26 de setembro de 2015

Considerações sobre um centro instável: o escritor-personagem no romance brasileiro recente

Igor Ximenes Graciano


M. C. Escher, Mão com esfera refletora (1935)


Na litografia de M. C. Escher, um autorretrato, ele aparece refletido em uma esfera de vidro, de modo que, além de seu busto, é possível ver o ambiente ao redor – um escritório com poltronas, uma escrivania ao fundo, a janela, uma prateleira com livros, alguns quadros etc. A ilustração, Mão com esfera refletora (1935), uma das mais famosas da produção do artista gráfico holandês, não se restringe ao que aparece refletido na esfera, como também mostra a mão que a segura. Esse detalhe é o que torna a imagem tão significativa, pois ali há um encontro da mão “real” com a refletida em um mesmo ponto, na base da esfera, figurando no centro o autor e seu olhar que nos olha.
Outra famosa litografia do artista, Mãos desenhando (1948), também traz essa abordagem metalinguística, pois as duas mãos que desenham são produto de seu gesto de desenhar, quando da superfície plana do papel, em que se encontram os punhos em estágio mais elementar do desenho, sobressaem as mãos representadas em sua tridimensionalidade, com volume, sombra e detalhes de um desenho mais complexo, e por isso mesmo mais “real”. O paradoxo, expresso por meio de espaços e situações logicamente impossíveis, foi uma das obsessões de Escher, assim como a ideia de infinito, que surge representado no espaço limitado da obra.
A evocação dessas duas imagens remete a uma das características mais divulgadas da arte: sua autorreferencialidade. Entre fins do século XIX e início do XX, quando as vanguardas vieram anunciar a “desumanização da arte”, na expressão de Ortega y Gasset, ou seja, seu distanciamento de um realismo ingênuo, que pretende revelar o mundo e seus habitantes por meio da semelhança, buscou-se o estranhamento, a desautomatização do olhar ao invés do conforto do reconhecimento. Daí as obras perderem sua transparência, como se abríssemos uma janela e víssemos nada mais que a paisagem, e não – como de fato é – uma descrição por meio de algumas palavras arbitrariamente escolhidas pelo escritor ou um conjunto de cores e texturas tiradas da paleta do pintor. Quando não abre mão da artificialidade da obra, chegando mesmo a evidenciá-la, o artista modernista ainda pretende revelar algo (ou revelar-se), só que indiretamente, aceitando que o resultado de seu ofício é opaco, não transparente, e por isso mesmo repleto de nuances que não levam à verdade da paisagem, mas às possibilidades de sua aparência: objeto que se dá em construção.
Se esse voltar a si não é propriamente um atributo das vanguardas, pode-se falar que, a partir delas, o uso da metalinguagem foi empreendido de forma militante, em parte como resposta historicamente contextualizada à preponderância da estética realista do século XIX nas diversas manifestações artísticas. Na literatura, foi o momento de consagração do grande romance burguês, quando na França pós-iluminista, seu centro irradiador, segue-se um itinerário que vai dos grandes painéis de Balzac ao naturalismo de Zola, no que Auerbach, em Mimesis, chamou de “realismo moderno”, um ideal de representação que se pretende absoluto, pleno.
Indo além das experiências formais do início do séc. XX – sem contudo esquecer que ali está sua origem ideológica e formal –, em um breve passar de olhos em sinopses de romances contemporâneos, é notável a frequência com que o escritor aparece como protagonista. Devido a esse objeto tão próximo, na verdade confundindo-se com ele, pode-se inferir, a despeito de uma leitura aprofundada do todo dessa produção, que o narrador do “realismo clássico” saiu de cena desde a investida das vanguardas e nem sequer relutou em voltar, pelo menos em sua face tradicional, “divina”.
Aproveitando-se ainda da assertiva de Auerbach, uma vez que o objeto do escritor é ele próprio, não há como esquecer de si, resultando inviável a fórmula em que “seu coração serve-lhe tão somente para sentir o dos outros”. O fato de o escritor buscar “espelhar-se”, entretanto, indica que a maior parte dessas narrativas recentes sustenta-se numa estética realista, porém de um realismo problematizado, já que consciente da insuficiência de qualquer representação, seja do mundo e suas paisagens, seja do outro, principalmente do outro. Sabendo que não pode se anular, o escritor-personagem posta-se no centro da cena, vendo (narrando) o mundo não como Deus, mas como homem, interessado e impuro.
Na literatura brasileira, o escritor-personagem não é novidade, bastando lembrar, entre outros, Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, e Angústia, de Graciliano Ramos, para ficarmos na primeira e segunda hora modernistas. Contudo, se não se trata de uma novidade do ponto de vista de seu aparecimento, o que chama a atenção na produção mais recente é a quantidade, ou pelo menos seu aumento sistemático desde os anos 1990. Um bom indicador disso é a pesquisa feita pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, coordenada por Regina Dalcastagnè.
Entre os resultados da pesquisa, Dalcastagnè apresenta um perfil dos escritores brasileiros a partir dos romances publicados nos períodos entre 1965-1979 e 1990-2004 (recorte válido para outros indicadores). Com isso, o que resulta é a evidência em números (algo aquém e além do que se espera de uma abordagem teórica “literária” do fenômeno literário): a maior parte dos escritores são homens, brancos, com diploma universitário, moradores dos grandes centros urbanos e que portanto realizam, nas obras, seu imaginário a partir dessa perspectiva. Sendo a pesquisa voltada para o mapeamento dos personagens na prosa contemporânea, o índice mais significativo para a discussão empreendida aqui é o que mostra a ocupação dos personagens masculinos. No universo dos romances escritos entre 1965 e 1979, os personagens apresentados como escritores estão na terceira colocação, com 6,1% do total. Já no período mais recente, de 1990 a 2004 – em que se verifica também um aumento do número de publicações – os escritores ocupam o topo da tabela, com 8,5% do total de personagens. 
A despeito, aqui, de se observar as causas e consequências do silenciamento, no que tange à expressão literária, dos diversos grupos que se encontram à margem das publicações (os autores) e da representação ficcional (os personagens), o enfoque recai justamente sobre as fissuras desse centro privilegiado: quais as implicações de sua expressão literária hoje? Haveria um projeto comum, não declarado, a toda essa produção romanesca cujo tema é, cada vez mais, não só o fazer literário, mas sua intimidade às vezes inconfessável?
Em termos mais corriqueiros de história literária, o momento atual não se faz compreender com marcos autoexplicativos em manifestos ou algo do gênero. As narrativas a que nos referimos são antes um sintoma da vida literária das últimas décadas do que a manifestação consciente de um projeto estético-ideológico. O escritor surge como personagem em parte porque, no âmbito maior das relações sociais, há um interesse generalizado pela vida privada, momento em que a intimidade torna-se um produto estranhamente valioso (pois adquire valor por ser banal) para consumo nas diversas mídias. No universo das letras, o termo autoficção, ainda que pouco esclarecedor teoricamente, é útil por definir um filão editorial a essas obras que se valem da confusão entre os protocolos de leitura da ficção e da biografia, ou seja, do que é “literatura” e do que é “documento”.
Afinal, a ambiguidade entre ficção e autobiografia é comum (e desejada) em boa parte dessas obras, pois o autor fica a meio caminho da prática discursiva que o responsabiliza pelo que diz e outra que o resguarda sob a máscara da ficção, liberando-o da irredutibilidade dos fatos “verídicos”. Esse entre-lugar, ao instabilizar a recepção da obra, ora afirmando ora quebrando o pacto de verdade, deixa transparecer um pouco do contexto real da criação literária no espaço da ficção, já que o personagem carrega a sombra do autor de carne e osso. Tal identidade leva o leitor, segundo Lejeune em O pacto autobiográfico, “a ler os romances não apenas como ficções remetendo a uma verdade da ‘natureza humana’, mas também como fantasmas reveladores de um indivíduo”. O que avulta desse jogo de espelhos é a tentativa de narrar o eu e a incapacidade de alcançar o outro em um mundo irremediavelmente fragmentado. Trata-se do que a crítica Lucia Helena chama (no livro com o mesmo título) de “ficções do desassossego”.
As ficções do desassossego têm na sua origem a origem da crise. Pode-se especular que esses romances confrontam criticamente o cenário político, social e humano pelo discurso ficcional ao questionarem os motivos e implicações da escrita literária, no entanto o que de fato assoma a partir da sua leitura é o impasse. Escrever, nesse caso, não se apresenta como uma solução, instrumento viável de superação das contradições, mas como o problema.
Por isso, repetimos que as narrativas do escritor-personagem – centro instável do campo literário brasileiro hoje – não pressupõem uma linguagem transparente que almeja revelar o mundo e o outro. Não. Essas ficções antes esgarçam a linguagem e apontam para o gesto literário, fazendo da escrita uma vitrine na qual vemos sobretudo o escritor, “um corpo inexistente apenas a perceber o que se passa em volta além do vidro, que apenas reconhece estar ali para ser visto sem nada o que mostrar”, nos termos do narrador de Berkeley em Bellagio, romance de João Gilberto Noll.
Sem nada o que mostrar a não ser o próprio corpo (inexistente), o escritor como personagem se expõe, lançando seu gesto para esse outro que o observa atrás do vidro, o leitor, aguardando que ele encontre algum sentido, ou vá embora, indiferente.


O texto completo pode ser encontrado no livro Pelas margens: representação na narrativa brasileira contemporânea, organizado por Regina Dalcastagnè e Paulo C. Thomaz (editora Horizonte).

19 de setembro de 2015

Ser uma escritora brasileira contemporânea

Virgínia Maria Vasconcelos Leal

Foto: Regina Dalcastagnè
Em meio a tanta variedade de títulos e nomes que surgiram no mercado editorial brasileiro nos últimos vinte anos, uma reflexão a respeito da inserção das mulheres se impõe. Afinal, é fato que a presença feminina cresceu em muitos setores sociais, políticos e culturais. Mas o que significa ser uma escritora contemporânea no estado atual do campo literário? Nesse sentido, o conceito de campo literário de Pierre Bourdieu mostra-se bastante produtivo, devido a seu diálogo com o campo social. Em sua teoria, as mudanças externas ao campo literário provocam alterações nas posições de seus agentes, ao permitir a chegada de novo/as produtores/as e de consumidores/as no espaço social. E com as conquistas feministas não foi diferente. Ser uma escritora contemporânea, então, é dialogar com a história da inserção das mulheres no campo literário, considerando-se a atuação dos movimentos feministas como força social. Recém-ingressas, em uma perspectiva histórica, até mesmo ao sistema escolar, nomes de mulheres quase não são encontrados em capas de romances, mesmo nos tempos atuais, quando muitos consideram a discussão já ultrapassada.
No escopo das escritoras brasileiras, se feministas ou não, se trabalham questionando ou ratificando os papéis tradicionais de gênero, em diálogo ou não com a categoria de raça e/ou orientação sexual, se querem fazer parte ou negam a existência de uma literatura feminina, isso cada trajetória, cada obra e cada perspectiva crítica poderá responder. Contudo, ao aparecer uma escritora e sua obra, o conceito de gênero, necessariamente, movimenta-se, pois está vinculado ao sistema de significações presentes em uma sociedade. No entanto, pensar uma construção comum de uma representação de gênero para essas autoras seria classificá-las como um grupo com objetivos também comuns? Mas todas têm trajetórias como indivíduos, que geraram obras também individualizadas. Iris Young propõe, então, categorizar o gênero como “serialidade”.  Ela defende que as estruturas de gênero não definem qualidades específicas para as mulheres, mas os fatos sociais e materiais com os quais cada indivíduo deve lidar. Para ela, cada pessoa, subjetiva e empiricamente, relaciona-se com as estruturas de gênero de forma variável. Não há como negar que elas existem, como a divisão sexual do trabalho, a heterossexualidade compulsória, as relações com o corpo, as estruturas linguísticas, entre outras. Para algumas mulheres, em contextos sociais e individuais específicos, outras relações de identidade, como a nacionalidade, a classe, a etnia, podem ser mais definidoras de si mesmas. Por outro lado, mesmo que elas nunca se identifiquem com outras mulheres, o gênero “serializa” a todas, mas de modo particular.
De certa forma, mesmo que não aprovem a categoria de uma “literatura feminina” toda própria, as autoras terminam dialogando com o gênero. As escritoras são sempre perguntadas, por exemplo, se fazem literatura feminina – um termo que emoldura resenhas sobre suas obras e seus posicionamentos a respeito. Ou seja, as escritoras têm que lidar com o seu gênero, seja pela negação ou apropriação. Um exemplo relevante de final do século XX para o XXI foi o fenômeno das antologias de contos. Se, em duas antologias – Geração 90: manuscritos de computador (2001) e Geração 90: os transgressores (2003), organizadas por Nelson de Oliveira e publicadas pela Editora Boitempo – , de 33 escritores reunidos, havia apenas quatro mulheres (Cíntia Moscovich, Simone Campos, Luci Collin e Ivana Arruda Leite), em duas outras, organizadas por Luiz Ruffato e publicadas pela editora Record, o gênero das escritoras foi um dos critérios de escolha: 25 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2004) e Mais 30 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2005).
O próprio fato de existirem antologias como essas já reflete suas contradições. Até que ponto um recorte tão específico (“Mulheres”) não termina por contribuir para a sua própria limitação a um “gueto” editorial, como se não fizessem parte da “literatura geral”? As antologias de contos suscitam questões fundamentais, de difícil resolução. Existem temas exclusivos para as mulheres escritoras tratarem? Será que é o gênero da escritora que a faz dominar (bem) as técnicas narrativas na transformação de uma vivência comum a muitas mulheres em matéria literária? Bem, mulheres foram escolhidas para comporem o volume por serem mulheres.   Estilos e temáticas não foram o critério, mas sim seu gênero. Aí mora toda a complexidade para se pensar uma significação única para uma literatura feita por nós, haja vista tantas possibilidades.
Posto isso, outra resposta problemática, já no campo do romance, relaciona-se à coleção Amores extremos, iniciada em 2001, e também proposta pela Editora Record. Romancistas já conhecidas foram convidadas a escrever sobre aspectos das relações amorosas. Assim, Lívia Garcia-Roza, Marilene Felinto, Heloísa Seixas, Maria Adelaide Amaral, Letícia Wierzchowski, Helena Jobim e Ana Maria Machado foram chamadas a escrever sobre amor em diversas facetas – desacerto, perda, desejo, romantismo, sedução, pecado e tempo (conforme seus subtítulos). Também o gênero “serializou” as escritoras que, por serem mulheres, entenderiam dos ciclos amorosos, segundo a concepção essencialista anunciada pelas orelhas das capas.
Entre os livros da referida coleção, está Solo feminino, de Lívia Garcia-Roza, uma das mais profícuas autoras da virada do milênio. Em muitos de seus romances, como Cine Odeon, Meus queridos estranhos, Meu marido e Milamor, ela representa o enlouquecimento “linguístico” de suas personagens encerradas na unidade familiar tradicional. Ao mesmo tempo que traz novas configurações, suas mães e filhas, em especial, ainda estão em uma impossibilidade de comunicação plena. As suas narradoras são, na maioria das vezes, nada confiáveis, pois vivem a família como uma instituição que as adoece.
Outra escritora, que tem uma produção grande também em contos, Cíntia Moscovich, busca a palavra e a expressão para as experiências-limite de suas personagens, marcadas por uma corporalidade e uma sexualidade não-hegemônica. Mesclando a tradição judaica da narrativa e da memória, mas em uma perspectiva das mulheres em uma estrutura patriarcal em desestabilização (pela morte do pai), seus romances Duas iguais e Por que sou gorda, mamãe? trazem narradoras que buscam uma melhor expressão para seus impasses. Em suas narrativas, estão presentes o corpo e a sexualidade (em especial a diversidade, uma vez que as relações lésbicas também aparecem) bem como a questão da identidade na esfera familiar.
Adriana Lisboa, por sua vez, tem sua prosa classificada por Luciene Azevedo, como representante, em seus termos, da “literatura da delicadeza”, ou seja, seu estilo teria como traços principais a recuperação da memória afetiva, uma escrita apurada e minuciosa, que deteria o tempo narrativo e exporia o olhar sobre os detalhes menores do cotidiano, sem perder a dimensão do relato de uma história. E, assim, longe do imediatismo referencial de uma prosa de vertente realista e brutal, atinge efeitos tão ou mais eficientes como algo tão terrível como o abuso sexual cometido pelo pai a uma de suas filhas, enquanto a outra é a testemunha calada e raivosa, como o faz em Sinfonia em Branco. Nas obras posteriores, Rakushisha, Azul-corvo e Hanói, o sentimento da viagem, da busca pelo pertencimento possível de personagens em deslocamentos, com a família nuclear destroçada, voltam a ser trabalhados, na busca por novas configurações afetivas.
Já a obra de Elvira Vigna tem se destacado com suas personagens em constantes movimentos entre máscaras, identidades e corpos. Ela está concatenada com paradigmas contemporâneos como o da diferença sexual, além dos papéis de gênero, mostrando o lado arbitrário das normas, buscando subverter e questionar tal representação também no nível narrativo e na instabilidade das descrições corporais. Se os corpos são constituídos por distintos discursos e formas de conhecimento, são também um produto cultural que pode (e deve ser) indeterminado – como estratégia para se tentar minar os pares binários que se perpetuam, em sua continuidade normativa. E a narrativa literária pode ser também esse local de indeterminação. Aí se destaca sua obra. Seus romances trabalham em um gênero literário “falsamente” policial. Apesar de suas narrativas poderem ser assim “vendidas”, pois sempre aparecem cadáveres, policiais e crimes, não é a “resolução” de um assassinato o principal mote do enredo.
O foco narrativo de seus romances é, predominantemente, em primeira pessoa e suas protagonistas são (ou poderiam ser, em alguns casos) as perpetradoras dos assassinatos ou acidentes causadores de morte. Essas narradoras são habilidosas, na medida em que estruturam seus relatos conforme seus interesses em (re)velar o que é possível ou desejável. Romances como O assassinato de Bebê Martê, Às seis em ponto, Coisas que os homens não entendem, O que deu pra fazer em matéria de história de amor e Por escrito trazem ambiguidades, impossibilidades e instabilidades na caracterização das personagens-narradoras. Características ainda mais acentuadas em Deixei lá e vim, romance também narrado em primeira pessoa, sob a perspectiva de Shirley Marlone. Suas falas e histórias, cheias de eventos “deixei lá e vim” podem se referir à identidade masculina anterior de Shirley, uma mulher transexual. 
Elvira Vigna tem arriscado uma forma de representação alternativa para suas personagens sempre em processo, buscando uma “cara” possível em um mundo que lhes pede estabilidade e lógica de sexo e de gênero, lembrando da matriz de inteligibilidade de gênero, teorizada por Judith Butler. As personagens da escritora ora buscam se tornar “inteligíveis” ora transgridem a matriz. Outras personagens, narradoras ou não, que apareceram para “incomodar”, dada à sua raridade no escopo da literatura brasileira contemporânea, foram as negras Kehinde, Rísia e Ponciá, protagonistas, respectivamente, de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, de As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, como analisou Regina Dalcastagnè, no artigo “Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea”. 
 Outra problematização das identidades femininas é trazida pelo projeto de autorrepresentação de escritoras lésbicas reunidas em torno da Editora Malagueta, que iniciou suas atividades em 2008, publicando livros “de lésbicas para lésbicas”. A simples existência de uma editora assim no Brasil denota a chegada de novos produtores/as, consumidores/as e agentes no campo literário dialogando com as mudanças e demandas do campo social em relação à visibilidade de sexualidades não-hegemônicas, a vincular essa entrada também à militância dos movimentos de direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros. Seu catálogo é, majoritariamente, composto de romances de diferentes recortes temáticos, mas sempre protagonizados por personagens lésbicas, com histórias de amor com “final feliz”. Aparecem descrições de relações sexuais que não fogem dos padrões estabelecidos das narrativas eróticas mais habituais, mescladas com declarações de amor, em alguns momentos.
Os “finais felizes”, que fazem parte da ideia de representação positiva da homossexualidade feminina por parte da editora, também têm sido continuamente celebrados, inclusive com rituais de casamento, como uma reafirmação de um modelo hegemônico de relacionamentos. Há exceções, como os novos arranjos familiares do romance As guardiãs da magia, de Lúcia Facco, que busca resgatar um tempo pré-patriarcal, e também o de Fátima Mesquita, Amores cruzados, que traz um final mais aberto, sem a preocupação de definir caminhos para uma relação recém-iniciada. Vale lembrar que os traços das personagens enfatizam características socialmente valorizadas, como a beleza (em sua definição mais padronizada) e juventude. Dada à pouca visibilidade e muito preconceito em relação às mulheres homossexuais, o catálogo ainda é restrito a poucas escritoras que, corajosamente, se expõem às mais variadas críticas. Por outro lado, diante de alguns posicionamentos feministas, em especial os mais contemporâneos, como analisar o catálogo da Editora Malagueta sem pensar na rigidez identitária envolvida? Mas como não o fazer, já que existe um projeto político-militante de uma identidade estigmatizada, que busca estabelecer uma política da diferença pela auto-organização e afirmação de uma identidade de grupo?
As poucas autoras citadas neste texto constroem, com seus diferentes estilos, possibilidades de representações de gênero. E não só pelas suas personagens, mas pela sua própria presença como escritoras no campo literário brasileiro. São, inevitavelmente, “serializadas” como mulheres, e não escapam (algumas até querem) das incontornáveis marcas de uma sociedade baseada nas diferenças de gênero. Sempre perguntadas se há algo específico na “autoria feminina”, se se atrelam ou não à alguma causa política, se são feministas, se entrariam em um texto como este. Enfim, uma escritora sempre movimentará o campo literário na perspectiva de gênero, pois está inserida, como já foi dito, na própria história dessa inserção negociada das mulheres. Uma inserção ainda minoritária, em termos numéricos, seja em número de publicações, seja em indicações para os principais prêmios literários. Muitas outras obras e escritoras poderiam ter sido citadas, dada a ampliação de canais de produção e distribuição. Longe de esgotar o assunto, o que se pretendeu aqui foi mostrar que, se não há uma essência para a categoria “mulher”, tampouco há para “escritora brasileira contemporânea”. Elas possuem trajetórias e projetos próprios, mas são, inevitavelmente, “serializadas” como mulheres e não escapam a essa moldura. Caso exista, um atributo compartilhado pelas escritoras é o permanente conflito com os estereótipos e os preconceitos ainda presentes na sociedade brasileira na avaliação de qualquer obra na qual apareça um nome de autora em sua capa. 

A versão integral desse texto está publicada na revista Cuadernos Hispanoamericanos, número 752, de fevereiro de 2013, editada pela Agencia Española de Cooperación Internacional para el Desarollo.

12 de setembro de 2015

Memória e cidade na narrativa brasileira contemporânea de autoria feminina

Adelaide Calhman de Miranda


Desenho: Andy Towler


Entre os temas mais frequentes nos romances brasileiros contemporâneos de autoria feminina, destaco o esquecimento das protagonistas. Essa falha da memória nas obras aponta para a necessidade de reformulação da história das mulheres e seus espaços, assim como da historiografia literária. Nesse sentido, o questionamento da representação de mulheres em obras canonizadas leva à desconstrução dos valores sexistas e falocêntricos que fundamentam o cânone.
É possível encontrar essa temática em alguns romances contemporâneos brasileiros como Rakushisha, de Adriana Lisboa, Coisas que os homens não entendem, de Elvira Vigna, A matemática da formiga, de Daniela Versiani, e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, entre outros. Nessas narrativas, a cidade não é somente cenário, mas também elemento problematizador das subjetividades femininas. O esquecimento das personagens é seguido de uma preocupação com os atos de resgatar e recontar suas histórias. No processo de relembrar, o espaço urbano tem uma participação especial, pois constitui elemento fundamental na elaboração da memória e da identidade. O deslocamento pela cidade, o compartilhamento dos espaços e a convivência com outras pessoas resulta em subjetividades configuradas por meio de suas relações. Além disso, ao introduzirem novas conexões pessoais e espaciais, os romances sugerem uma nova forma de perceber o espaço, que aponta para um novo conceito, como aquele formulado por Doreen Massey em For Space.
Para a geógrafa contemporânea, um novo modo de perceber o espaço colocaria em relevo suas três características principais. Primeiro, ele é sempre produto de suas inter-relações, isto é, anti-essencialista por definição. Segundo, resulta da multiplicidade, da heterogeneidade que o constitui. For fim, é um processo sempre aberto, passível de novas configurações e sentidos. Tal reconceitualização contribui para o processo político, admitindo a espacialidade como parte integrante da identidade.
No mesmo sentido, a inserção das mulheres na trama urbana é um dos fatores constituintes da reelaboração de suas histórias. Nesses romances contemporâneos, é significativo a saída dos espaços privados, que ainda hoje marcam a subjetividade feminina, para a conquista dos espaços públicos. Ademais, o deslocamento no tempo passado da memória ocorre paralelamente à circulação pelos espaços da cidade nos romances. Ambos os movimentos, pelo tempo e pelo espaço, têm a função de reconfigurar a subjetividade das protagonistas em suas inter-relações.
Além de reestabelecer a subjetividade a partir da sua relação com o espaço, a temática da memória insere-se no processo de crítica ao cânone literário. Aparentemente, essa reconstrução relaciona-se a um movimento transgressor de revisão do cânone e de desconstrução de seus valores considerados universais. Ainda hoje, a entrada de escritoras mulheres no cânone é dificultada pela relativa ausência de uma tradição literária de obras de autoria feminina. Outro obstáculo diz respeito a um campo literário que desvaloriza a literatura escrita por mulheres, designado por Annette Kolodny, em “Dancing through the minefield”, como o “campo minado”. Nesse sentido, as relações de poder da herança literária reproduzem as mesmas relações de poder encontradas na cultura patriarcal.
Rita Terezinha Schmidt, em “Refutações ao feminismo” , acrescenta que, no caso do Brasil, a tendência de desvalorizar o mérito do trabalho das mulheres é ainda mais marcante, pois a subordinação das mulheres só pode ser compreendida à luz de um projeto de nação que contou com o apagamento dos registros de todos os tipos de opressão. De acordo com pesquisa de Regina Dalcastagnè sobre literatura brasileira contemporânea, a maioria das obras publicadas nas grandes editoras é de escritores homens e as imagens de mulheres nessas obras ainda são estereotipadas. As obras das escritoras aqui analisadas se apropriam dessas ausências históricas para subverter as noções de história e de sujeito encontradas nas narrativas oficiais. Assim, o esquecimento sintomático dessas protagonistas ultrapassa as dimensões individuais e possibilita uma reconfiguração das relações de poder e de suas representações.
Ao percorrerem as cidades, as protagonistas recorrem às lembranças para reelaborarem suas histórias em seus próprios termos. Ao esquecer e relembrar, recordar e registrar, as mulheres reescrevem sua participação na história patriarcal na qual foram silenciadas. De formas diferentes, os papéis tradicionais de gênero são desestabilizados, e suas identidades são reconfiguradas de acordo com a experiência revisitada e ressignificada pela lembrança.
Em algumas obras, a memória assume uma voz coletiva para resgatar a história apagada e para resistir a um local de fala silenciado, inclusive no cânone literário. Em outras, a lembrança de pequenos detalhes observados na caminhada cotidiana, ou na flânerie pelas ruas estrangeiras, terá a importância de reconstruir a memória individual. Nos dois casos, a memória, articulada a outros aspectos da identidade, atribui um novo sentido à experiência e à história das mulheres.


O texto completo pode ser lido no livro Espaço e gênero na literatura brasileira contemporânea, organizado por Regina Dalcastagnè e Virgínia Maria Vasconcelos Leal (Zouk, 2015).

5 de setembro de 2015

Entre formigas e identidades migratórias

Ricardo Barberena

 

                                                                    Imagem: The World Flag Ant Farm, de Yukinori Yanagi

A 23ª Bienal Internacional de São Paulo, em sua sessão asiática, denominada Universalis, apresentou uma instalação artística que despertou curiosidade e desconforto entre os visitantes do Pavilhão do Ibirapuera. Tratava-se de uma obra, que já havia sido exposta durante a Bienal de Veneza de 1993, intitulada The World Flag Ant Farm (Bandeira Mundial da Fazenda das Formigas). Concebida pelo japonês Yukinori Yanagi, esta instalação reuniu dezenas de caixas de acrílico transparente com grãos pintados de acordo com as bandeiras nacionais. Através de pequenos tubos plásticos, cada caixa se intercomunicava e estabelecia um intenso trânsito de formigas que perambulavam entre os diversos “países”. Numa contínua e gradual progressão, com o passar dos dias, os grãos coloridos começavam a se misturar numa híbrida e policromática textura. Por intermédio dessa metáfora sobre o entre-lugar de uma identidade nacional em migração constante, Yanagi busca refletir sobre a permeabilidade das fronteiras que, como enormes formigueiros, encontram-se habitadas por seres-travessia que gradualmente reorientam as areias coloridas de lugares difusos e plurais.
Ali, no interior daqueles tubos que unem cada caixa de acrílico, dá-se o contato e a mistura de um entre-lugar identitário desdobrado pela porosidade vertiginosa da heterogeneidade espacial e simbólica. É importante ressaltar que os meios de expressão de Yukinori Yanagi se estendem também ao uso de máquinas, néons, brinquedos plásticos, argila e formigas vivas. Recorrendo a estes elementos inusitados, o artista problematiza a suposta fixidez dos limites contenciosos de uma determinada nacionalidade. Em suas incansáveis perambulações, as formigas atestam a derradeira dissolução do imobilismo identitário hegemônico. Os tubos de plástico, enquanto entre-lugares de passagem e aproximação, representam os fluxos multidirecionais de uma diferença cultural em processo de mescla e fragmentação.
Cabe, portanto, a pergunta: estaria o cânone literário estagnado e compartimentado em suas caixas de acrílico? Ou: será que está envolto por múltiplos processos de deslocamento? Ao discutirmos uma determinada literatura, estamos, conjuntamente, focalizando um capital cultural que se encontra nacionalizado por intermédio de uma marca estrutural e conceitual: a língua nacional. Enquanto elemento de identidade nacional, a língua acaba se constituindo como símbolo de identidade que perpassa as esferas políticas e culturais. Como evidente consequência dessa inter-relação entre literatura e língua nacional, o estatuto literário passa a ser utilizado como instrumento de manutenção de certa razão política e de uma identidade nacional, supostamente comum a todos os falantes nativos. Na sua condição de difusora do idioma nacional, a literatura, ao longo dos séculos, foi entendida como um espaço simbólico capacitado a conjugar os limites e os fundamentos de uma estética e de uma identidade nacional, afinal, numa primeira instância, torna-se bastante convincente uma associação entre Estado e literatura.
Na contramão da artificial unidade da identidade nacional, articula-se a micropolítica do cotidiano na qual os referenciais identitários se recriam – a cada instante – por intermédio de símbolos que denunciam o modo de ser/agir de determinado segmento social: o conjunto de índices culturais que revelam o que estes indivíduos vestem, ouvem, leem, fumam. Em outras palavras, poderíamos advogar que o cânone literário não se encontra resumido a uma essência determinista que oferece as diretrizes para uma “verdadeira” brasilidade, mas, sim, ao conjunto de posições-de-sujeito que interagem nas redes de poder da constituição de uma identidade simbólica e social. Entretanto, apesar de discordarmos de uma perspectiva essencialista, não há como negar que estes discursos totalizadores podem ser historicizados num passado de muitas lutas em prol de uma determinada hegemonia, que, em muitos casos, serve de alicerce para a construção de novas identidades e novos (velhos?) discursos unificadores e reacionários investidos pela equação coercitiva do “todos em um”.  Desse modo, tal legado canônico também é mote de sustentação de muitas identidades nacionalistas e fundamentalistas, que, em diversos lugares do globo terrestre, acarretam em sérios conflitos políticos e religiosos.
Como desacreditamos na fixidez e na imutabilidade das identidades nacionais, entendemos que estes revivals essencialistas fazem parte do campo de forças políticas que se encontra tencionado entre uma transnacionalização em marcha e uma notoriedade midiática de certos guetos de resistência fundamentalista e totalizadora. Tão débil quanto programático, o cânone essencialista, que associa a identidade nacional à pureza étnica e às relações de parentesco imanente, cai por terra, cada vez mais, no andamento dos processos de reterritorialização e (re)definição de fronteiras identitárias e culturais, conforme as (trans)nações atravessadas por constantes representações diaspóricas de valores cambiantes e parciais.
Enquanto construto simbólico, a identidade nacional se comporta – prosseguimos distantes daquela perspectiva essencialista – como um elemento relacional que pode vir a estabelecer contatos de aproximação e diferença diante outros significados estrangeiros. Mas isso, em absolutamente nada, impede o trânsito de múltiplos agentes sociais no interior de um espaço nacional fragmentado e intersecionado por diferentes grupos de pertencimentos de classe, raça, gênero, nacionalidade. Como se sabe de longa data, muitos postulados totalizadores, que reivindicavam uma identidade nacional homogênea, acabam por desencadear a supressão das diferenças de gênero e classe. Para que não se avalize o silenciamento de certo segmento social, uma assertiva, então, deve ser tomada como ponto de partida: os cânones Literários não são unificados.
Quanto aos argumentos pautados na defesa de uma identidade nacional unificada, repetem-se, usualmente, os discursos alinhados à existência de um passado histórico [teoricamente] compartilhado por todos os membros da nação. No entanto, quando observamos essa herança “em comum”, notamos a presença de uma determinada perspectiva de classe dominante que orquestra uma série de significados e símbolos nacionais de acordo com os interesses políticos e sociais, formando-se, na tessitura desse passado representado [inventado], uma malha de posições-de-sujeito que pode/deve ser excluída ou legitimada em nome da unidade de uma dada brasilidade. Propagar e exigir uma cultura e um passado em comum, acaba por evidenciar uma estratégia discursiva na tentativa da difusão de um cânone homogêneo, pois, ao se reduzir os membros de um cenário social e cultural, pode-se manipular uma única verdade nacional capacitada a responder e traduzir uma identidade parcial em constante (re)construção. O que está por trás dessa suposta unificação simbólica é a tentativa de ofuscar a inquietante problemática da fluidez e da mutabilidade identitária: há como encontrar uma identidade canônica fixa?
Ao se pensar a sistematicidade da articulação de identidades nacionais, torna-se eminente a necessidade de que também discutamos como se dá o processo de representação enquanto prática de significação que produz significados sobre a nossa cultura, nossa posição de sujeito, nossa condição social – em última instância, nossa identidade. Assim sendo, estes sistemas simbólicos, derivados do meio de representar uma dada realidade nacional, apresentam-se vinculados às formas discursivas que possibilitam a aplicação de um sentido à nossa identidade coletiva e individual. E é essa engrenagem da representação, entendida como processo cultural, que viabilizará uma infinita – e sempre inacabada – instância de manifestações sociais e culturais de uma identidade nacional difusa.
Continuando nessa bricolagem entre identidade e representação, deveríamos, ainda, dizer que são justamente os sistemas de representação que deflagram um lugar discursivo e simbólico de onde os membros [de uma nação, comunidade, grupo] podem fixar o seu locus enunciativo, o seu terreno de lutas, as suas causas e pertencimentos. A análise sobre a formação das identidades nacionais, portanto, deve ultrapassar aqueles discursos evocativos de um passado formado por mitologias e origens nacionais em consonância com valores homogeneizados da terra natal. Frente à fragmentação política e social do presente, torna-se evidente a fragilidade do desejo pela reafirmação de uma unidade canônica que ofereça um mecanismo de exclusão de certos grupos minoritários e marginais.
Assim, parece bastante plausível que analisemos o cânone pós-colonial como produto da imaginação/representação de um presente/passado vivenciado por uma gama de experiências particulares que, muitas vezes, são tomadas como herança coletiva. Esta identidade parcial revela o seu caráter de imaginação quando vêm à tona diferentes versões sobre aquele passado nacional tido como autêntico e unificado, conforme pode ser percebido nos inúmeros relatos resgatados à sombra da história oficial – nos mais variados campos de representação (literatura, oralidade, fotografia, cinema, antropologia etc.). Dentre a escuridão desse legado excluído e demonizado, surge um feixe de identidades que aponta para uma diversidade étnica e cultural incompatível com as tentativas de unificação de uma história comum para todos e escrita por poucos.
Deve-se trilhar, portanto, uma discussão crítica atenta à constante revisão de um passado nacional conjugado por uma identidade declinada no “nós” – leia-se: nós brasileiros, das classes dominantes, brancos. Em vez de acreditarmos num cânone literário centrado em um único núcleo de identidade fixa, investimos na hipótese teórica que avalia as sociedades modernas enquanto comunidades atravessadas por uma pluralidade de centros em constantes “deslocamentos ”. E é esta multiplicidade de centros de poder que possibilita a emergência de diferentes lugares de representação de variados sujeitos, inseridos numa identidade nacional intercambiante nas diversas arenas de conflito social.
Não há como negar que a postulação sobre uma brasilidade – ou uma argentinidade, por exemplo – está associada pelas formas de interação que perpassam uma representação enunciada/produzida a partir de um lugar nômade em travessia pelos diferentes pertencimentos de raça, sexualidade, classe, região, religião, idade etc. Como as identidades também são formadas por práticas sociais, torna-se viável uma circulação entre muitas manifestações simbólicas, marcadas socialmente, que possibilitam um sentido para uma experiência entre as plurais posições-de-sujeito desviantes dos discursos dominantes.
Ao colocar na berlinda o cânone soberano, propomos, como consequência inadiável, uma releitura das identidades renegadas às margens do ser/estar periférico e exótico, condição alijada de uma política da diferença que possa desconstruir as supostas estabilidades das oposições binárias entre o nós/eles, a civilização/barbárie, o cidadão patriótico/estrangeiro. Face à derrocada das certezas absolutas de um passado nacional unificado, percebe-se, em alguns segmentos do status quo vigente, um certo sentimento de temor perante o colapso daquelas antigas verdades fundamentais que buscavam a normatização de uma política de apego às raízes étnicas e territoriais.
A partir do momento que se analisa a marcação da diferença enquanto elemento-chave no mecanismo de construção da identidade, a fixidez dos sistemas simbólicos acaba caindo em descrédito devido à exposição da contingência de uma identidade nacional minada pelos múltiplos fóruns de debates de pertencimentos locais, globais, pessoais, sexuais. Nesse sentido, esta fragmentação identitária passa a ser refletida por sistemas simbólicos de representação que se encontram atravessados por marcações da diferença social e cultural: quanto mais se procurar elementos inerentes de uma nacionalidade mais se fortalecerá o retorno dos significados obscurecidos pela pecha da não-autenticidade e da não-essencialidade. Quanto ao questionamento de uma rede de significados “compartilhados” e unificados por uma dada identidade nacional, cabe, aqui, salvaguardar que esta antitotalização simbólica não elimina, em absoluto, um certo grau de consenso entre os indivíduos participantes de determinada comunidade.

Essa frágil unidade identitária, superficialmente partilhada, acaba se tornando, muitas vezes, um nicho simbólico muito adequado para a criação de afirmações essencialistas e totalizadoras: no afã classificatório, os estereótipos encontram um fértil terreno de absolutizações (“os brasileiros são cordiais, exóticos, sexuais, comunicativos”). Ponderar a ocorrência de certos traços identitários comuns não significa que se admita uma lógica celebratória da não-heterogeneidade. Se pensarmos, para efeito de exemplificação, numa brasilidade declinada por um profundo sentimento de “cordialidade”, teremos, obrigatoriamente, que indagar e desconstruir tal construto psíquico-identitário: de que lugar social e político é representada a condição ser/estar cordial e domesticado? A quem interessa esse discurso da cordialidade e da docibilidade? Todos os grupos sociais (e seus respectivos espaços de poder) compartilham esse estigma de querido bom-selvagem, acomodado frente aos espetáculos de massacre social do maravilhoso mundo novo? Cordiais, bons anfitriões, seguimos, todos, digerindo as nossas porções de ração afetiva?