Igor Ximenes Graciano
M. C. Escher, Mão com esfera refletora (1935)
|
Na litografia de M. C. Escher, um autorretrato, ele aparece refletido em
uma esfera de vidro, de modo que, além de seu busto, é possível ver o ambiente
ao redor – um escritório com poltronas, uma escrivania ao fundo, a janela, uma
prateleira com livros, alguns quadros etc. A ilustração, Mão com esfera refletora (1935), uma das mais famosas da produção
do artista gráfico holandês, não se restringe ao que aparece refletido na
esfera, como também mostra a mão que a segura. Esse detalhe é o que torna a
imagem tão significativa, pois ali há um encontro da mão “real” com a refletida
em um mesmo ponto, na base da esfera, figurando no centro o autor e seu olhar
que nos olha.
Outra famosa litografia do artista, Mãos desenhando
(1948), também traz essa abordagem metalinguística, pois as duas mãos que
desenham são produto de seu gesto de desenhar, quando da superfície plana do
papel, em que se encontram os punhos em estágio mais elementar do desenho,
sobressaem as mãos representadas em sua tridimensionalidade, com volume, sombra
e detalhes de um desenho mais complexo, e por isso mesmo mais “real”. O
paradoxo, expresso por meio de espaços e situações logicamente impossíveis, foi
uma das obsessões de Escher, assim como a ideia de infinito, que surge representado
no espaço limitado da obra.
A evocação dessas duas imagens remete a uma das características mais
divulgadas da arte: sua autorreferencialidade. Entre fins do século XIX e
início do XX, quando as vanguardas vieram anunciar a “desumanização da arte”,
na expressão de Ortega y Gasset, ou seja, seu distanciamento de um realismo
ingênuo, que pretende revelar o mundo e seus habitantes por meio da semelhança,
buscou-se o estranhamento, a desautomatização do olhar ao invés do conforto do
reconhecimento. Daí as obras perderem sua transparência, como se abríssemos uma
janela e víssemos nada mais que a paisagem, e não – como de fato é – uma
descrição por meio de algumas palavras arbitrariamente escolhidas pelo escritor
ou um conjunto de cores e texturas tiradas da paleta do pintor. Quando não abre
mão da artificialidade da obra, chegando mesmo a evidenciá-la, o artista
modernista ainda pretende revelar algo (ou revelar-se), só que indiretamente,
aceitando que o resultado de seu ofício é opaco, não transparente, e por isso mesmo
repleto de nuances que não levam à verdade da paisagem, mas às possibilidades
de sua aparência: objeto que se dá em construção.
Se esse voltar a si não
é propriamente um atributo das vanguardas, pode-se falar que, a partir delas, o
uso da metalinguagem foi empreendido de forma militante, em parte como resposta
historicamente contextualizada à preponderância da estética realista do século
XIX nas diversas manifestações artísticas. Na literatura, foi o momento de
consagração do grande romance burguês, quando na França pós-iluminista, seu
centro irradiador, segue-se um itinerário que vai dos grandes painéis de Balzac
ao naturalismo de Zola, no que Auerbach, em Mimesis,
chamou de “realismo moderno”, um ideal de representação que se pretende
absoluto, pleno.
Indo além das experiências formais do início do
séc. XX – sem contudo esquecer que ali está sua origem ideológica e formal –,
em um breve passar de olhos em sinopses de romances contemporâneos, é notável a
frequência com que o escritor aparece como protagonista. Devido a esse objeto
tão próximo, na verdade confundindo-se com ele, pode-se inferir, a despeito de
uma leitura aprofundada do todo dessa produção, que o narrador do “realismo
clássico” saiu de cena desde a investida das vanguardas e nem sequer relutou em
voltar, pelo menos em sua face tradicional, “divina”.
Aproveitando-se ainda da assertiva de Auerbach, uma vez que o objeto do
escritor é ele próprio, não há como esquecer de si, resultando inviável a
fórmula em que “seu coração serve-lhe tão somente para sentir o dos outros”. O
fato de o escritor buscar “espelhar-se”, entretanto, indica que a maior parte
dessas narrativas recentes sustenta-se numa estética realista, porém de um
realismo problematizado, já que consciente da insuficiência de qualquer
representação, seja do mundo e suas paisagens, seja do outro, principalmente do
outro. Sabendo que não pode se anular, o escritor-personagem posta-se no centro
da cena, vendo (narrando) o mundo não como Deus, mas como homem, interessado e
impuro.
Na literatura brasileira, o escritor-personagem não é novidade, bastando
lembrar, entre outros, Memórias
Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, e Angústia, de Graciliano Ramos, para ficarmos na primeira e segunda
hora modernistas. Contudo, se não se trata de uma novidade do ponto de vista de
seu aparecimento, o que chama a atenção na produção mais recente é a
quantidade, ou pelo menos seu aumento sistemático desde os anos 1990. Um bom
indicador disso é a pesquisa feita pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, coordenada por Regina Dalcastagnè.
Entre os resultados da pesquisa, Dalcastagnè apresenta um perfil dos
escritores brasileiros a partir dos romances publicados nos períodos entre
1965-1979 e 1990-2004 (recorte válido para outros indicadores). Com isso, o que
resulta é a evidência em números (algo aquém e além do que se espera de uma
abordagem teórica “literária” do fenômeno literário): a maior parte dos
escritores são homens, brancos, com diploma universitário, moradores dos
grandes centros urbanos e que portanto realizam, nas obras, seu imaginário a
partir dessa perspectiva. Sendo a pesquisa voltada para o mapeamento dos
personagens na prosa contemporânea, o índice mais significativo para a
discussão empreendida aqui é o que mostra a ocupação dos personagens
masculinos. No universo dos romances escritos entre 1965 e 1979, os personagens
apresentados como escritores estão na terceira colocação, com 6,1% do total. Já
no período mais recente, de 1990 a 2004 – em que se verifica também um aumento
do número de publicações – os escritores ocupam o topo da tabela, com 8,5% do
total de personagens.
A despeito, aqui, de se observar as causas e consequências do
silenciamento, no que tange à expressão literária, dos diversos grupos que se
encontram à margem das publicações (os autores) e da representação ficcional (os
personagens), o enfoque recai justamente sobre as fissuras desse centro
privilegiado: quais as implicações de sua expressão literária hoje? Haveria um
projeto comum, não declarado, a toda essa produção romanesca cujo tema é, cada
vez mais, não só o fazer literário, mas sua intimidade às vezes inconfessável?
Em termos mais corriqueiros de história
literária, o momento atual não se faz compreender com marcos autoexplicativos em
manifestos ou algo do gênero. As narrativas a que nos referimos são antes um
sintoma da vida literária das últimas décadas do que a manifestação consciente
de um projeto estético-ideológico. O escritor surge como personagem em parte
porque, no âmbito maior das relações sociais, há um interesse generalizado pela
vida privada, momento em que a intimidade torna-se um produto estranhamente
valioso (pois adquire valor por ser banal) para consumo nas diversas mídias. No
universo das letras, o termo autoficção, ainda que pouco esclarecedor
teoricamente, é útil por definir um filão editorial a essas obras que se valem
da confusão entre os protocolos de leitura da ficção e da biografia, ou seja,
do que é “literatura” e do que é “documento”.
Afinal, a ambiguidade entre ficção e autobiografia é comum (e
desejada) em boa parte dessas obras, pois o autor fica a meio caminho da
prática discursiva que o responsabiliza pelo que diz e outra que o resguarda
sob a máscara da ficção, liberando-o da irredutibilidade dos fatos “verídicos”.
Esse entre-lugar, ao instabilizar a recepção da obra, ora afirmando ora
quebrando o pacto de verdade, deixa transparecer um pouco do contexto real da
criação literária no espaço da ficção, já que o personagem carrega a sombra do
autor de carne e osso. Tal identidade leva o leitor, segundo Lejeune em O pacto autobiográfico, “a ler os
romances não apenas como ficções
remetendo a uma verdade da ‘natureza humana’, mas também como fantasmas reveladores de um indivíduo”. O
que avulta desse jogo de espelhos é a tentativa de narrar o eu e a incapacidade
de alcançar o outro em um mundo irremediavelmente fragmentado. Trata-se do que
a crítica Lucia Helena chama (no livro com o mesmo título) de “ficções do
desassossego”.
As ficções do desassossego têm na sua origem a origem da crise. Pode-se
especular que esses romances confrontam criticamente o cenário político, social
e humano pelo discurso ficcional ao questionarem os motivos e implicações da
escrita literária, no entanto o que de fato assoma a partir da sua leitura é o
impasse. Escrever, nesse caso, não se apresenta como uma solução, instrumento
viável de superação das contradições, mas como o problema.
Por isso, repetimos que as narrativas do escritor-personagem –
centro instável do campo literário brasileiro hoje – não pressupõem uma
linguagem transparente que almeja revelar
o mundo e o outro. Não. Essas ficções antes esgarçam a linguagem e apontam para
o gesto literário, fazendo da escrita uma vitrine na qual vemos sobretudo o
escritor, “um corpo inexistente apenas a
perceber o que se passa em volta além do vidro, que apenas reconhece estar ali
para ser visto sem nada o que mostrar”, nos termos do narrador de Berkeley em Bellagio, romance de João
Gilberto Noll.
Sem nada o que mostrar a não ser o próprio
corpo (inexistente), o escritor como personagem se expõe, lançando seu gesto
para esse outro que o observa atrás do vidro, o leitor, aguardando que ele
encontre algum sentido, ou vá embora, indiferente.
O texto completo
pode ser encontrado no livro Pelas
margens: representação na narrativa brasileira contemporânea, organizado
por Regina Dalcastagnè e Paulo C. Thomaz (editora Horizonte).