Luis Felipe Miguel
Imagem: Serban Savu
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Entre as múltiplas
ameaças de retrocesso que surgem do Congresso Nacional hoje, uma das mais
graves é a voltada à educação. O espantalho da “doutrinação” dos alunos por
professores esquerdistas é um pretexto para a criminalização do pensamento
crítico em sala de aula, frustrando o objetivo pedagógico de produzir cidadãos
e cidadãs capazes de reflexão autônoma, respeitosos das diferenças, acostumados
ao debate e à dissensão, conscientes de seu papel, individual e coletivo, na
reprodução e na transformação do mundo social. Em seu lugar, voltamos à
ultrapassada compreensão de uma educação limitada à transmissão de “conteúdos”
factuais, dos quais o professor é um mero repetidor e o aluno, receptáculo
passivo. O slogan vazio da “escola sem partido” busca passar a ideia de que o
ensino acrítico é “neutro”, quando, na verdade, ao naturalizar o mundo
existente e inibir a discussão sobre suas contradições internas, é um mecanismo
poderoso de reprodução do status quo.
São diversos projetos
em tramitação no Congresso, que partem do veredito comum de que haveria um
esforço de doutrinamento em curso, seja pelo PT, seja pela esquerda de modo
geral, que faria com que as escolas tivessem se tornado centros de difusão do socialismo
e/ou do feminismo. É uma reação ao arejamento – na verdade, ainda muito
insuficiente – das práticas pedagógicas; uma reação que não vem de hoje, mas
que se intensificou com a ofensiva diretista dos últimos anos. Alguns talvez se
lembrem que, nos anos finais da ditadura militar, pré-escolas alternativas eram
acusadas de adotar cartilhas marxistas. É o mesmo tipo de paranoia, mas agora
vendo o pretenso doutrinamento como política de Estado, que está por trás das
fantasias do movimento Escola Sem Partido, do repúdio a Paulo Freire nas
manifestações públicas da direita ou da reação histérica à recente prova do
ENEM.
Cada vez que a escola
se desloca, por pouco que seja, de seu papel tradicional de aparelho ideológico
reprodutor da ordem social, erguem-se as bandeiras de “doutrinamento”. A
manobra argumentativa é evidente. A reprodução transita como “não ideológica”
porque a ordem social vigente é naturalizada. É como se ela não fosse o fruto
de processos históricos, de conflitos sociais com ganhadores e perdedores, mas
um dado da realidade que existe por si só. A “neutralidade” do discurso que não
questiona o porquê do mundo social ser como é, nem indica que essa ordenação
não é uma necessidade, é falsa: ele é um elemento ativo de perpetuação, uma
maneira de bloquear as potencialidade de mudança presentes do mundo em que
vivemos.
Na atual ofensiva da
direita brasileira, há dois alvos simultâneos. Permanece o ódio ao marxismo e,
de modo mais geral, a qualquer forma de questionamento à desigualdade de
classe. É sustentado por uma leitura delirante da teoria de Gramsci, difundida
pelo astrólogo Olavo de Carvalho, em que a ideia de uma luta pela produção de
sentido no mundo social é transformada num plano diabólico de lavagem cerebral
em massa.
Mas há uma grande
ênfase também na denúncia contra qualquer tentativa de desnaturalizar os papéis
estereotipados atribuídos a mulheres e homens. É a “ideologia de gênero”, termo
que foi cunhado pelos setores conservadores da Igreja Católica, mas adotado
também por denominações protestantes, e colocada em curso em vários países do
mundo, entre eles o Brasil, como forma de organizar a oposição aos avanços –
mais lentos do que gostaríamos, mas inquestionáveis – na direção de maior
igualdade entre os sexos e maior respeito a gays
e lésbicas. Ao afirmar que “ideológica” é a luta contra a discriminação de
gênero, fica implícito que a desigualdade e a intolerância seriam naturais.
O rótulo “ideologia de
gênero” foi rapidamente incorporado à linguagem destes grupos. Sintético, ele
permite que se descarte, sem discussão, tudo aquilo que já se sabe sobre a
produção social do feminino e do masculino. Quando militantes conservadores
reagem à frase de Simone de Beauvoir incluída na prova do ENEM escrevendo
coisas como “eu nasci mulher sim, nasci com vagina”, como se viu nas redes
sociais, revelam, mais do que apenas uma ignorância brutal e constrangedora,
uma impermeabilidade deliberada a qualquer discussão sobre o tema.
Ao lado da ameaça que
a emancipação feminina e a conquista dos direitos de gays e lésbicas de fato representa aos privilégios de homens e de
heterossexuais, e ao lado também do fundamentalismo religioso de alguns, há no
destaque dado à “ideologia de gênero” uma demonstração de oportunismo político.
Como afirmei em outro lugar, hoje a homofobia é o ópio do povo.
Deslocando o eixo do conflito para as questões
“morais” (que, na verdade, são questões de direitos individuais), a direita se põe
em sintonia com uma parcela do eleitorado que, sobretudo a partir das políticas
compensatórias do governo Lula, se movimentava na direção de seus adversários.
Também por isso, para as forças da esquerda a luta pela igualdade de gênero e
contra a homofobia não pode ser considerada uma pauta secundária.
Entre os projetos em
tramitação no Congresso, vários têm o fantasma da “ideologia de gênero” como
alvo. O PL 7180/2014 e o PL 7181/2014, ambos de autoria de Erivelton Satana
(PSC/BA), determinam a mesma coisa: que “os valores de ordem familiar [têm]
precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação
moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares
no ensino desses temas”. O primeiro projeto visa instituir esta regra na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação e o outro, redundantemente, quer torná-la
obrigatória nos parâmetros curriculares (que já devem obedecer à LBDE).
A intocabilidade da
família, como sujeito coletivo com direitos próprios, irredutíveis aos de seus
integrantes, é o que fundamenta tal proposta. Muitas vezes, mesmo os grupos
mais progressistas têm receio de discutir o status
atribuído à unidade familiar, preferindo deslocar a luta para a necessidade de
pluralizar o entendimento do que é família. Claro que que é importante dar a
todos que o queiram a possibilidade de buscar formar famílias, no formato que desejem,
mas ainda precisamos dessacralizar a “família”. A família é também um lugar de
opressão e de violência. A defesa de uma concepção plural de família não pode
colocar em segundo plano a ideia de que, em primeiro lugar, estão os direitos
individuais dos seus integrantes. E entre estes direitos está o de ter acesso a
uma pluralidade de visões de mundo, a fim de ampliar a possibilidade de
produção autônoma de suas próprias ideias.
As propostas do
deputado baiano impedem a educação sexual e o combate ao preconceito e à
intolerância nas escolas, sob o argumento de preservar a soberania da família
na formação “moral” dos mais novos. Com isso, retiram da escola a possibilidade
de contribuir para disseminar os valores de igualdade e de respeito à diferença,
que são cruciais para uma sociedade democrática. E retiram dos jovens o direito
de ter acesso a informações que são necessárias para que eles possam refletir
sobre sua própria posição nesse mundo e avançar de maneira segura para a vida
adulta.
Ainda mais bisonho, o
PL 1859/2015, de autoria de Izalci Lucas (PSDB/DF), Givaldo Carimbão (PROS/AL)
e outros, propõe que a LDBE inclua dispositivo que proíba as escolas de
apresentar conteúdo “que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo
‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”. A política linguística destes deputados
incorpora ao vocabulário legislativo o termo “ideologia de gênero”, inventado
recentemente pela direita fundamentalista, e veta do vocabulário escolar os
termos “gênero” e “orientação sexual”, impedindo assim que vastos setores do
conhecimento produzido na sociologia e na psicologia cheguem ao ensino. O
objetivo é evitar qualquer questionamento da percepção naturalizada dos papéis
sexuais. É por isso que, quase 70 anos depois, Simone de Beauvoir ainda causa
arrepios.
Na mesma linha, o PL
2731/2015, de Eros Biondini (PTB/MG), quer incluir, no Plano Nacional de
Educação, uma proibição à “utilização de qualquer tipo de ideologia na educação
nacional, em especial o uso da ideologia de gênero, orientação sexual,
identidade de gênero e seus derivados, sob qualquer pretexto”. Para além do
absurdo do texto (uma “ideologia” é “utilizada” na “educação nacional”?), o PL
é significativo pelas punições previstas. O profissional de educação que
descumprir a norma, isto é, que tematizar a desigualdade de gênero ou a
homofobia, perderá o cargo e estará sujeito às punições previstas, no Estatuto
da Criança e do Adolescente, àqueles que submetem “criança ou adolescente sob
sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento ilegal”, isto
é, seis meses a dois anos de prisão.
O projeto mais
ambicioso, porém, é o PL 867/2015, novamente de Izalci Lucas, que é
representante da ala do PSDB mais despreparada intelectualmente e retrógrada
politicamente. Seu objetivo é incluir, nas diretrizes e bases da educação
nacional, um programa intitulado “Escola sem Partido”. De fato, o deputado
simplesmente apõe seu nome à iniciativa do “movimento” de mesmo nome. Assim, a
educação deve ser baseada na “neutralidade política” e a escola não pode
desenvolver nenhuma atividade que possa “estar em conflito com as convicções
religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”. Embora escolas
confessionais privadas possam exercer seu proselitismo, desde que contem com a
anuência dos pais. O artigo 5º prevê que serão afixados cartazes nas escolas
para que os estudantes saibam que podem denunciar seus professores. O programa
se aplica ao material didático e a todos os níveis de ensino, incluindo o
superior.
Os dois pilares são,
portanto, a soberania da família, que se sobrepõe ao direito do estudante de
obter elementos para produzir de forma autônoma sua visão de mundo, e uma ideia
de “neutralidade” que se baseia na ficção de um conhecimento que não é situado
socialmente. Um relato da história do Brasil ou do mundo que se limite a nomes
ou datas, como no ensino do regime militar, pode parecer “neutro”, por não
assumir expressamente juízos de valor. Mas, ao negar ao aluno as condições de
situar os processos históricos e de compreender os interesses em conflito,
cumpre um inegável papel conservador.
Se a “neutralidade”
não existe, uma vez que toda produção de conhecimento parte de um lugar social
específico, qual é o contrário da doutrinação? É o pensamento crítico, aquele
que permite que os estudantes sejam não objetos, mas sujeitos da aprendizagem,
refletindo sobre os conteúdos e construindo suas próprias percepções, no
diálogo com professores e colegas. É esse pensamento crítico que assusta os
promotores da “Escola sem Partido”. Seu discurso ensaiado não disfarça o fato
de que são eles que desejam uma escola doutrinária, que imponha aos estudantes
um pensamento fechado – o conformismo – e os impeça de pensar com as próprias
cabeças e, pensando, quem sabe inventar um mundo novo.
Este texto foi publicado originalmente no blog da Boitempo.