18 de dezembro de 2020

Notas sobre o romance regional

 

Eurídice Figueiredo (UFF/CNPq)

Auréolas da Foz (2017), de Olívio Ataíde


Essas anotações foram suscitadas pelos comentários críticos à resenha do romance Torto Arado, escrita por Raquel Carneiro e publicada na revista Veja de 15 de dezembro de 2020 com o título de “Com Torto arado, Itamar Vieira Júnior dá novo fôlego ao romance regional”. A resenha foi postada pelo autor no Facebook, de modo que pude acompanhar as reações de pessoas do meio literário à atribuição da categoria “romance regional” à obra, premiada inicialmente em Portugal no concurso da Leya e agora consagrado com o Jabuti de melhor romance.

De maneira sucinta, o debate em torno da oposição regional/nacional X universal remonta ao romantismo, quando havia, de um lado, o romance indianista de José de Alencar e, de outro, o romance urbano de Machado de Assis, cujo texto “Instinto de nacionalidade” deu forma teórica à percepção do que se esperava dos escritores brasileiros para criar uma literatura própria sem apelar para o exotismo. Na década de 1930 o romance realista, de cunho social, se consolida pelas mãos de escritores nordestinos como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e, no sul, por Érico Veríssimo. Os romances escritos por eles foram chamados de “romances regionalistas” porque narravam histórias que se passavam no mundo rural de suas regiões, ao passo que aqueles que tinham como cenário o Rio de Janeiro, capital da República, eram “universais”. Essa classificação é generalizadora porque alguns romances desses autores eram urbanos; entretanto, é preciso ressaltar que os autores “regionalistas” fazem parte do cânone da literatura brasileira, tendo sido traduzidos em outras línguas e muito bem recebidos nos grandes centros de consagração. Todavia, o termo continua sendo pejorativo porque é confundido com o naturalismo do primeiro regionalismo do século XIX.

Antonio Candido, no seu artigo “Literatura e subdesenvolvimento”, faz uma correlação entre as diferentes fases do regionalismo brasileiro e as tendências literárias da América Hispânica. Publicado no livro América Latina em sua literatura em 1972 pela editora Perspectiva, portanto em pleno boom do realismo mágico de García Márquez, José Maria Arguedas, Juan Rulfo, Candido percebe que toda essa produção explorava o mundo do interior (o altiplano, o sertão, os confins). O crítico uruguaio Ángel Rama, criador do conceito de transculturação narrativa, considerava esses três escritores, assim como Guimarães Rosa, como representantes dessa tendência, em outras palavras, eles seriam transculturadores. Já Candido chama Guimarães Rosa de superregionalista, alguém que supera e, ao mesmo tempo, continua sendo regionalista; destaca o caráter metafísico e universal da obra do autor mineiro. Ele afirma que muitos escritores “rejeitariam como pecha o qualificativo de regionalistas (...). Mas isto não impede que a dimensão regional continue presente em muitas obras da maior importância”. Ele aponta o “refinamento técnico, graças ao qual as regiões se transfiguram e os seus contornos humanos se subvertem e adquirem universalidade” (1972, p. 361).

Esses quatro escritores – García Márquez, Rulfo, Arguedas e Rosa – seriam os epítomes dessa geração cuja consciência política se explicita ao explorar o subdesenvolvimento da América Latina numa escrita não-naturalista, que faz apelo à magia, ao absurdo, ao monólogo interior, à elipse e ao fantástico.

E Torto arado, o que teríamos a dizer desse romance que foi reconhecido em Portugal antes mesmo de ser publicado no Brasil? Ele é, antes de mais nada, muito elaborado, não só na linguagem como na estrutura, portanto, sua fatura requintada torna-o universal. Mas ser universal não quer dizer eliminar a dimensão regional e nacional, porque toda literatura parte de um particular, às vezes de uma micro-região, e fala ao mundo. Devido a uma coincidência -- li o romance de Itamar no momento em que era publicada a tradução de Senhores do orvalho, do escritor haitiano Jacques Roumain, para a qual escrevi o posfácio – percebi elementos comuns: a seca que dificulta ainda mais a vida da gente pobre, o personagem que tem de se deslocar para tomar consciência política e lutar contra a opressão, a resistência das mulheres, a utilização de religiões de matriz africana e a força poética da obra. O romance haitiano, publicado originalmente em 1944, é suficientemente “universal” para despertar o interesse da editora Carambaia em 2020.

O problema que transparece nos comentários que apareceram no Facebook é o etnocentrismo, que faria com que só escritores do sudeste, principalmente do Rio e de São Paulo, pudessem ser urbanos e universais. Ainda que a imprensa muitas vezes caia nos clichês, como, p. ex., ao falar de Moacyr Scliar, escritor judeu, que sempre explorou as questões judaicas em sua obra, era sempre chamado no jornal O Globo de escritor gaúcho. Outro exemplo: parece-me equivocado estabelecer uma equivalência entre  Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus como “escritoras vindas da favela” porque, embora Conceição tenha, efetivamente, vivido na favela em sua infância em Belo Horizonte, ela teve acesso à educação, tornou-se professora e concluiu um doutorado. Sem desmerecer Carolina, é claro, pois como adverte a pesquisadora Giovana Xavier em entrevista ao jornal O Globo (2019) Carolina deveria ser apresentada como uma intelectual negra e não como uma favelada. E realmente, em Diário de Bitita ela interpreta o Brasil a partir de seu lugar de mulher pobre e negra que vê como funciona a sociedade brasileira. O clichê contém uma parte de verdade, mas tende a confundir, nivelando padrões a enunciados simplificados e repetidos à exaustão.

Torto arado, de um autor jovem (nascido em 1979), se distingue da maioria da produção atual brasileira que é urbana, não importando se o romance se passa na praia de Garopaba ou em Porto Alegre, em São Paulo ou no Rio. Perscrutando o cenário, olhando para meus livros, o único autor que me parece guardar semelhança com Itamar é Ronaldo Correia de Brito, cearense radicado no Recife (nascido em 1951). Na orelha de Livro dos homens, escrita por Marco Lucchesi, se lê: “Posso afirmar sem erro que este é um dos livros mais importantes de que tenho notícia nesses últimos anos. Um Brasil profundo, mas livre de cores locais. Uma palavra plural, embora incisiva. Uma imagem penetrante, de alta densidade poética, servindo ao espaço ficcional de onde surge e para onde volta” (grifos meus). Em outras palavras, é regionalista sem sê-lo, ou, pelo menos, não é o que se costuma chamar de regionalista, embora explore a dimensão humana desses confins de Brasil.

 


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