Graziele Frederico
Dagmawy Yimer. Foto de Laura Daudén
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Alguns morreram, outros se perderam pelo caminho, mas
nós estávamos ali. Os europeus fazem um jogo maquiavélico com os imigrantes. A
impressão que eu tenho é como se tudo fosse um teste para que na Europa entrem
apenas os mais fortes, aqueles que conseguiram ultrapassar todas as fases.
Dagmawy Yimer
Em março de 2009, preparando um livro sobre imigrantes africanos
na Itália, conheci a história de Dagmawy Yimer. Ele é um etíope alto, esguio,
fala um italiano fluente e ainda mantém a retórica desenvolvida no curso de
Direito que não chegou a completar. Ele não era pobre em seu país e, apesar das
dificuldades na Europa, também não viveu a situação de miséria. Fome, frio e
desespero ele viveu pela primeira vez durante a viagem de Adis Abeba até
Lampedusa.
“Quando me perguntam qual a minha etnia ou minha religião,
insisto sempre em dizer que sou só um homem e basta. Eu nunca esperei ganhar
muito dinheiro e, por isso mesmo, nunca tinha pensado em sair do meu país.”
Yimer saiu da Etiópia no final de 2005, depois de ter participado de
manifestações políticas contra o governo. Primeiro foi até a capital do Sudão
e, em território estrangeiro, conseguiu reencontrar seus amigos e organizar a
fuga para Europa. A África poderia ser uma alternativa, mas nos países vizinhos
a situação política da qual estavam fugindo não era muito diferente. A Eritréia
vivia sob o poder de Isaías de Afewerki, desde 1993, a Somália sofria uma
guerra civil, o Dijibuti elegeu o presidente Guelleh com suspeitas de eleições
forjadas, o Quênia elegeu um presidente pela primeira vez em 2002 e o Sudão vivia
sob a ditadura de Omar Hasan Ahmad al-Bashir desde 1989.
Yimer estudava Direito na universidade de Adis Abeba quando o
país, em maio de 2005, realizou as primeiras eleições pluripartidárias, desde a
proclamação da República Federal Democrata. Há dez anos o primeiro ministro
Meles Zenawi estava no poder. Devido às pressões das Nações Unidas, o governo
liberou todos os partidos a se candidatarem e manifestarem livremente suas
propostas. A Etiópia ganhou movimentação política e os universitários
participaram ativamente da efervescência que o país viveu durante os cinco
primeiros meses daquele ano. A Coalizão para a Unidade Democrática (CUD) e a
Forças Democráticas Unidas da Etiópia (EUDF) tinham como pontos fortes no
programa de oposição o combate ao desemprego, a implantação de medidas
preventivas à contaminação do HIV e tratamento para esses pacientes, os quais
compunham 10% da população adulta do país, e, por fim, a melhor distribuição
das terras.
Uma semana antes do tão esperado domingo, 15 de maio, quando
seria escolhido o novo parlamento etíope, foi publicado um relatório da
organização Human Rights Watch
denunciando a violação dos direitos humanos e a repressão política na região de
Oromo, onde está situada a capital Adis Abeba. O documento registrava que
dirigentes locais prenderam manifestantes da oposição. Alguns dos amigos de
Yimer também foram torturados. Mesmo assim, o jovem demorou um pouco para
acreditar no que estava acontecendo e pensar em fugir.
Apesar da barbárie documentada pela organização internacional,
90% dos 73 milhões de habitantes foram às urnas. Preparando-se para o que
poderia acontecer no país depois da divulgação dos resultados falsos, na noite
de 15 de maio, Zenawi retomou o controle da imprensa e proibiu qualquer
manifestação de cunho político durante um mês. A vitória de Zenawi e da Frente
Democrática Revolucionária do Povo Etíope (EPRDF) foi avassaladora, deixando a
oposição com menos de um terço das cadeiras no Parlamento. Com esse resultado,
os outros dois partidos contrários à EPRDF não poderiam propor a agenda de
debates, nem vetar as leis elaboradas pela maioria parlamentar.
Em novembro, a revolta pela fraude nas eleições e o
autoritarismo da maioria parlamentar levaram os cidadãos de Adis Abeba a
desobedecerem as ordens do primeiro-ministro. Mais de 500 pessoas saíram às
ruas para protestar. Elas queriam mostrar ao mundo o que estava acontecendo no
país. Outros jovens como Yimer gritavam o nome dos líderes da oposição que
haviam sido presos, por terem contestado o novo Parlamento. A Anistia
Internacional denunciou que, apesar das manifestação pacífica realizada por
estudantes, professores, jornalistas, parlamentares e advogados, os policiais
agiram com violência. Duzentas pessoas foram feridas e, 64, mortas. Meles
Zenawi declarou, na mesma semana, a pena de morte de 58 cidadãos considerados
traidores da pátria.
Yimer entendeu o recado do primeiro ministro: “Tomei a
decisão num impulso, como os outros jovens. Nós sabíamos que um dia, de
repente, um soldado entraria na nossa casa e acabaria com a nossa vida. E,
pior, você estaria morrendo por uma manifestação que não mudou nada, já que não
podemos fazer mudanças. É nesse momento que você decide seguir em frente e
enfrentar a viagem.”
A viagem deveria ser organizada às pressas. Os estudantes de
Adis Abeba eram um grupo visado pela polícia. O primeiro passo de Yimer foi
trocar por dólares as economias que tinha para pagar a Universidade de Direito.
O dinheiro foi costurado dentro de uma calça jeans, como haviam recomendado
outros imigrantes. Ninguém pode deixar à mostra a quantia que leva, caso
contrário, a chance de ser roubado ou extorquido é muito maior. As viagens
atravessando o Saara até a costa do Mediterrâneo custam, em média, de US$ 1,5 a
US$ 3 mil, dependendo do ponto de início, de quantos policiais se encontrem
pelo caminho e de quantas vezes você seria preso pelos líbios.
O grupo de partida não poderia ser formado em Adis Abeba.
Algum soldado ou funcionário do governo poderia perceber a movimentação e
desconfiar que se organizava, ali, a fuga. O ponto de encontro foi a capital
sudanesa, Cartum. Este é um dos mais importantes centros comerciais do Sahel –
região do extremo sul do Saara, que vai do Senegal ao Sudão ligando os
agricultores dos campos meridionais aos nômades do deserto, ao norte. A cidade
conta com 2,7 milhões de habitantes, de maioria árabe e muçulmana. A semelhança
cultural, étnica e religiosa contribui para que os sudaneses consigam negociar
o tráfico de imigrantes, criando a rota de entrada na Líbia pelo deserto.
Yimer descreve essa etapa da viagem com tranquilidade. Era
apenas o início, nenhum deles sabia ao certo o que encontrariam no caminho.
Eles ainda tinham comida e água suficiente para o percurso. Já estavam mais
longe de casa e, não corriam perigo de serem presos pelos homens de Zelawi. Os
traficantes sudaneses que fazem a travessia não pertencem na sua maioria a
grandes redes ou organizações. São imigrantes que tentaram esse caminho outras
vezes e, por motivos diversos, ou não conseguiram chegar à Europa ou foram
deportados para a África. Nesse complexo sistema formado ao longo das rotas de
imigração, criou-se uma variedade de atividade profissionais que vão de
conselheiro para preparação da viagem até vendedor de documentos falsos e
agenciador de casas-dormitórios para imigrantes.
O grupo dos 22 etíopes passou um mês no Sudão, à espera da
chegada de todos para se organizarem e encontrarem um traficante. O contrato
com o contrabandista previa que ele os entregaria nas mãos dos líbios por US$
200 cada um. A partir daquela fronteira os etíopes deveriam pagar mais US$ 300
por pessoa aos intermediários para atravessarem o Saara. O destino final seria
a costa do país, nas cidades de Bengasi ou Trípoli – os dois polos mais
importantes da Líbia.
Os etíopes conheciam apenas uma parte dos riscos da viagem.
Yimer enfatiza que devido à perseguição política, tudo foi decidido num
impulso. Nenhum deles calculou ou planejou os perigos. Um cineasta italiano que
o jovem conheceu em Roma anos mais tarde dizia que antes que você viva alguma
coisa, você nunca acredita direito naquilo. E depois, quando a única
possibilidade é aquela, ninguém pensa muito no que poderá acontecer. Há anos, o
documentarista Andrea Segres trabalha com as questões dos imigrantes e
refugiados e, por muitas vezes, ouviu histórias repetidas sobre o sonho de
fugir da pobreza, da guerra e buscar uma vida melhor.
Quando o traficante encheu sua camionete com 32 pessoas,
incluindo Yimer e os outros etíopes, começou para eles o percurso no deserto. O
espaço no carro era pequeno e nenhum dos passageiros podia se mexer. Ninguém
conseguia fazer com que o motorista parasse porque estava se sentindo mal,
quisesse comer ou precisasse ir ao banheiro. A condição das “estradas” no Saara
fazia com que o carro balançasse muito, sendo difícil manter o equilíbrio,
principalmente porque viajavam com mais do que o dobro da capacidade ideal da
Ranger. Muitas pessoas caiam durante o caminho e os passageiros imploravam a
tal ponto que o motorista se via obrigado a parar para que pudessem subir
novamente.
Faltando 154 quilômetros para chegarem a cidade de Bengasi, o
carro parou e o traficante disse que não poderia prosseguir a viagem. Ele os
deixaria nas mãos dos policiais que faziam a ronda na cidade de Agedabia. Seria
a primeira extorsão oficial dos líbios. Todos ficaram muito assustados e o
terror tomou conta do grupo. Apesar de serem uma autoridade local e terem sido
designados para bloquear a imigração no pais, os policiais também trabalham com
o tráfico de imigrantes. Quando passaram às mãos dos novos intermediários, os
jovens refugiados ficaram sabendo que deveriam pagar mais US$ 300 se quisessem
prosseguir com a viagem. “A primeira coisa que fiz foi dizer que não tinha esse
dinheiro porque comecei a entender que se pagasse sempre eu não chegaria
nunca”, lembra revoltado Yimer.
Em Agedabia, passadas algumas horas de negociação pouco
cordial com os policiais, o acordo foi que cada um pagaria US$ 100 e todos
seriam levados para Bengasi. Sorte ou não, na mesma noite foi mandado um táxi até
o local que conduziu todos à costa líbia. Os intermediários não disseram mais
nada e o taxista não falou para onde estavam indo. Antes de chegar ao destino
final, o motorista deu algumas voltas em torno da cidade, para que os
imigrantes não percebessem qual o caminho que haviam percorrido. Mais tarde,
descobririam que estavam tão perto de Bengasi, que a viagem de táxi até ali
custa normalmente dez dinares ou oito dólares.
O taxista os deixou em uma pensão já conhecida pelos
traficantes em Bengasi. Naquela semana estavam lá muitos eritreus, à espera de
uma oportunidade para chegar à Trípoli e de lá a Lampedusa, na Europa. Durante
uma semana, os jovens etíopes se instalaram no local, pagando US$ 2 por noite
para dormirem no chão, enquanto esperavam a vinda de outros intermediários.
Depois de sete dias foram para a casa do novo contrabandista responsável por
eles.
Yimer pediu a seu pai e irmãos que lhes mandassem os US$ 300
exigidos pelo novo intermediário, para ser levado de Bengasi até Trípoli. A
transferência é feita em nome dos contrabandistas. A única segurança oferecida
é um código passado ao imigrante para que o dinheiro possa ser retirado. A
senha chegou um dia depois que o depósito foi efetuado. Durante a noite os
imigrantes passaram ao líbio os números que davam acesso aos dólares vindos da
Etiópia. Antes do amanhecer a polícia fez uma blitz na casa onde estavam
hospedados e levou todos os jovens presos.
A polícia líbia começou a reforçar o controle da imigração a
partir do ano 2000. Centenas de africanos foram presos e, desde aquele ano, a
Itália começou a patrocinar oficialmente, através de acordos de cooperação, a
vigilância nas fronteiras do país. Apesar da represália contra os estrangeiros,
a história líbia deixa claro como a presença de imigrantes vem desde a década
de 60 e teve um papel importante no seu desenvolvimento econômico. As polícias
imigratórias da União Europeia também interferiram na segurança e bloqueio das
rotas. Marrocos, Tunísia e Líbia receberam recursos de países europeus para
intensificarem a vigilância de suas fronteiras.
Yimer foi preso pela polícia de Bengasi em casa e, revoltado,
conta que “foram pessoas comuns que nos impediram de fugir. Eles passavam
rasteiras na gente só porque éramos estrangeiros. Os motoristas abriam as
portas dos carros para trancar nosso caminho. Umas senhoras colocaram todo tipo
de objeto para dificultar nossa passagem. Eram nossos vizinhos. Foi pior do que
ver a polícia nos caçando.”
A experiência dos cárceres líbios é para os refugiados um dos
maiores traumas da viagem. Muitos não conseguem exprimir em palavras a
experiência, outros contam o que se passou em flashes, é difícil reviver mentalmente aqueles momentos. Yimer
tentou ser prático ao narrar esta etapa da viagem, mas assim como quase todos
os imigrantes, não conseguiu. A primeira lembrança foi de que, apesar de tudo,
teve sorte na prisão de Bengasi. Por lá passou apenas uma noite. Logo em
seguida, o olhar do etíope fixou-se sob um ponto longínquo e tocando em algo
que deixou marcas profundas disse que do presídio de Bengasi foi levado dentro
de um container para o cárcere de
Kufra, no meio do deserto. Ele dividiu a viagem sufocante de retorno ao Saara
com Adam, um menino de apenas quatro anos.
Antes de partir para o deserto, Yimer pediu para pegar seus
pertences e a resposta dos policiais foi violenta. O jovem foi espancado.
Ninguém poderia levar uma peça de roupa além daquela que estava usando. Sapatos
também eram vetados. Os prisioneiros deveriam ficar descalços, porque uma das
torturas praticadas é fazer com que o detento permaneça de pé, durante as horas
mais quentes do dia, sobre as areias escaldantes do Saara.
Quando foram presos na casa do traficante, ninguém explicou
aos imigrantes o que estava acontecendo. Eles não sabiam para onde estavam
sendo levados e nem por quanto tempo ficariam detidos. Nos cárceres líbios,
quando a quantidade de presos atinge um determinado número estipulado pelas
autoridades, os imigrantes são mandados para as prisões situadas no Saara. Esta
é uma medida para esvaziar as prisões e contribui também com o trabalho dos
contrabandistas e policiais, uma vez que o ciclo da viagem recomeçaria e os
imigrantes deveriam pagar novamente pela travessia do deserto. Em Bengasi o
número limite de detentos era de 110. Quando os etíopes foram capturados, o
cárcere já contava com outros 100 presos, isso explica porque Yimer ficou
apenas uma noite na prisão.
Na manhã seguinte, os detentos foram enfileirados e obrigados
a entrar no container. Quando olharam,
os jovens não acreditaram. Como percorreriam o deserto totalmente fechados,
enclausurados, por mais de 20 horas? O meio de transporte com que dessa vez
atravessariam o Saara era muito pior que os caminhões dos traficantes. Yimer
não consegue disfarçar o terror quando relembra das horas dentro do container. Eles não sabiam, mas seriam
levados para o centro de detenção de Kufra, na fronteira da Líbia com o Sudão.
Todo o caminho e as dificuldades enfrentadas até ali foram em vão. O dinheiro
gasto na viagem até a costa líbia tinha sido jogado fora, porque agora estavam
mais uma vez distantes do Mediterrâneo. Por um dia e meio, ficaram trancados
sem comida nem água, viajando pelo deserto. Yimer conta que pior do que a fome,
era o barulho enlouquecedor do choque entre os ferros do caminhão e as areias
do Saara. “O calor e aquele zumbido constante davam a impressão de que já havia
enlouquecido, já não era mais um ser humano”. Tudo isso, somada a falta de
circulação de ar, fez com que quase todos os passageiros ficassem inconscientes
por alguns períodos. Na mesma situação de Yimer estavam nove mulheres e Adam, o
menino de 4 anos. “Por que a brutalidade de prender aquela criança? Que mal uma
mulher com seu filho fez para a sociedade? Eu, quando olhava para Adam, não me
lamentava de nada, seria egoísta demais. Não vou esquecer nunca os olhos
daquele menino. Ele nem sabia para onde a mãe o estava levando, imagina o que
vai pensar quando crescer?”
Os momentos de maior tensão eram quando o motorista muçulmano
parava para fazer suas orações. O caminhão era deixado sob o sol, fazendo com
que o calor e a falta de ar aumentassem. Todos se agitavam dentro do container e a primeira coisa que faziam
era levar a criança do grupo o mais próximo possível de um pequeno buraco nas
portas. Conforme o tempo passava, a situação piorava, porque alguns levantavam
e aqueles que estavam no fundo do furgão começavam a gritar. O ar não chegava
mais até eles.
No cárcere de Kufra, em pleno deserto do Saara, poderiam
comer apenas uma vez por dia, geralmente um punhado de arroz para ser dividido
entre três ou quatro detentos. O sistema de distribuição de água para os
prisioneiros era feito em barris, que chegavam às celas através de mangueiras.
Para Yimer era só mais uma das humilhações que sofriam. O banheiro ficava no meio
da cela e não havia privacidade ou papel higiênico. Apesar disso, os presos
tentaram se organizar. Cortaram uma garrafa de plástico ao meio e, em uma das
partes, separavam a água para o asseio, a outra serviria como copo para beber a
água das mangueiras. O refugiado contou que prefere nem imaginar quantas vezes
teriam trocado as duas partes e, bebido água num copo que minutos antes poderia
ter sido usado para a higiene de algum outro prisioneiro. Os imigrantes sentiam
que a vontade dos militares era que eles se convencessem de que não mereciam
ser tratados como seres humanos. Como não havia janelas nas celas, todos
procuravam manter-se a maior parte do tempo em pé, próximos das saídas de ar. A
sujeira também fazia com que ninguém quisesse se deitar no chão para descansar.
Os imigrantes se encostavam pelas paredes e adormeciam como dava. A temporada
de Kufra durou apenas uma semana para Yimer. Aquele era o período de
comemorações pelo aniversário do líder do país, coronel Khadafi. Nas cidades
pelas quais a comitiva de festa passaria não deveria haver vestígio da
existência de imigrantes: todos deveriam ser presos. Com blitz policial nas
casas, comércios e fábricas, rapidamente todos os cárceres estavam cheios,
inclusive o de Kufra. Era também o momento em que os militares ganhavam algum
dinheiro com os estrangeiros.
No final daquela semana, os policiais colocaram os
prisioneiros em fila e os deixaram em exposição para os contrabandistas. Todos
foram vendidos. “Os traficantes chegaram, contaram quantos éramos e ofereceram
30 dinares (18 euros) por cada um. Somos mercadorias, somos o lucro dos
militares. Por isso toda essa coisa de nos levar para a cadeia e nos trazer de
volta para o deserto”, concluiu Yimer. Os policiais mandaram todos de volta
para celas e, durante a noite, carregaram as camionetes com os prisioneiros. A
estratégia era fingir que aquela era uma missão de deportação. Ao invés disso,
quando saíram da cidade os estrangeiros foram abandonados em algum ponto do
deserto pré-estabelecido com o traficante.
O novo proprietário dos imigrantes chegou após algumas horas
e esclareceu a situação: quem quisesse tentar novamente a viagem para a costa,
em Trípoli ou Bengasi, deveria pagar US$ 300. Aos que não concordassem seriam
necessários, no mínimo, US$ 50 para que fossem liberados. “Somos vendidos como
escravos. É tudo um jogo, uma armadilha, porque você não pode voltar para trás,
já que estamos no deserto e ninguém te levaria embora. Mesmo para os que
escolhem voltar para casa, ninguém lhes dá essa oportunidade”, denuncia Yimer.
Havia quem tivesse enfrentado esse ciclo até por sete vezes:
foram vendidos, pagaram a viagem, foram presos, devolvidos para o deserto em
Kufra, vendidos novamente. Muitos refugiados contam que foram comprados por
contrabandistas que os traíram outras vezes e se recusavam a viajar com eles.
Quando isso acontecia, tinham que pagar o mínimo de US$ 50 para ganharem a
liberdade. Yimer não foi enganado e chegou a Trípoli depois de alguns dias. Uma
vez desembarcado na costa mediterrânea, o jovem e os poucos companheiros que
ainda restaram do seu grupo procuraram o mais rápido possível embarcar para
Lampedusa, a ilha italiana situada no outro lado do Mediterrâneo.
Quando os imigrantes entram em Trípoli a peregrinação até a
Europa começa a se transformar numa sensação de euforia, de quem está quase
chegando. O último desafio seria enfrentar o mar, depois disso já estariam em
solo europeu. Atualmente, o mesmo Mediterrâneo vê conectadas suas duas pontas
por um gasoduto que percorre, nas profundezas, o mesmo caminho que os barcos
clandestinos. Tanto o gás e o petróleo, como os imigrantes, serviram de moeda
de troca nas relações de Khadafi com os países europeus. A primeira assinatura
do contrato de cooperação no combate ao terrorismo, tráfico de drogas e
imigração ilegal da Líbia com a Itália foi em 2000 e levou Khadafi a romper
relações com seu vizinho Sudão e fechar militarmente as fronteiras dos dois
países, situadas no Saara. Dali em diante, os sudaneses que sempre procuraram
trabalho temporário do outro lado do deserto teriam que se sujeitar aos postos
de controle de imigrantes. A rota dos imigrantes subsaarianos passou a ser
controlada e manipulada pelos homens de Khadafi. Em troca, foi iniciada a
campanha italiana para que o embargo da ONU contra a Líbia chegasse ao fim. O
que de fato aconteceu em 2004, as últimas sanções ao comércio e às relações
diplomáticas com a Líbia caíram naquele ano. Entre outubro de 2004 a março de
2005, mais de 1500 imigrantes foram expulsos da Itália para os centros de
detenção na Líbia.
Das pessoas que partem da Líbia e da Tunísia em direção à
Sicília, 12% não chegam à Europa. Algumas caem no mar, outras são jogadas, há
aquelas que morrem de fome e sede perdidas na rota pelo Mediterrâneo. Ao voltar
para Trípoli a única coisa que Yimer buscava era fugir dali o quanto antes. O
jovem ligou pedindo US$ 1.300 a seu pai para pagar o contrabandista que
organizaria o embarque para Lampedusa. Foram 30 dias à espera.
Após os acordos assinados entre a Itália e a Tunísia para o controle
da imigração ilegal, a rota do Mediterrâneo foi transferida para a Líbia e ali
o tráfico de imigrantes ganhou traços de uma grande empresa. O número de
passageiros por embarcações aumentou, uma vez que os contrabandistas contam com
a proteção dos policiais e não precisam disfarçar a saída. Os intermediários
procuram reunir o máximo de pessoas por viagem para ganharem mais, com os
mesmos custos. As travessias podem ser feitas até por 300 imigrantes. Os
barcos, porém, continuam sendo os mesmos que saiam das praias de Sfax, na
Tunísia. A cidade é a segunda mais importante do país e tem sua economia
baseada na pesca e na produção e exportação de óleo de oliva. Nos últimos anos
os pescadores encontraram mais uma forma de sustento: os barcos e canoas fora de
uso, por não estarem em condições seguras para enfrentar o mar, são vendidos
aos traficantes líbios. Além disso, a Convenção das Nações Unidas sobre o
Direito do Mar, de 1982, instituiu a obrigatoriedade das guardas costeiras
prestarem socorro a qualquer vida em perigo nas águas territoriais. Os
contrabandistas, sabendo disso, passaram a lançar em alto-mar embarcações sem
condições de completar a viagem.
Enquanto os etíopes viajavam, a Caritas relatou que pelo
menos 677 corpos estariam dispersos no fundo das águas mediterrâneas. Quando
aparece ao longe, a ilha siciliana emociona os imigrantes. É para muitos o mito
que perseguiram nos últimos meses. Desde que saíram de seus países,
atravessaram o deserto e enfrentaram a Líbia, Lampedusa era vislumbrada como a
única esperança. “Alguns morreram, outros se perderam pelo caminho, mas nós
estávamos ali. Os europeus fazem um jogo maquiavélico com os imigrantes. A
impressão que eu tenho é como se tudo fosse um teste para que na Europa entrem
apenas os mais fortes, aqueles que conseguiram ultrapassar todas as fases”,
conclui Yimer.
A situação na Líbia após a derrocada e o assassinato de
Khadafi é ainda mais instável e os imigrantes continuam a mercê de
contrabandistas e traficantes, agora não apenas do governo, mas também da
oposição. O Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)
estima que no final de 2014 eram cerca de 59,5 milhões o número de deslocados à
força – desse total, 86% estão abrigados em países pobres e menos de 4% na
Europa Ocidental. Da guerra civil na Síria, por exemplo, a Acnur aponta que
antes de chegarem na Europa a maioria dos refugiados passa meses ou anos nos
campos da Turquia ou do Líbano, ambos em situações cada vez mais difíceis.
Ambos servindo de moeda de negociação política. Enquanto os países
desenvolvidos ainda bloqueiam a chegada dos imigrantes e a política comum de
acolhimento e gestão do fenômeno reflete em policiais atirando em crianças nas
fronteiras, a violência para selecionar os refugiados que conseguirão passar por
essas barreiras e conseguir o status humanitário na Europa é cada vez maior,
com ou sem a demagogia xenófoba de cada país.
Este texto é uma versão modificada de trabalho publicado originalmente no livro Entrada proibida: uma história do combate à imigração africana na Itália. Rio de Janeiro: Multifoco, 2011.