26 de setembro de 2015

Considerações sobre um centro instável: o escritor-personagem no romance brasileiro recente

Igor Ximenes Graciano


M. C. Escher, Mão com esfera refletora (1935)


Na litografia de M. C. Escher, um autorretrato, ele aparece refletido em uma esfera de vidro, de modo que, além de seu busto, é possível ver o ambiente ao redor – um escritório com poltronas, uma escrivania ao fundo, a janela, uma prateleira com livros, alguns quadros etc. A ilustração, Mão com esfera refletora (1935), uma das mais famosas da produção do artista gráfico holandês, não se restringe ao que aparece refletido na esfera, como também mostra a mão que a segura. Esse detalhe é o que torna a imagem tão significativa, pois ali há um encontro da mão “real” com a refletida em um mesmo ponto, na base da esfera, figurando no centro o autor e seu olhar que nos olha.
Outra famosa litografia do artista, Mãos desenhando (1948), também traz essa abordagem metalinguística, pois as duas mãos que desenham são produto de seu gesto de desenhar, quando da superfície plana do papel, em que se encontram os punhos em estágio mais elementar do desenho, sobressaem as mãos representadas em sua tridimensionalidade, com volume, sombra e detalhes de um desenho mais complexo, e por isso mesmo mais “real”. O paradoxo, expresso por meio de espaços e situações logicamente impossíveis, foi uma das obsessões de Escher, assim como a ideia de infinito, que surge representado no espaço limitado da obra.
A evocação dessas duas imagens remete a uma das características mais divulgadas da arte: sua autorreferencialidade. Entre fins do século XIX e início do XX, quando as vanguardas vieram anunciar a “desumanização da arte”, na expressão de Ortega y Gasset, ou seja, seu distanciamento de um realismo ingênuo, que pretende revelar o mundo e seus habitantes por meio da semelhança, buscou-se o estranhamento, a desautomatização do olhar ao invés do conforto do reconhecimento. Daí as obras perderem sua transparência, como se abríssemos uma janela e víssemos nada mais que a paisagem, e não – como de fato é – uma descrição por meio de algumas palavras arbitrariamente escolhidas pelo escritor ou um conjunto de cores e texturas tiradas da paleta do pintor. Quando não abre mão da artificialidade da obra, chegando mesmo a evidenciá-la, o artista modernista ainda pretende revelar algo (ou revelar-se), só que indiretamente, aceitando que o resultado de seu ofício é opaco, não transparente, e por isso mesmo repleto de nuances que não levam à verdade da paisagem, mas às possibilidades de sua aparência: objeto que se dá em construção.
Se esse voltar a si não é propriamente um atributo das vanguardas, pode-se falar que, a partir delas, o uso da metalinguagem foi empreendido de forma militante, em parte como resposta historicamente contextualizada à preponderância da estética realista do século XIX nas diversas manifestações artísticas. Na literatura, foi o momento de consagração do grande romance burguês, quando na França pós-iluminista, seu centro irradiador, segue-se um itinerário que vai dos grandes painéis de Balzac ao naturalismo de Zola, no que Auerbach, em Mimesis, chamou de “realismo moderno”, um ideal de representação que se pretende absoluto, pleno.
Indo além das experiências formais do início do séc. XX – sem contudo esquecer que ali está sua origem ideológica e formal –, em um breve passar de olhos em sinopses de romances contemporâneos, é notável a frequência com que o escritor aparece como protagonista. Devido a esse objeto tão próximo, na verdade confundindo-se com ele, pode-se inferir, a despeito de uma leitura aprofundada do todo dessa produção, que o narrador do “realismo clássico” saiu de cena desde a investida das vanguardas e nem sequer relutou em voltar, pelo menos em sua face tradicional, “divina”.
Aproveitando-se ainda da assertiva de Auerbach, uma vez que o objeto do escritor é ele próprio, não há como esquecer de si, resultando inviável a fórmula em que “seu coração serve-lhe tão somente para sentir o dos outros”. O fato de o escritor buscar “espelhar-se”, entretanto, indica que a maior parte dessas narrativas recentes sustenta-se numa estética realista, porém de um realismo problematizado, já que consciente da insuficiência de qualquer representação, seja do mundo e suas paisagens, seja do outro, principalmente do outro. Sabendo que não pode se anular, o escritor-personagem posta-se no centro da cena, vendo (narrando) o mundo não como Deus, mas como homem, interessado e impuro.
Na literatura brasileira, o escritor-personagem não é novidade, bastando lembrar, entre outros, Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, e Angústia, de Graciliano Ramos, para ficarmos na primeira e segunda hora modernistas. Contudo, se não se trata de uma novidade do ponto de vista de seu aparecimento, o que chama a atenção na produção mais recente é a quantidade, ou pelo menos seu aumento sistemático desde os anos 1990. Um bom indicador disso é a pesquisa feita pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, coordenada por Regina Dalcastagnè.
Entre os resultados da pesquisa, Dalcastagnè apresenta um perfil dos escritores brasileiros a partir dos romances publicados nos períodos entre 1965-1979 e 1990-2004 (recorte válido para outros indicadores). Com isso, o que resulta é a evidência em números (algo aquém e além do que se espera de uma abordagem teórica “literária” do fenômeno literário): a maior parte dos escritores são homens, brancos, com diploma universitário, moradores dos grandes centros urbanos e que portanto realizam, nas obras, seu imaginário a partir dessa perspectiva. Sendo a pesquisa voltada para o mapeamento dos personagens na prosa contemporânea, o índice mais significativo para a discussão empreendida aqui é o que mostra a ocupação dos personagens masculinos. No universo dos romances escritos entre 1965 e 1979, os personagens apresentados como escritores estão na terceira colocação, com 6,1% do total. Já no período mais recente, de 1990 a 2004 – em que se verifica também um aumento do número de publicações – os escritores ocupam o topo da tabela, com 8,5% do total de personagens. 
A despeito, aqui, de se observar as causas e consequências do silenciamento, no que tange à expressão literária, dos diversos grupos que se encontram à margem das publicações (os autores) e da representação ficcional (os personagens), o enfoque recai justamente sobre as fissuras desse centro privilegiado: quais as implicações de sua expressão literária hoje? Haveria um projeto comum, não declarado, a toda essa produção romanesca cujo tema é, cada vez mais, não só o fazer literário, mas sua intimidade às vezes inconfessável?
Em termos mais corriqueiros de história literária, o momento atual não se faz compreender com marcos autoexplicativos em manifestos ou algo do gênero. As narrativas a que nos referimos são antes um sintoma da vida literária das últimas décadas do que a manifestação consciente de um projeto estético-ideológico. O escritor surge como personagem em parte porque, no âmbito maior das relações sociais, há um interesse generalizado pela vida privada, momento em que a intimidade torna-se um produto estranhamente valioso (pois adquire valor por ser banal) para consumo nas diversas mídias. No universo das letras, o termo autoficção, ainda que pouco esclarecedor teoricamente, é útil por definir um filão editorial a essas obras que se valem da confusão entre os protocolos de leitura da ficção e da biografia, ou seja, do que é “literatura” e do que é “documento”.
Afinal, a ambiguidade entre ficção e autobiografia é comum (e desejada) em boa parte dessas obras, pois o autor fica a meio caminho da prática discursiva que o responsabiliza pelo que diz e outra que o resguarda sob a máscara da ficção, liberando-o da irredutibilidade dos fatos “verídicos”. Esse entre-lugar, ao instabilizar a recepção da obra, ora afirmando ora quebrando o pacto de verdade, deixa transparecer um pouco do contexto real da criação literária no espaço da ficção, já que o personagem carrega a sombra do autor de carne e osso. Tal identidade leva o leitor, segundo Lejeune em O pacto autobiográfico, “a ler os romances não apenas como ficções remetendo a uma verdade da ‘natureza humana’, mas também como fantasmas reveladores de um indivíduo”. O que avulta desse jogo de espelhos é a tentativa de narrar o eu e a incapacidade de alcançar o outro em um mundo irremediavelmente fragmentado. Trata-se do que a crítica Lucia Helena chama (no livro com o mesmo título) de “ficções do desassossego”.
As ficções do desassossego têm na sua origem a origem da crise. Pode-se especular que esses romances confrontam criticamente o cenário político, social e humano pelo discurso ficcional ao questionarem os motivos e implicações da escrita literária, no entanto o que de fato assoma a partir da sua leitura é o impasse. Escrever, nesse caso, não se apresenta como uma solução, instrumento viável de superação das contradições, mas como o problema.
Por isso, repetimos que as narrativas do escritor-personagem – centro instável do campo literário brasileiro hoje – não pressupõem uma linguagem transparente que almeja revelar o mundo e o outro. Não. Essas ficções antes esgarçam a linguagem e apontam para o gesto literário, fazendo da escrita uma vitrine na qual vemos sobretudo o escritor, “um corpo inexistente apenas a perceber o que se passa em volta além do vidro, que apenas reconhece estar ali para ser visto sem nada o que mostrar”, nos termos do narrador de Berkeley em Bellagio, romance de João Gilberto Noll.
Sem nada o que mostrar a não ser o próprio corpo (inexistente), o escritor como personagem se expõe, lançando seu gesto para esse outro que o observa atrás do vidro, o leitor, aguardando que ele encontre algum sentido, ou vá embora, indiferente.


O texto completo pode ser encontrado no livro Pelas margens: representação na narrativa brasileira contemporânea, organizado por Regina Dalcastagnè e Paulo C. Thomaz (editora Horizonte).

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