28 de julho de 2019

Por amor a elas, por amor ao mundo


Virgínia Maria Vasconcelos Leal



Under the Wave off Kanagawa (Kanagawa oki nami ura), de Katsushika Hokusai


A história da literatura com temática lésbica no Brasil é também a história da lesbofobia. Se pensarmos que a lesbofobia adiciona dois preconceitos — às mulheres e aos homossexuais em geral —, a representação desse grupo social é bem minorizada. É fato que a presença de personagens e escritoras lésbicas no Brasil está crescendo, haja vista os próprios movimentos pelos direitos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros. Não à toa há tanta reação na onda conservadora que assola o Brasil. Se a escritora Cassandra Rios, que produziu romances bastante populares desde os anos 40 até os anos 90 do século passado, era figura isolada no cenário brasileiro, agora, mais e mais estudos sobre ela começam a aparecer, assim como outras vozes de temática e/ou autoria lésbica também se consolidam.
            É claro que a definição do que seria uma “lésbica” perpassa, inevitavelmente, pela complexidade da identidade feminina ou de gênero. As discussões nos estudos feministas e do gênero levaram a tendências várias que podem ser resumidas, em um primeiro momento, e para efeitos explanatórios, entre noções essencialistas e não essencialistas da “identidade” ou da “mulher”, ou entre feminismos da “diferença” e da “igualdade”. Lembremos que as mulheres lésbicas e negras foram as primeiras a questionar a ideia de um feminismo monolítico, abrindo mais ainda o leque de questionamentos. Uma das possibilidades para se distanciar do essencialismo identitário seria pensar mais em localizações e relações entre grupos. Poder-se-ia dizer que as “lésbicas” não constituem um grupo uniforme, em princípio, não tem uma “natureza” em comum, mas formam um grupo relacional e flexível, como defende Iris Young, em outro trabalho, denominado “Gênero como serialidade” (YOUNG, 2000). Para ela, são as relações — seja entre grupos, seja entre indivíduos — que constituem os grupos sociais. Pensar, então, uma construção comum de uma representação de gênero para, por exemplo, um grupo de escritoras e/ou leitoras lésbicas seria pensá-las como um grupo, considerando suas trajetórias como indivíduos que, por conseguinte, geram obras também individualizadas. Para Young, as estruturas de gênero não definem atributos específicos para as mulheres, mas os fatos sociais e materiais com os quais cada indivíduo deve lidar. Cada pessoa, subjetiva e empiricamente, relaciona-se com as estruturas de gênero de forma variável (YOUNG, 1997, p. 30).  Assim, “nenhuma  identidade de uma mulher individual, então, irá escapar das marcas de gênero, mas como o gênero caracteriza a sua vida é próprio dela” (YOUNG, 1997, p. 33).
            Experiências literárias brasileiras e contemporâneas de autoria feminina têm questionado, de forma distinta, a matriz de inteligibilidade de gênero, nos termos de Judith Butler, que trabalha, tradicionalmente, com ordens binárias, sendo uma das suas marcas o desejo heterossexual. Pode-se citar as obras de Elvira Vigna, Deixei ele lá e vim (2006) e Coisas que os homens não entendem (2002), autora que se destacou com suas personagens em constantes movimentos entre máscaras, identidades e corpos. Ou mesmo Cíntia Moscovich que, em romances como Duas Iguais (1998) e em contos como “Mi Buenos Aires Querido” (2002) e “À memória das coisas afastadas” (2002), tem revisto preconceitos em relações aos papéis tradicionais das identidades de gênero. Escritoras publicadas por editoras centrais e com obras consolidadas também trabalharam a temática lésbica, como Lygia Fagundes Telles, Myriam Campello, Fernanda Young, Stella Florence, Cecília Costa e Heloísa Seixas, em narrativas que mostram, por vezes, a impossibilidade de uma satisfação amorosa. Ou mesmo experiências mais militantes, como todas as obras das Editora Malagueta (já extinta) e da Vira Letra, com propostas de publicar livros de lésbicas. Outra produção relevante vem das escritoras publicadas pela editora GLS, como Ana Paula El-Jaick, Fátima Mesquita e Lúcia Facco. Também no campo da autoria literária feminina negra, Conceição Evaristo traz o conto “Isaltina Campo Belo”, que está em seu livro Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), no qual são discutidas questões de raça, identidade de gênero, sexual, violência, maternidade e amor. Também é importante citar experiências mais recentes e relevantes como o coletivo editorial  Padê  e o portal literatura.lgbt.com. Enfim, quaisquer listas de nomes e projetos nunca seriam definitivos, haja vista tantos trabalhos novos que aparecem a cada dia.
            Para essa discussão, gostaria de destacar Carol Bensimon, com seu romance Todos nós que adorávamos caubóis (2013). Nele, a narradora Cora, em ambientações sucessivas durante uma jornada de carro, discorre sobre sua própria identidade de gênero e sexual. A obra permite analisar diversos posicionamentos identitários de suas personagens principais. Tanto a narradora Cora, quanto a sua amiga/namorada Julia, deslocam-se espacialmente em uma viagem no interior do Brasil, mas não só. Para quem não conhece a narrativa, é importante assinalar que, no romance, as duas jovens empreendem uma viagem de carro pelo interior do Rio Grande do Sul. Nessa viagem, são várias situações de conflitos e asperezas entre elas, entre os padrões heterossexistas e até de autoaceitação das próprias identidades. Se o final, no âmbito cronologicamente linear, acontece com Julia chegando em Paris para visitar Cora, não há certezas que ficarão “seguras” em um final feliz previsível de um filme clichê romântico. Os momentos e as palavras finais do romance não ocorrem em Paris, e sim nas lembranças felizes do namoro juvenil quando Julia ficara assistindo televisão no quarto de Cora:
A TV tinha ficado ligada no mudo, era um filme de bangue-bangue cheios de moscas e barbas por fazer, mas Julia só havia visto os quinze minutos finais. Ela disse que adorava caubóis. Agora Julia estava esticada na minha cama, de maneira que parecia não ter sobrado muito espaço para mim. Tirei a roupa, coloquei uma camiseta velha e tentei me acomodar como pude (grifo meu). O filme ainda estava bem longe de terminar. Fiquei assistindo. Um duelo. Um romance. Um deserto. Aquela menina que dormia ao meu lado. Todos nós adorávamos caubóis. (Bensimon, 2013, p.190)

            Assim como o filme “longe de terminar”, as últimas palavras revelam seu título e a circularidade do processo infinito de aprendizagem e de deslocamentos identitários de duas personagens contemporâneas em viagens e duelos contínuos, mas que, talvez, só estejam simplesmente querendo alguém ao lado, a ocupar o espaço que as deixe minimamente confortáveis, mesmo que em ambientes hostis às suas identidades negociadas.
            Pensemos, então, em subjetividades encarnadas e sexuadas no feminino — uso aqui um termo e discussão de Rosi Braidotti (2018) — que nunca ocuparam historicamente uma posição privilegiada e confortável — e que podem trazer uma “positividade que não significa aceitação cega ou passividade acrítica. Empenhar-se na frente da positividade quer dizer catalisar a construção de contextos nos quais seja possível transformar as paixões e os impulsos negativos no ‘aqui e agora’ das relações concretas”. Subjetividades também encarnadas literariamente, negociando seus desconfortos, ao expressar seus afetos, por exemplo, na “família” (assim no singular), como o fez Natália Borges Polesso que, com seu livro Amora, recebeu o Prêmio Jabuti de 2016. Seus contos são protagonizados por mulheres, com temática homoerótica, em uma diversidade inclusive geracional. Nas narrativas de Amora, esses afetos, femininos desde seu título, são perpassados por diversos olhares. Nelas, as protagonistas vivem seus amores por outras mulheres, não só no âmbito da parceria erótica e/ou amorosa mas também por outras relações tão importantes, como as de amizade, de coleguismo, de família, de vizinhança ou mesmo de fé e religião compartilhadas. Seu livro ganha força quando aparecem representações pouco frequentes na literatura brasileira contemporânea de temática lésbica. Mulheres mais velhas e acostumadas a “não incomodar”, como é o caso do conto “As tias”. A história delas, Tia Alvina e Tia Leci, é contada pela sobrinha que acompanha, de forma solidária, amorosa e curiosa, a relação de sessenta anos dessas mulheres que se conheceram em um convento e resolveram compartilhar a vida. A família de uma delas, que nunca fala abertamente sobre as duas, que torce a “cara” com perguntas diretas, convive com certa tolerância. Esse olhar que acompanha as relações entre mulheres maduras dentro da família também está no conto, cujo título é também a oração de abertura da narrativa: “Vó, a senhora é lésbica?” A pergunta direta do primo, em sua espontaneidade de criança, desencadeia lembranças em Joana, da relação da avó com a sua companheira Carolina, chamada de “tia” pelas crianças da família. Joana, adolescente que se relaciona com Taís, narra:  “Pensei na minha insegurança de contar isso à minha família, pensei em todos os colegas e professores que já sabiam, fechei os olhos e vi a boca da minha vó e a boca da tia Carolina se tocando, apesar de todos os impedimentos. Eu quis saber mais, eu quis saber tudo, mas não consegui perguntar”.  Sim, esse foi o conto cujo trecho foi objeto de questão no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2018 e que “causou” tanta discussão, ataques e apoios à escritora. Só esse trecho não traz toda a sua construção baseada nas rememorações da narradora, nas cenas familiares com a avó contadora de histórias. Ao final, a avó responde sim aos netos. E, de certa forma, fortalece Joana que sabe que tem mais facilidades para viver sua história amorosa que sua avó, por conta das conquistas políticas pela visibilidade das identidades sexuais minoritárias.
Sara Ahmed, em sua obra La politica cultural de las emociones (2015), afirma que “as emoções podem nos ligar às próprias condições da nossa subordinação, uma vez que elas nos mostram como o poder molda a própria superfície dos corpos e dos mundos”. Sara Ahmed discorre que a orientação sexual, seja ela qual for, está associada, é claro, a muitas emoções e articula também a maneira pela qual podemos entrar em diferentes espaços sociais. Há afetos positivos e negativos, custos, prazeres e satisfações associados a esse estar no mundo, vinculados a certas direções que nossa forma de amor e de viver pode assumir. Para ela, “a heteronormatividade funciona como uma forma de conforto público ao permitir que os corpos se estendam a espaços que já adotaram sua forma” (AHMED, 2015, p. 228, tradução minha). Se os sujeitos não normativos ficam sem direção, incomodados, ao enfrentar os “confortos” da heterossexualidade, esses mesmos sujeitos “incomodam” quando, por exemplo, demonstram seus afetos em espaços sociais não permitidos. Logo lhes é pedido que não incomodem. Sara Ahmed chama isso de “fetichismo de sentimento”. Assim como o capitalismo tende a esconder o trabalho de quem nos proporciona conforto, como trabalhadores/as da limpeza, por exemplo, no campo dos sentimentos e laços de intimidade também: para alguém se sentir cômodo, outro deve trabalhar muito, por exemplo, para não mostrar seu afeto, ou, em certos casos, ser o transgressor/a full time. Algo que toma tempo e, muito vezes, é social, psíquica e materialmente impossível para muitas pessoas e grupos, que não têm capital econômico e cultural suficiente para sustentar tal posição, como explica Ahmed. Para ela, a idealização da família faz-se também por meio de narrativas de ameaça e insegurança, ou seja, de modos de vida que vão “incomodar” (incrível como essa questão está atualíssima em relação ao Brasil, a exemplo do recém-criado Ministério da Mulher e da Família (assim no singular) e dos Direitos Humanos). Daí, talvez, se explique tanto desconforto causado por essa e outras narrativas que trazem, simplesmente, uma forma de amar.
Parece que representar relações lésbicas sempre traz, na maioria das vezes, uma sombra de lesbofobia. Então para que continuar a incomodar? Parece adequado trazer as provocações e respostas de Rosi Braidotti (2015). Para que tentar positivar, nesses tempos de intolerância, nosso “fracasso” conjuntural em abrigar identidades diversas? O que isso mesmo significa para nossos futuros sustentáveis, a serem construídos coletivamente e com a esperança ainda, apesar de tantos números e notícias aterradoras de retrocessos?  Para que? Mais uma vez, recorro às palavras de Rosi Braidotti, ao enfatizar que devemos manter as esperanças de mudança e de práticas políticas de resistência, tendo em vista, sempre, nossos interlocutores e interlocutoras mais importantes: os que virão depois de nós.  Sigamos, então, com as palavras dela a respeito de seu projeto de ética afirmadora de futuros sustentáveis: “Por que continuar com este projeto? Por nenhuma razão em particular. Aqui a razão não tem nada a ver. Trata-se de atuar pelo gosto de fazê-lo, para ser dignos de nosso tempo resistindo ao presente, por amor ao mundo” (Braidotti, 2018, p.146).


Referências bibliográficas
AHMED, Sara. La politica cultural de las emociones. Trad. Cecilia Olivares Mansuy. México: Unam/Programa Universitário de Estudios de Género, 2015.
BAIDROTTI, Rosi. Por uma política afirmativa: Itinerarios éticos. Trad. de Juan Carlos Gentile Vitale. Barcelona: Gedisa, 2018.
BENSIMON, Carol. Todos nós adorávamos caubóis. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
POLESSO, Natália Borges. Amora. Porto Alegre: Não Editora, 2015.
YOUNG, Iris Marion.  “O gênero como serialidade: pensar as mulheres como um coletivo social.” Trad. de Laura Fonseca e Marinela Freitas. EX AEQUO (Revista da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres) nº 8, janeiro de 2004. pp.113-139.

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