmo valeria para protagonistas e narradores. Resta explicar por que a discrepância é tão maior no caso dos escritores homens, que contam com menos de um terço de personagens femininas, enquanto as mulheres criam quase a metade de suas personagens no sexo masculino. A resposta talvez esteja na própria predominância masculina na literatura (e em outras formas de expressão), que proporciona às mulheres um contato maior com as perspectivas sociais masculinas. Outra hipótese é que, diante dos avanços promovidos pelo feminismo, os homens se sintam cada vez mais deslegitimados para construir a perspectiva feminina. Por fim, como lembrou a escritora Maria José Silveira, as escritoras também podem ser levadas a incluir mais personagens masculinas em suas obras para fugir da depreciativa qualificação de “romance feminino”, risco que os homens não correm.

Quando nos aprofundamos no modo como as personagens femininas são representadas, notamos disparidades ainda mais significativas, especialmente nas questões relacionadas ao corpo. Mas a principal diferença é que as autoras constroem uma representação feminina mais plural e mais detalhada, incluem temáticas da agenda feminista que passam despercebidas pelos autores homens e problematizam questões que costumam estar mais marcadas por estereótipos de gênero. Levantamentos pormenorizados mostram que as personagens femininas são mais saudáveis, mais escolarizadas, exercem profissões mais variadas, dependem menos dos homens quando são escritas por mulheres. Também são apresentadas em diferentes estágios da vida – são meninas, jovens, maduras e velhas, enquanto os homens se detêm mais na representação de mulheres jovens. Além disso, seus próprios corpos são construídos com mais detalhes e maior variedade quando feitos por mulheres.

Da mesma forma, as autoras descrevem mais cenas sexuais e com maior detalhamento – talvez a necessidade de marcar um espaço de liberdade de expressão, talvez uma tentativa de, finalmente, mostrar o sexo pela perspectiva feminina. Suas protagonistas não só fazem sexo com mais frequência como possuem um número maior de parceiros do que aquelas escritas pelos homens (embora a homossexualidade praticamente não apareça como opção). Também fazem mais sexo com amantes, traem mais e são mais traídas. O dado curioso é que, apesar da frequência e da variedade, as personagens das mulheres se sentem bem menos satisfeitas, em relação ao sexo e à própria sexualidade, do que as dos homens.

Também há muita discrepância na representação construída por homens e mulheres quando o assunto é maternidade. Elas têm mais filhos, se sentem mais felizes e realizadas em seu papel quando são escritas pelos homens. Quando escritas por mulheres, a gama de sentimentos em relação aos filhos é muito mais ampla, incluindo responsabilidade, cansaço, fracasso e culpa. E os pais, nessas narrativas, costumam ser uma grande ausência. Mas é outro tipo de ausência que chama atenção nos romances contemporâneos: aborto, problemas com fertilidade e violência doméstica são temas em grande medida silenciados, inclusive pelas autoras. Parece ser mais fácil atacar os tabus relacionados à sexualidade feminina, o que já é feito, de algum modo, na mídia em geral, do que representar, por exemplo, o sentimento de perda causado por um aborto involuntário ou mesmo voluntário, bem como os riscos e o estigma que pesa sobre aquelas que passaram pela experiência, comum entre tantas mulheres.

Por fim, é preciso dizer que esses dados se referem às personagens femininas brancas, cor que corresponde a quase 80% do total das personagens (masculinas e femininas) dos romances analisados e a mais de 90% dos/as escritores/as publicados/as pelas grandes editoras nacionais. Quando as personagens são negras, ou mestiças, as marcas de distinção são bastante reforçadas, mesmo entre as escritoras. Suas mulheres, nesse caso, perdem variedade e complexidade, tornando-se muito parecidas com aquelas construídas pelos homens – ou seja, são mais jovens, mais sexualizadas, mais dependentes e mais satisfeitas com os filhos, com os homens e com a situação em geral.

Se é legítimo entender que as mulheres formam um grupo social específico, na medida em que a diferença de gênero estrutura experiências, expectativas, constrangimentos e trajetórias sociais, por outro lado a vivência feminina não é una. Variáveis como raça, classe ou orientação sexual, entre outras, contribuem para gerar diferenciações importantes nas posições sociais das próprias mulheres – e elas, ao buscarem fazer suas próprias escolhas, ao aderirem a conjuntos de crenças e valores diversos, vão também perceber-se no mundo de maneiras diferenciadas. Os problemas e desafios que enfrentam são em parte comuns ao “ser mulher”, em parte específicos, em parte, até mesmo, opostos entre si. A riqueza desta condição feminina plural se estabelece exatamente na tensão entre unidade e diferença – o que pode gerar as contradições na representação feminina das personagens não-brancas, por exemplo. A questão que se coloca aqui diz respeito a quanto desta riqueza está presente na narrativa brasileira contemporânea.
***
Para uma análise mais completa dos dados, ver o artigo “Representações restritas: a mulher no romance brasileiro contemporâneo”, no livro Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea, organizado por Regina Dalcastagnè e Virgínia Maria Vasconcelos Leal. Vinhedo: Horizonte, 2010.

11 de julho de 2015

O que pode a criança?: nostalgia, criatividade e o mal na representação literária da infância

Anderson Luís Nunes da Mata


Foto: Harry Gruyaert

A infância é a alteridade mais íntima que podemos experimentar. A criança, quando vista no panorama da própria biografia do adulto, é o outro que fomos e que, ao mesmo tempo, nos compõe. “O menino é o pai do homem”, diz o narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas, logo, é preciso atentar para o que a memória é capaz de revelar acerca dessa meninice, a fim de se construir uma biografia coerente, em que a nostalgia seja a moldura para a exaltação de valores, ainda que decorrentes de traumas. Porém, quando a criança é, de fato, um outro, a nostalgia dá lugar ao estranhamento – e a infância do outro torna-se algo mais próximo de uma ameaça que de um tempo imaginado (e, frequentemente, conformista), em que se atam, pela narrativa, as pontas do presente e do passado.
                Desse modo, cercada pelos discursos da filosofia, das ciências, do direito, das artes, entre outras práticas e campos do conhecimento, a infância atrai atenção, porém nem sempre a voz da criança é ouvida. Etimologicamente, o termo “infância”, de origem latina, remete à incapacidade de falar. O que surpreende é que essa ideia de que a criança não tenha o que dizer persista no imaginário contemporâneo. No Brasil, uma das raras exceções é o trabalho de Walter Omar Kohan, professor da UERJ, que, acompanhando os questionamentos do filósofo norte-americano Gareth Matthews, tem investigado o pensamento infantil a partir de suas pesquisas sobre educação filosófica.
                No campo literário, não existe uma pauta de discussão sobre a possibilidade de as crianças serem autoras, embora se reconheça a potencialidade da imaginação infantil para o fazer poético, desde que seja como uma recriação de sua perspectiva, geralmente idealizada. Não é por acaso que Manoel de Barros, um dos poetas brasileiros mais populares das últimas décadas, tenha forçado os limites da linguagem poética e também da língua portuguesa por meio da recriação de uma voz lírica infantil, emoldurada pela nostalgia da inocência e da criatividade.
Na narrativa, no entanto, a representação da infância não é extensa. É possível supor que na lírica sua presença também seja escassa, embora não tenhamos os dados concretos para afirmá-lo. Os resultados preliminares de pesquisa sobre o romance contemporâneo, coordenada por Regina Dalcastagnè no Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, da Universidade de Brasília, constata que não são muitos os personagens infantis nesse universo. A partir de recenseamento das personagens dos romances brasileiros publicados pelas editoras Companhia das Letras, Alfaguara/Objetiva e Record, entre 2005 e 2014, verificou-se que as crianças, nesses romances, somam 8,1% do total de personagens; já as crianças narradoras são apenas 0,2% do total (19 personagens em um universo de 1557 listadas). O número é ainda mais reduzido se levarmos em consideração que grande parte desses narradores, 15 para ser mais preciso, se tornam adolescentes ou adultos ao longo da narrativa, tendo a infância apenas como ponto de partida para uma personagem cuja subjetividade está ancorada em outro espaço identitário. Apenas dois narradores, em O verão de Chibo (2008), de Vanessa Bárbara e Emílio Fraia, e em Vista parcial da noite (2006), de Luiz Ruffato, são crianças ao longo da maior parte da narrativa. No livro de Ruffato, no entanto, a personagem infantil não é a única narradora do romance.
Diante da constatação de que há poucas personagens infantis nos romances brasileiros contemporâneos, costuma-se questionar por que essa escassez constitui um problema no cenário da representação da infância na literatura atual. As respostas dependem do modo como se olha para o problema. Uma leitura que analise essas obras isoladamente, pode não levar em consideração o problema da representatividade da infância no conjunto dos textos, ainda que reflitam sobre a perspectiva social da infância e sobre a poética que essa perspectiva é capaz de elaborar. No entanto, ao olhar essas obras de longe, pensando no modo como elas se articulam entre si e com o campo literário, a escassez de representações significa um conjunto pouco diverso de perspectivas sociais. Se levarmos em consideração que essas obras talvez não tenham fôlego para repercutir entre crítica e público, pode-se supor que pouquíssimas dessas personagens ajudarão a compor o repertório de representações da infância do nosso tempo. A depender do modo de se ler essas poucas obras, elas terão, ainda, a reponsabilidade de dizer algo sobre a criança e a infância não só para o interior das suas páginas, mas para o campo literário como um todo.
Nos romances em que a biografia de uma personagem começa a ser narrada a partir da infância, há um modo de representá-la que não se esforça por elaborar uma zona de aproximação entre o autor adulto e o narrador infantil. O verão de Chibo, em que o narrador é um menino à espera do retorno do irmão, bem como Micróbios na cruz (2005), de Márcia Camargos, com uma narradora que atravessa a infância e a adolescência, são duas exceções a esse modo de representar a infância como uma etapa a ser cumprida, pois reelaboram a linguagem de modo a propor uma perspectiva do ser criança a partir do presente, descrevendo e narrando o mundo a partir dessa experiência. O “pasmo essencial” da criança, de que fala Alberto Caeiro, é recuperado por Camargos e Bárbara & Fraia nessas narrativas, que tentam propor uma dicção infantil marcada sobretudo pela perspectiva de um olhar imaginativo, que ressignifica as experiências, as pessoas e até mesmo os objetos do cotidiano da criança, de acordo com suas expectativas e vivências. É assim que Formiga, a narradora de Micróbios na cruz, repensa a cena da crucificação de Cristo, a partir da preocupação com a contaminação que as feridas expostas poderiam sofrer. É também desse modo que o narrador de O verão de Chibo fala do espaço em que se encontra a partir de uma perspectiva afetada pelo seu corpo, em que, por exemplo, milharais se agigantam devido à estatura do menino que os observa.
Em outro modo de registrar a infância, com assombro e, até mesmo, medo, a literatura brasileira não investe em narrativas sobrenaturais em que a alteridade infantil seja também sombria, como na literatura e no cinema de terror norte-americanos. Porém, a narrativização da violência urbana é o meio encontrado para a representação da criança monstruosa e do horror à brasileira. É daí que surge uma das personagens mais marcantes da ficção brasileira recente, tanto na literatura quanto no cinema: Zé Pequeno, de Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins. O romance, adaptado para o cinema por Fernando Meireles em 2002, traz essa criança, cuja monstruosidade está situada na satisfação que a violência lhe provoca. Mesmo que haja uma tentativa de expor a biografia conturbada da personagem, abandonada pelos pais, pelo Estado e pela própria comunidade, a escolha por introduzi-la na narrativa por meio de uma carnificina que ele comanda em um assalto a um motel é um modo de apresentar a criança como essa alteridade, cuja diferença, por ser incompreensível, deve ser temida e não acolhida. Existe ainda o contraponto com Buscapé, mas há algo de mais atraente no modo como Zé Pequeno pratica suas maldades. Embora o sadismo da personagem esteja próxima do absurdo, como a recepção do romance pautou-se pela valorização do seu realismo, a personagem é lida sob a clave, por vezes simplista, de que sua existência está ancorada não só na possibilidade de ele ser real, isto é sua verossimilhança, mas, o que é mais perigoso, na sugestão de que ele representa um tipo das periferias dos centros urbanos brasileiros. Na cena do assalto, fica evidente a opção da personagem pela violência excessiva, tendo em vista que o objetivo do crime – o roubo – já fora alcançado antes do início da matança. O sadismo, como o propulsor sombrio da perversidade infantil, acaba se tornando o elemento que, na narrativa, mantém grande parte da tensão na relação de Zé Pequeno, mesmo quando adulto, com os demais personagens: ele é, afinal, capaz de tudo.
“Ser capaz de tudo”, um dos atributos mais valorizados na representação da infância, ganha, então, um caráter ambivalente, pois, se anuncia a potencialidade do ser infantil na sua acepção romântica idealizada, como indiquei no livro O silêncio das crianças (2010), também assume o papel de anunciar que a infância, irresponsável e imprevisível, pode guardar sob si o mal. No caso do exemplo de Cidade de Deus, porém, esse sinal negativo sobre a potencialidade da criança não pesa sobre outro menino senão o pobre e negro, cuja meninice é posta em xeque porque sua agência violenta e cruel o desloca do lugar de silenciamento que costuma ser reservado às crianças. Longe de acusar Paulo Lins de preconceito, é interessante notar que em um universo de representações tão limitadas, um dos tropos que acompanham a representação da infância, o de guardião do mal, esteja, em nossa literatura contemporânea, traduzido na violência urbana e no medo do “menor delinquente”. Se são poucas as crianças nos textos, e menos ainda as negras e pobres, uma personagem como Zé Pequeno, pela dimensão que atinge na narrativa, carrega consigo aquilo que Ella Shohat e Robert Stam chamam de “fardo da representação”. Isso significa que em um universo limitado de representações de determinados grupos sociais, as personagens que forem identificadas com esses grupos terminarão por ocupar sozinhas o repertório de imagens disponíveis sobre aqueles grupos, representando, assim, um universo muito mais amplo do que a sua singularidade poderia pressupor, caso houvesse uma maior diversidade de imagens disponíveis.
Portanto, a representação da infância na literatura brasileira contemporânea encontra-se entre (i) uma poética que recupera o lirismo nostálgico do adulto que relembra a infância, (ii) uma recriação da perspectiva infantil que investe na potência da criatividade do seu olhar e (iii) uma figuração do horror como a possibilidade de exercício do mal contida na potência que caracteriza a infância. Esse pode parecer um conjunto diversificado de possibilidades de representações, mas a escassez de personagens infantis faz com que apenas alguns imprimam sua marca na história da literatura brasileira recente. Desse modo, autores como Manoel de Barros, Márcia Camargos e Vanessa Bárbara e Emílio Fraia, além de outros, como Conceição Evaristo, em Becos da memória (2006), Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor (2006) e João Anzanello Carascoza, em Aos 7 e aos 40 (2013), investem em representações da infância que traduzem uma diversidade de espaços – mais ou menos violentos, mais ou menos confortáveis, mais ou menos idealizados – em que personagens infantis circulam, assumem o turno de fala e recriam os mundos que habitam. Por outro lado, um texto como Cidade de Deus, de modo quase isolado, ocupa um espaço nos meios de comunicação de massa e na crítica especializada muito maior do que os demais, talvez, justamente, por destacar uma personagem como Zé Pequeno, que pode justificar, na literatura e fora dela, a dificuldade de acolhimento das crianças pobres, negras, sem acesso à educação formal, moradoras da periferia, enfim, aquelas que preenchem perfil do temido “menor infrator”, situado em um lugar a quem é negado do direito de ser apenas um menino. É uma equação que coloca a infância em um lugar impossível, pois, por outro lado, ser apenas um menino poderia significar ser desempoderado no silêncio ao qual a criança está circunscrita na sua condição de infante.
Afinal, o que pode a criança? Esse é um questionamento que atinge o cerne da balança de poder entre as diferentes imagens das crianças na literatura, bem como entre os sujeitos ficcionais infantis e adultos. É, afinal, uma das questões-chave para se pensar a representação da criança e da infância na literatura, de modo que se possa afirmar o que a criança pode, e, ao mesmo tempo, compreender o que tememos quando determinamos o que a criança não pode.

 A revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea acaba de publicar um dossiê sobre “literatura e infância”. Confira aqui.

4 de julho de 2015

Ultrapassando limites, desfazendo fronteiras: a literatura e suas práticas na contemporaneidade

                                                                                                                                     Maurício Silva

Foto: Regina Dalcastagnè

Dois grandes mitos impactam, desde o início, o debate sobre a sociedade moderna no Brasil e, no limite do que aqui nos propusemos discutir, sobre a literatura brasileira contemporânea: o mito da democracia racial, formulada a partir dos estudos socioantropológico de Gilberto Freyre acerca da constituição da sociedade brasileira colonial; e o mito da cordialidade, explicitado por Sérgio Buarque de Holanda, ao estudar as "raízes" de nossa formação histórica. Ao contrário do que esses dois mitos sugerem, a sociedade brasileira é, de modo geral, embora de forma nem sempre evidente, uma sociedade cronicamente racista e violenta, o que, em definitivo, colocar por terra ambas as representações simbólicas do Brasil como uma nação socialmente democrática e psicologicamente afetiva.

Considerando a literatura, grosso modo, uma expressão estética da sociedade na qual se insere, não causa espécie o fato de ela também se constituir – e, assim, poder ser estudada – a partir dessas duas tônicas recorrentes de nossa formação social: o racismo e a violência. Ambas se conjugam, a nosso ver, na constituição de uma grande parcela – que, se não for a maior, é seguramente a mais expressiva atualmente – da produção literária brasileira mais recente, resultando na conformação de dois grandes conjuntos de produção literária a que a crítica tem convencionado chamar de literatura negra ou afro-brasileira, para o primeiro grupo, e literatura marginal ou periférica, para o segundo.

Embora ambos os grupos possuam suas próprias características definidoras, bem como suas peculiaridades estéticas – afirmando-se, portanto, como "categorias" autossuficientes –, contribuem, em conjunto, para com a configuração da atual produção literária brasileira, unindo forças não apenas no sentido de se afirmarem como "tendências" literárias prevalentes no contexto socioliterário nacional, mas também no propósito de assinalarem um movimento de resistência e de reação diante do campo hegemônico da literatura canônica produzida/estudada nas e editada/veiculada pelas instâncias legitimadoras de nossa produção cultural. Permutando princípios estéticos e fundamentos socioculturais semelhantes e afins – numa aliança que confronta a "alta cultura" sustentada pelos intelectuais que constituem o establishment cultural brasileiro –, ambos os grupos concebem suas criações direta ou indiretamente norteados pelo universo simbólico-discursivo do racismo e da violência radicados em nossa sociedade, compartilhando experiências e motivações, expectativas e memórias as mais diversas.

Desse modo, tanto o racismo quanto a violência atuariam, na reflexão de nossa produção literária contemporânea, como espécies de matrizes conceituais por meio das quais se poderia pensar mais sistematicamente projetos literários individuais e coletivos, conferindo a esta mesma produção, se não uma marca recorrente a lhe definir o perfil, ao menos um tonos geral, capaz de lhe outorgar certa identidade estética. Assim sendo, consciente ou inconsciente presentes como princípio norteador de nossas relações sociais – o que, consequentemente, resulta em relações injustas e assimétricas –, o racismo e a violência não devem ser tomados apenas como "marcas estéticas" latentes ou patentes de nossa atual produção literária, mas como constituintes discursivos que, ora difusos, ora concentrados, ora explícitos, ora sub-reptícios, ora centrais, ora periféricos, insinuam-se, deliberadamente ou não, nos interstícios do tecido ficcional dessa literatura. Daí, inclusive, a necessidade, no contexto circunscrito, de se instituir novos protocolos analíticos e metodológicos de leitura e análise literárias. 

A literatura, pelo menos após o advento da modernidade, quase sempre esteve vinculada a métodos e procedimentos hegemônicos, que se traduziam como fórmulas padronizadas, estruturas pré-determinadas e relações distintas, estas últimas no sentido bourdieusiano do termo. Grosso modo, a literatura se apresentava – e, principalmente, se representava – a partir de um duplo locus de enunciação, fundamental para sua constituição enquanto expressão artística: o mundo acadêmico, que pode ser associado à escola e universidades, às academias e instituições culturais, às bibliotecas, editoras e livrarias em geral, onde era vista como resultado de uma atitude laborativa (pesquisa, produção científica, leitura individualizada, congressos e eventos similares etc.); e o espaço social, representado pelos salões literários, pelos periódicos mundanos (lembremos do papel desempenhado pelos folhetins para a constituição de uma legibilidade burguesa), pelos meios de comunicação de massa e ocasionalmente por algumas academias, entre outros, onde, de modo geral, se cultivava, mais do que a literatura propriamente dita, a vida literária, num sentido lato – nesses espaços, finalmente, a literatura era vista, antes, como produto de uma atitude colaborativa (encontros sociais, reuniões literárias, leitura comunitária, adaptações populares etc.).

De qualquer maneira, seja no âmbito do academicismo, seja no âmbito da sociabilidade, a literatura tem sido, historicamente, representação imaginária (no sentido de pode ser definida como um constructo ficcional) de instâncias sociais, políticas e culturais hegemônicas, cujos limites e fronteiras sempre estiveram mais ou menos bem definidos, em razão do estabelecimento de normas e regras tanto intrínsecas (estrutura ficcional, gramática normativa, estilos formais, grafocentrismo etc.) quanto extrínsecas (suportes de veiculação, formas de divulgação, modelos de representação etc.) à própria literatura.

Contemporaneamente, tais limites e fronteiras – vale dizer, normas e regras pré-determinada, métodos e procedimentos canônicos, fórmulas e estruturas padronizadas, relações distintas e instâncias legitimadoras – têm sido sistematicamente questionados, num agenciamento que, na prática, se exprime como um contumaz processo de ruptura, inversão, apagamento, rasura, desconstrução e quebra de uma ordem discursiva estabelecida – a ordem da literatura, num sentido similar àquele que Foucault confere ao que chama de "ordem do discurso".

Em suma, está-se a se referir a uma outra atitude perante o que apenas por conveniência ainda pode ser denominado literatura, no sentido estrito do termo (que não deixa também de ser restrito): trata-se, portanto, de uma outra literatura. E essa outra literatura – que é, aliás, o que de melhor se verifica hoje em dia, em termos de produção estética – apresenta, em sua constituição geral, três níveis distintos: o nível linguístico, em que se privilegia a oralidade e os gestos discursivos, a gramática não padrão e a livre expressividade estilística, o "empoderamento" da palavra e os códigos desviantes, tudo resumido no que podemos chamar de uma semântica do dissenso; o nível ideológico, que se expressa como assunção do conflito declarado, como adoção do ato combativo, como perspectiva crítica, como opção pelas minorias etc., tudo agora resumido numa espécie singular de estética do enfrentamento; o nível social, representado por outras formas de divulgação (edições artesanais, antologias pluriautorais etc.), modos de produção (trabalho coletivo, dando origem a uma nova categoria de associativismo cultural, os "coletivos de"), espaços de criação (espaços alternativos e não formais, como bares, praças e ruas, constituindo uma nova cartografia literária, cuja gênese é, via de regra, periférica), formas de expressão (saraus, slams etc.), tudo isso resumido, por fim, num conjunto de microssistemas divergentes.

Esses três níveis – associados aqui ao que chamamos de semântica do dissenso, estética do enfrentamento e microssistemas divergentes – exprimem, de modo cabal e definitivo, não apenas um produto, mas também uma prática que nascem de uma concepção absolutamente contra-hegemônica de literatura, construída a partir de uma ruptura do locus de enunciação oficializado por uma visão concêntrica da literatura, incondicionalmente substituída, neste novo contexto, por uma perspectiva excêntrica dela. Além disso, tais níveis de constituição dessa nova literatura assinalam um vasto e profundo tensionamento do universo literário, marcado por uma dialética que, definitivamente, não se resolve como synthesis (conjunção), mas, ao contrário, como analysis (dispersão).


*Este texto é o esboço de um artigo que está sendo escrito sobre a literatura marginal/periférica no Brasil contemporâneo.