Lucas Amaral de Oliveira
Imagem: Claire Harvey |
Não teria sido possível seguir
enfrentando esta sociedade incivil, mais explícita em função da pandemia, sem o
horizonte intelectual e afetivo de Muniz Sodré
Calhou
nestes dias de confinamento uma urgência de escrever, entregar às palavras o
que tem sido do império das angústias. De início, pensei que talvez me fosse mais
apropriado, na condição de sociólogo-docente-pesquisador, discorrer sobre como esta
crise epidemiológica vem aniquilando os espaços de convivialidade de uma cidade
tão culturalmente agitada como Salvador. Ou, por outro lado, como esta fatal necessidade
do isolamento – e, paradoxalmente, para muitos cidadãos, a sua impossibilidade material
– acaba por amplificar as desigualdades sociorraciais e a segregação urbana de
uma das metrópoles com maior densidade populacional do planeta. Já havia, inclusive,
esquematizado uma análise cujo eixo seguia os itinerários da operacionalização
da necropolítica no Brasil. Foi então que recebi uma mensagem familiar.
Era uma
sexta de pouco sol em Salvador, depois de semanas de chuva e tempo fechado.
Condição atípica, que fez do isolamento a aceitação do exílio. A mensagem me
chegou como sinal de alento, respiro – afinal, o luto se impõe quando diante de
mais de quatorze mil mortes oficiais registradas no país. Após quinze dias de
desassossego, soubemos que Muniz Sodré está melhor. Entendedor das culturas
brasileiras. Espírito imensurável. Que tem se mostrado até então maior que seu
quase-fim terreno. Suportou dias a fio de inconsciência febril, lidando com o
ápice da infecção de Covid-19, na UTI de um hospital de São Cristóvão, no Rio
de Janeiro. Com muito custo, o baiano parece disposto a engambelar esta doença
que muitos ainda insistem em eufemizar. Mas pudera! Muniz não caberia em
despedidas. Por galardosas que fossem. Não caberia em epílogos. Por adjetivosos
que pudessem parecer. Se fosse o caso, certamente ele se transbordaria desde
dentro da gente em forma lagrimosa. Num contexto de morte e nada mais, é
preciso celebrar os sopros de vida, as sobrevivências do dia-a-dia. O axé de
Muniz.
Ultimamente,
quase não tem havido espaço para boas notícias. Pelo menos em terras
incivilizadas. Como a nossa, latifúndio do ódio. Terra que agora ainda tem de
enfrentar uma doença implacável que só tem trazido sofrimento, desalento,
escassez, morte. Obviamente, a uns mais que a outros. Mas me traz um leve
sorriso ao rosto saber que este texto não é tributo póstumo. E que estas
palavras estejam sendo traçadas, agora, em tom de homenagem a alguém que, desde
um lugar um pouco mais seguro, segue entre nós. Me abranda o espírito que este
texto não ecoa palavras de despedida. É apenas um relato pessoal. Ou reminiscência
intelectual que gostaria de tornar público, hoje. Porque constitui um
testemunho de como um ser humano marcou, com tamanha solidez, uma geração
inteira de pesquisadores da cultura – na qual eu próprio me incluo –,
preocupada com efeitos éticos e políticos da produção do saber.
Se não há tamanho, também não há tempo
neste mundo em que caiba Muniz Sodré de Araújo Cabral. O professor
Muca, como costuma ser afetuosamente reconhecido entre colegas e familiares, é existência
incabível, inencaixável, imorrível. Farol que orienta nossos pés nos entremeios
das tormentas da história. Oriente. Horizonte. A exata somatória da vastidão de
sua ternura com a fineza de um intelecto perspicaz, multiplicada pela seriedade
investida no cultivo das belas artes do ensinar – que orientam a mim e a colegas
no magistério público –, elevado à enésima potência da dedicação que tem depositado,
nas últimas cinco décadas, em analisar as vicissitudes nacionais, às vezes
desnudando nossos ilogismos mais desavergonhados.
Muniz é daqueles seres
humanos insubstituíveis. Do tamanho da energia de vida que tem despendido buscando
entender a alma, a mentalidade, o imaginário, a epiderme, os intestinos e o
sistema nervoso central de um país periférico, culturalmente rico, não há
dúvidas, e híbrido até a raiz de suas histórias mais recônditas; mas erguido na
base de ferro, fogo, lágrima, sangue, racismo e muito genocídio. Da mesma maneira
que as composições de Aldir Blanc e Moraes Moreira revolucionaram a bússola da
música popular brasileira, que as atuações de Flavio
Migliaccio politizaram a dramaturgia de um país naufragado no precipício do
autoritarismo, ou então que os contos de Sérgio Sant’Anna redirecionaram a ficção
na literatura brasileira contemporânea, as obras de Muniz Sodré sublevaram as
ciências sociais e humanas de modo irremediável, em especial as teorias da
comunicação e a sociologia da arte e da cultura: “O terreiro e a cidade”
(1988), “A
máquina de Narciso” (1990), “Antropológica do espelho” (2001), “A narração do fato”
(2009), “Reinventando a educação” (2012), “A ciência do comum” (2014) e “Pensar nagô” (2017)
são apenas alguns exemplos de sua prodigalidade.
Não podemos economizar adjetivos, analogias e
perífrases quando homenageamos alguém em vida. A vida de Muniz. Mestre da
tradução intercultural, artesão dos saberes, zelador da communitas e da civitas. Desconstruidor das
práticas sócio-antropológicas que foram moduladas na obsessão euro-americana de
conhecer a si à medida que subalternizava mundos. Transgressor das interdisciplinaridades
acadêmicas. Crítico infatigável do racismo estrutural que, para ele, é constituído
e constituidor tanto de nossas cordialidades interpessoais como dos
patrimonialismos institucionais. Muniz Sodré é um decolonial nas humanidades
brasileiras. Sua práxis é a política do afeto: “o vazio do sensível torna
inócuo o conhecimento da evidência objetiva e inibe um posicionamento prático-teórico
que possa contornar as taras monocausais”.
Livre-Docente e Professor Emérito da UFRJ, Doutor
Honoris Causa da UFBA, Pós-Doutor na Paris-Sorbonne, ex-presidente
da Biblioteca Nacional, escritor latino-americano rigoroso e eloquente. Verdadeiro gingador de brasilianidades.
Virtuoso. Hábil em formalizar em palavras e conceitos as vidas de todos nós que,
sem dinheiro no banco e nem parentes importantes, viemos do interior. Muniz é um
dos teóricos brasileiros mais lidos, difundidos e respeitados no
exterior. E seguirá sendo. Intelectual e ativista negro de brio, fala iorubá,
inglês, russo, francês, espanhol, italiano, árabe, alemão. Ser multíplice,
multiplicador. Alquimista do conhecimento. Guardião da ancestralidade. Autodidata
dos impasses da vida. Aprendiz de Mestre Bimba – o mais ilustre entre
batuqueiros e capoeiristas. Muniz, como seus estimados baianos Jorge
Amado, Dorival Caymmi e Gilberto Gil, também é Obá Xangô do Axé Opô Afonjá, no
culto nagô-ketu do candomblé baiano. E, como cientista social público e
inventivo que é, faz questão de misturar suas vivências a epistemologias plurais
para entender o presente.
Em especial, sou simpático de uma reflexão
que ele vem equacionando e que parece ter ganhado força com a experiência do
bolsonarismo no Brasil contemporâneo. Muniz insiste que, como nação, somos uma
fábrica arcaica de “produção social do ódio”. Isso nos tem feito
reféns daquilo que sempre fomos, porque forjados nos cemitérios do colonialismo:
uma “sociedade incivil”. Ele argumenta que estamos a experimentar, hoje, um
inquietante tropeção no fio transformador da história nacional. A imagem, tão
potente quanto trágica, sugere que não se trata mais da antiga oposição entre civilização
e barbárie, e sim de uma figuração social nova, em que relações humanas geridas
pelas tecnologias de comunicação de massa acirram cada vez mais a criação, a
difusão e o consumo egoístico de informações inautênticas, processo que vem
desestabilizando consensos de representação do mundo – formato da Terra,
história do nazismo, direitos humanos, acúmulo científico, etc. Não há mais ação
comunicativa possível em um cenário em que parte da população brasileira se oferece
a negacionismos, anti-intelectualismos, fundamentalismos e conspiracionismos de
variados graus. O atoledo da ignorância nos asfixia.
Para ele, a farsa desta
contemporaneidade é habitada por uma horda que exibe um desejo pornográfico pelo
caos. São essas as pessoas que vêm alimentando o espectro do fascismo, real e
virtualmente. Ou, como prevê o baiano de São Gonçalo dos Campos, é a entrega a
essa pulsão que alicerça o protofascismo tupiniquim, em que a perseguição do Outro,
inimigo em potencial, irrompe como fratura política, sociopatia e gozo pela
catástrofe. Por si, a desigualdade já dificulta que pessoas privilegiadas vejam
seus Outros como entes merecedores de respeito e consideração. Só que a
desigualdade brasileira, que sempre foi um perverso projeto de nação, além de
impor obstáculos à civilidade, transforma pessoas em “não pessoas”, esvaziando-as
de valores intrínsecos, vertendo corpos e existências em vidas precárias, descartáveis.
Daí a sanha pela ofensa, o fascínio pela violência, a apologia armamentista. Daí
os absurdos regressivos e as defesas crônicas de um estado teocrático-miliciano
que se anuncia como “salvador da pátria”, administrado por “cidadãos de bem”. Daí
a transformação da morte em único horizonte de vida.
Como
reflete Muniz, não se trata de ideologia capitaneada por um partido político com
o beneplácito do Estado, como o nazifascismo histórico, mas sim do produto do
ressentimento social das elites em relação a uma década de governos de
centro-esquerda, estimulado por uma ordem de fatores que encontra na violência
sua única justificação: a ignorância da história do país, a energia do
descontentamento ante o acúmulo de diversas crises, alterações nos hábitos, corrupções
políticas, versatilização dos estilos e estéticas de vida, sentimento de um
suposto declínio ético e moral, etc. Tanto ontem como hoje, a “situação
fascista” reflete um medo coletivo e manipulável, “paixão política negativa”. Medo
imaginado, abstrato, fantasmagórico. Medo cujo saldo é o ódio. Não viveriam acólitos
e colaboracionistas do presidente perdidos num labirinto assombrado por
inimigos que eles próprios projetaram e, agora, querem eliminar? Como
gramsciano, Sodré nota que “o velho mundo sempre morre, mas o novo tarda para surgir;
e desse claro-escuro emergem os monstros”. Espero que as lições de Muca, nosso
mandingueiro anticolonial que tem vertido suas últimas décadas de vida num
campo de luta contra os monstros do fascismo e num espaço de reconhecimento e
desmantelamento das “inscrições da barbárie no cotidiano”, orientem a todos nós
neste mar de trevas no qual nos encontramos.
Finalizo
meu testemunho intelectual com um trecho do discurso que Muniz proferiu na
Academia de Letras da Bahia, em 31 de outubro de 2019, aqui em Salvador, alguns
meses antes da pandemia nos atingir. Na cerimônia que marcou a sua posse da
cadeira 33, cujo patrono é o poeta abolicionista Castro Alves, sucedendo a Ialorixá
Mãe Stella de Oxóssi, ele disse: “A ancestralidade – folha no chão – vem ensinar
que ética não se resume à codificação de regras de conduta nem a um
ajustamento moral, decidido por tribunais de meia sola, por falsos monopólios
da virtude. O que hoje se vem chamando de crise moral não é a mera
violação de valores e regras instituídos (corrupção, violência institucional,
mutação nos costumes), mas sim o obscurecimento do destino comum, esse destino
a que se revelam cegas as elites econômicas, políticas, burocráticas e
tecnológicas. Por ética, eu me refiro a um apelo radical à dignidade do ato de habitar
e conviver, portanto, a tudo o que implique um destino comum prefigurado pela
razão fundadora da comunidade”. Saravá, Muniz! Sigamos vivos, porque a luta
continua...
* Lucas
Amaral de Oliveira é Professor Adjunto do Departamento de Sociologia da UFBA.