Carlos Wender Sousa Silva
“Havia
um homem antes da farda:
depois,
caos,
um nada,
anterior
talvez à farda
à
espera que, de ordem, uma palavra
o
preencha,
havia um homem”
Adriano
Scandolara
Nossa sociedade é exposta diariamente a diferentes práticas
humanas de intolerância e violência. Muitas delas são inexplicáveis de um ponto
de vista racional, na medida em que se distanciam de parâmetros éticos, morais
e filosóficos essenciais à vida coletiva. Essa violência decorre em alguma
medida do inconformismo diante da irrealização de interesses humanos imediatos
criadas dentro das relações de poder. As práticas humanas violentas perpassam
pelos âmbitos institucional e privado, indo desde uma relação entre um casal ou
entre vizinhos, até as relações profissionais previamente hierarquizadas. Esses
conflitos provocados e ressignificados pela sociedade contemporânea exigem
novas formas de se pensar nossas relações sociais a todo momento.
É nesse sentido que o romance Gog Magog, de Patrícia Melo, busca ressignificar alguns dos usos
que atribuímos à violência. Patrícia Melo, escritora, dramaturga e roteirista,
aproxima a literatura de vários dos elementos da barbárie nesse romance, em uma
tentativa de colocar alguns questionamentos com relação às nossas próprias
atitudes e interesses, tendo em vista que esses aspectos se desenvolvem diante
de todo um processo de construção social e psicológica. Além de Gog Magog, a autora tem obras que já
foram traduzidas em diversos idiomas. Ela recebeu prêmios por produções como Elogio da mentira, Inferno e Ladrão de cadáveres.
O romance O matador foi indicado ao
prêmio Femina na França e tornou-se filme em 2003, intitulado O homem do ano, com roteiro de Rubem
Fonseca e direção de José Henrique Fonseca. Atualmente, a autora vive na Suíça.
Gog Magog é o décimo romance da
escritora.
A proposta nesse romance advém da necessidade contínua de
dar uma resposta ao imediatismo a à dissolução das relações humanas na
sociedade contemporânea. A narrativa aborda muitos aspectos presentes na
realidade brasileira. São apresentadas algumas das diversas dificuldades de
comunicação do nosso tempo. O barulho da vida moderna aparece como uma metáfora
dessa incomunicabilidade nas relações pessoais e coletivas. Além de deixar em
aberto as delimitações entre a violência estrutural – institucionalizada – e
todas aquelas praticadas no âmbito privado.
As relações sociais neste início do século XXI têm sido delimitadas
por um aglomerado de informações que se acumulam nos diversos âmbitos da vida.
Há, muitas vezes, uma acumulação de informações, interesses e vontades que se
sobrepõem constantemente. Logo, as relações privadas e públicas são
reconstruídas sem as mesmas proporções de reflexão ou de entendimento com
relação à organização mais complexa da sociedade e das relações humanas.
Consequentemente, notamos uma contínua ressignificação dessas relações. O
imediatismo e a pouca profundidade desses vínculos levam a experiências de
frustração e inconformidade. Essa sociedade inconformada, diluída na
insatisfação consigo mesma e na negação da alteridade do outro, forma
indivíduos que menosprezam e assumem o ódio como resposta aos diferentes
conflitos que essa organização social constrói.
O ápice desse processo é o não reconhecimento do outro e a
própria banalização da vida humana, que levam a práticas de violência, de
racismo, de homofobia, de xenofobia, de extermínio, de opressão e de
silenciamento das diferentes vozes. É nesse sentido que Gog Magog busca captar na realidade alguns desses elementos e
experiências da sociedade contemporânea, na tentativa de ressignificar esses
abusos estruturais através do texto literário. O barulho, o ruído que incomoda
o personagem central é o mesmo que constrói as relações sociais hoje. O romance
é uma tentativa de compreensão e percepção de algumas das práticas humanas
irracionais.
O romance tem como protagonista um professor de biologia,
que mora em uma metrópole – São Paulo. A narrativa de Patrícia Melo é tecida
dentro de uma relação espaço-temporal que rapidamente identificamos como
brasileira, expondo aspectos da violência e das desigualdades próprias do nosso
país. O professor, cidadão honesto e pacato, não tem nome, ao contrário do seu
vizinho, Ygor, que se muda para o apartamento de cima. Ygor, ou Senhor Ípsilon,
apelido atribuído pelo professor a ele, é a peça fundamental que levará o
personagem central a ter sua vida completamente transformada e orientada de
acordo com os hábitos e atitudes do seu novo vizinho.
Os ruídos provocados pelo Senhor Ípsilon vão ocupando a
cabeça do professor de biologia, que vai se perder na sua própria
irracionalidade. Esse movimento demonstra a incapacidade do sujeito de
racionalizar diante de situações que dizem respeito a vida urbana
contemporânea. O professor que já tinha um casamento fracassado, que não
encontrava muita razão na sua própria existência, nem qualquer sentido na
realidade na qual se confrontava, revela sua incapacidade em compreender a
organização da vida humana. Sua vivência insignificante e sua visão de mundo
limitada o levou a adotar atitudes violentas e criminosas.
Na medida em que recusa a relação social presente no
romance, a qual deveria ser construída mutuamente, o professor, imbuído pela
sua frustração, constrói concepções equivocadas do seu direito com relação ao
de outro cidadão com quem precisa compartilhar um código social. É exatamente a
perda desse código social como instrumento que orienta as relações pessoais e
coletivas do indivíduo, que acaba levando o professor a tomar atitudes
contrárias não somente ao código, como também opostas a vários princípios
éticos, morais e filosóficos.
Além da sobreposição inadequada de um direito individual
sobre o de outro indivíduo, quando na verdade deveria haver a conformação entre
ambos, a narrativa revela ainda a dificuldade que o personagem tem diante dos
diferentes conflitos que a vida apresenta no dia a dia. Ou seja, a atitude do
professor de biologia é um reflexo do próprio movimento de interrupção do
diálogo diante de uma situação na qual tem-se interesses divergentes. O barulho
metafórico presente no romance representa os ruídos provocados nas tentativas
infrutíferas de comunicação entre os indivíduos na atualidade.
Nessa zona de incomunicabilidade não há lugar para o
diálogo nem para o consenso. A dificuldade do personagem em lidar com o barulho
reflete a impossibilidade da contemporaneidade de convivência entre ideias
diferentes em um espaço em comum. O senhor Ípsilon, integrado à organização da
vida urbana moderna, tirava o sossego e interrompia o silêncio do professor.
Esse silêncio, que a princípio poderia ser entendido como um direito de cada
indivíduo, nos levando a interpretar as atitudes do personagem a partir de
parâmetros racionais, era, na verdade, a revelação da incompreensão e da
irracionalidade do personagem diante das situações dinâmicas da vida moderna.
Da irracionalidade vai-se ao ódio e à violência. O ato de
violência é o ápice da relação entre o professor e o seu vizinho. É o encontro
entre as seguintes estruturas do romance: personagem, desejo e conflito. As
atitudes desse personagem autoritário que se perde em si mesmo, nas suas
irrealizações e nas suas limitações, expõem algo muito mais estrutural presente
na organização social. A indiferença e a falta de empatia diante das
confrontações pessoais e coletivas, muitas vezes, colocam o indivíduo em uma
posição ilusória de superioridade. Daí advém o menosprezo e as diferentes
formas de preconceitos como dito anteriormente. Todo esse movimento leva em
muitos casos a uma histeria coletiva. Essa histeria é resultado de
comportamentos e percepções que levam os cidadãos a fazer escolhas
injustificadas e inumanas.
No romance, a chave girando na trinca da porta do senhor
Ípsilon, os seus passos ecoados embaixo, os objetos que caem no chão, tudo é
motivo para desestabilizar o conforto do professor. A reprodução dos sons
produzidos pelo senhor Ípsilon dentro da estrutura narrativa vai apontando
pouco a pouco a maneira como o personagem central se perde na pequenez da sua
própria existência.
Na vida real, basta uma fechada no trânsito, a recusa da
sexualidade e da subjetividade do outro, um olhar atravessado, um negro
carregando um guarda-chuva ou condenado por portar um desinfetante em um ato
político, um homem que ameaça e agride a companheira ou um terceiro diante da
fragilidade da sua própria masculinidade, para revelar estruturas sociais
desiguais e excludentes. Todas essas práticas denunciam as diferentes formas de
violência estruturais e suas desigualdades. A pluralidade cria alguns ruídos em
determinadas camadas da sociedade, levando-as a agir em interesse próprio por
motivo ideológico, econômico, político ou filosófico.
O senhor Ípsilon, assim como nessas situações corriqueiras
do dia a dia, noticiadas ou não, o indivíduo (a vítima) não é mais visto como
ser humano, mas como um objeto. O seu direito é reduzido diante do direito do
agressor, do indivíduo autoritário e violento. Ocorre um processo de
animalização daquele que é posto em uma posição de inferioridade por aquele
outro que se sobrepõe arbitrariamente.
Eu – o
professor: (...) E eu não pensava no senhor Ípsilon como um ser humano.
E o
médico perguntaria: Não? Como você pensava então no seu vizinho?
E eu responderia: Como
um objeto. Um emissor de ruídos variados e desnecessários. Sem conteúdo (MELO,
2017, p. 111).
Não é estabelecida uma relação mútua, orientada pela
conformação dos interesses divergentes, mas um movimento de silenciamento e de
apagamento do outro. O outro provoca ruídos desnecessários; para o agressor é
alguém vazio, sem conteúdo. Para ele, a única forma de experienciar a vida é a
sua, não a reconhecendo como limitada e como apenas mais um movimento dentro de
toda uma estrutura social. É essa mesma incompreensão da complexidade da
realidade que leva o sujeito agressor, homem honesto e pacato – como podemos
ler no romance, a violentar uma mulher, a agredir uma pessoa da comunidade
LGBT, a perseguir ou prender alguém por posicionamento político ou ideológico
diferente do seu, a torturar, a defender torturadores, a aprisionar ideias, a
apagar vivências do outro.
Em todos esses casos o outro é objetificado. Há esse ruído
entre a minha experiência e a alteridade do outro. No romance, o silêncio é o
produto de luxo do personagem central, pelo qual está disposto a pagar qualquer
preço, inclusive com a vida de outras pessoas. Na nossa realidade, esse produto
(barulho) pode ser uma ideia, um preconceito, uma crença religiosa, etc. Nesse
sentido, a obra literária se coloca como possibilidade de compreensão de uma
realidade formada por inúmeros ruídos.
A incomunicabilidade das relações humanas na
contemporaneidade é ressignificada no texto literário, de forma com que
busquemos compreender essas relações, criando possibilidades de intermediação
no encontro com outro. Por essa perspectiva, a literatura é uma possibilidade
de construção crítica, uma ferramenta de conhecimento da relação mútua do eu
face a alteridade do outro. A obra literária procura demonstrar que o eu não se
apaga diante da experiência de vida do outro, demonstra, ao contrário, a
possibilidade de interação entre ambas vivências por meio de processos de
aprendizagem, reflexão e troca de experiências. A literatura surge como espaço
de mediação dos diferentes conflitos.
Referência bibliográfica:
MELO, Patrícia. GOG MAGOG. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
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