5 de outubro de 2018

A violência contra a mulher em Mia Couto


Aline Teixeira da Silva Lima

Owen Gent

A violência doméstica contra a mulher recebe esta denominação por ocorrer dentro do lar, e o agressor ser, geralmente, alguém que já manteve, ou ainda mantém, uma relação íntima com a vítima. Pode caracterizar-se de diversos modos, desde marcas visíveis no corpo, designando a violência física, até formas mais sutis, porém não menos importantes, como a violência psicológica, que traz danos significativos à estrutura emocional da mulher. Conforme a lei nº 11.340/2006 (conhecida como Lei Maria da Penha), configura-se como violência doméstica contra a mulher “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”[1], criminalizando, assim, tais abusos inaceitáveis. Independentemente da sua roupagem, a violência de gênero expõe o desequilíbrio social da nossa sociedade, demonstrando a relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Esses papéis impostos de maneira tão arbitrária a ambos os sexos são consolidados ao longo da história e reforçados pela ideologia, como atenta Pierre Bourdieu ao afirmar que as estruturas de dominação são
produto de um trabalho incessante (e, como tal, histórico) de reprodução, para o qual contribuem agentes específicos (entre os quais os homens, com suas armas como a violência física e a violência simbólica) e instituições, famílias, a Igreja, a Escola e o Estado.[2]
E como “a cultura é a categoria que proporciona a matéria-prima para a construção das representações e é, também, a cultura que constitui o espaço onde circulam as representações sociais”[3], consequentemente, as produções literárias representam o tema aqui em consideração, estimuladas pelas ações violentas contra a mulher encontradas na ordem social. Dessa forma, é importante observar como autores contemporâneos, como Mia Couto, retratam a violência de gênero em suas produções, como no conto “Baralho erótico”, instigando, assim, questionamentos e reflexões de poder, explicitadas no parágrafo anterior, as quais ainda vigoram em nossa sociedade, e que, geralmente, legitimam uma naturalização da violência contra a mulher.
Logo na primeira frase do conto, o narrador dá uma pista do assunto a ser abordado, fazendo uso de um trocadilho: matrimônio/maltrimônio, sugerindo as infelicidades de um casamento. A narrativa é em 3ª pessoa e tem como protagonistas um casal, os quais são nomeados de maneira bastante significativa: Fula Fulano e Dona Nadinha. O primeiro nome do esposo, Fula, é um vocábulo usado, coloquialmente, para caracterizar uma pessoa furiosa. Seu sobrenome, Fulano, é um substantivo utilizado para tratar de pessoa incerta, ou quando não se quer nomear alguém, ou ainda quando pouco importa o nome do indivíduo para a conclusão do assunto. Assim, Fula Fulano pode ser qualquer um dos tantos homens que agridem sua parceira. Já o nome da esposa, Dona Nadinha, representa o que não existe, um vazio, um silêncio muito característico da personagem. E o fato do pronome indefinido estar no diminutivo (nadinha) reforça o seu significado de ausência absoluta. Trata-se de uma mulher a quem não se atribui valor ou importância.
A dinâmica do casal é bastante simples. Fula Fulano não possui trabalho formal, vive de malandragens. Portanto, passa o dia inteiro em casa, a dormir, e sai à noite, visando às jogatinas. Dona Nadinha, como seu “título” sugere, é uma dona de casa, mas que só faz os serviços domésticos à noite, pois, durante o dia, fica a folhear revistas e ver fotografias, sonhando com as imagens visualizadas, as quais eram sua única janela para o mundo, tendo em vista que passava o dia confinada em casa.  Essa rotina do casal se torna bastante peculiar a partir do momento que o narrador informa ao leitor que Dona Nadinha só fala no período noturno: “A mulher era muda durante o dia. Mesmo que pretendesse não lhe saía palavra. Só de noite ela falava”[4]. Logo em seguida, outra informação é acrescida, que ela apanhava do marido. Dessa forma, a situação é desvendada: Dona Nadinha não falava no período diurno, porque seu marido encontrava-se em casa. E quando ela se pronunciava, ela apanhava. O período que ele se encontrava fora para jogar, à noite, era o mesmo que ela falava. Essa afirmação pode ser comprovada pelo trecho: “Mesmo sendo noite [Fula Fulano estava em casa], Nadinha rodopiou sem falar”[5]. E infere-se que conversava sozinha, já que este momento era o mesmo que realizava os trabalhos da casa e não havia interlocutores ali com ela.
O silêncio de Nadinha é um traço característico de mulheres que sofrem abusos por parte de seus cônjuges. Devido à crença na incapacidade de reagir à situação de agressão, elas desenvolvem certas estratégias de sobrevivência, como o silêncio. Do ponto de vista psicológico, ao evitar discussões, por exemplo, elas estão se esquivando de agressões e se mantendo vivas nesse ambiente adverso, sobre o qual elas não têm controle, nem que para isso precisem deixar de opinar, abrir mão de suas vontades, aderir ao isolamento e/ou ao mutismo. No conto, das três vezes que se atreveu a falar, Nadinha apanhou duas. Na primeira vez que sofreu violência física, ela recriminara o marido pelo fato de ele possuir um baralho erótico[6]. Para ela, isso não era coisa de homem casado. Era falta de vergonha. É interessante observar a predominância das leis patriarcais ainda na sociedade contemporânea, como os valores são inculcados na cabeça da mulher, fazendo com que ela condene o marido por olhar mulheres nuas em fotos e não o condene pelo fato de ele bater nela, tratando essa barbárie com normalidade. Por ter se atrevido a falar, o marido a espancou, deixando-a no chão, chorando e derramando sangue. Após observar o demasiado choro e sangramento da esposa, Fula Fulano, em um acesso de pena, como descreve o narrador, promete que, se ela parar de chorar, ele nunca mais sairá para jogar. Tudo indica que ela acreditou, pois na noite seguinte, ele ficou em casa até o recomeço do ciclo da violência, em que “inicialmente há a fase de agressão, seguida da fase de desculpas e, por fim, de reconciliação”[7].
O acesso de pena por parte de Fula Fulano, citado anteriormente, é bastante questionável, tendo em vista que não há indícios de arrependimento ao longo da narrativa. Pelo contrário, no único momento que ele reflete sobre suas agressões à mulher, a ela é atribuída a culpa:
Existe, existe, anuía o marido em sono. Coitada, a mulher. Devia ser que apanhou demais, tenho que abrandar a socaria. Eu lhe bato não é desamor, é só porque você é uma criança, entende Nadinha? Está a ouvir, Nadinha? Ela não entendia, parvinha que era, olho pregado nas fotos.[8]
Além disso, mais à frente na narrativa, o marido dá a entender que o seu último choro quase molhou e estragou seu baralho erótico. Percebe-se, portanto, que havia outros motivos pelos quais ele pediu que ela parasse de chorar, talvez até medo que uma terceira pessoa ouvisse. Ele não sente culpa ou remorso, por isso, em nenhum momento do conto, ele pede desculpas, já que na mente dos agressores não estão cometendo nenhum equívoco, estão sempre corretos e a culpa é sempre do outro, como ilustrado no trecho acima. Ressalto ainda que se trata de um comportamento extremamente machista, tendo em vista que é atribuída à mulher um status de parva, de incapaz e inferior, sendo também esse ato uma forma de maltratar a mulher psicologicamente. Com a repressão psicológica e física, ele exerce poder absoluto sobre o que a mulher faz, sente e pensa, mesmo no mais íntimo de seu ser. Dessa forma, nota-se que esse momento do “arrependimento” não é real, ele é apenas uma parte do ciclo de violência.
A noite em que o marido ficou em casa foi a mesma em que ela apanhou pela segunda vez. Seu silêncio, assim como sua voz, o incomodou. O egocentrismo, característica peculiar dos agressores, faz com que a mulher tenha que se comportar exatamente de acordo com a vontade deste. Dessa forma, Fula Fulano queria, de maneira atípica, conversar, mas ela não tinha o costume de travar diálogos com o marido (nem com ninguém), pois sua zona de segurança era justamente o silêncio. Entretanto, ela sentia-se só, tinha vontade de falar com alguém, com outras mulheres, amigas, tanto que falava sozinha na ausência do marido. E quando questionada por ele se não queria conversar, respondeu que sim, mas com a mulher que existia dentro dele. O ciclo de violência recomeçou com uma nova agressão. Depois da surra, ele não ficou em casa para fazer as pazes, foi direto encontrar seus amigos de jogo, quebrando, assim, a promessa que havia feito a sua esposa na última reconciliação. Seus colegas estranharam o comportamento de Fula Fulano naquela noite, descrito como brusco pelo narrador. Nota-se, portanto, que ele era “fula” apenas com ela. É comum dos agressores possuir um comportamento agradável e simpático em seu círculo social, não levantando suspeitas de sua conduta repugnante no convívio íntimo familiar.
Ao distribuir as cartas do baralho erótico para os amigos, um deles recebe uma carta, que, na verdade, era uma foto de Nadinha nua, entregando-a, em seguida, com relutância, ao Fula Fulano. Neste trecho da narrativa, tem-se uma imagem construída pela ideologia social, na qual as mulheres devem viver para agradar aos homens, pois, apesar de Nadinha se enamorar “das mulheres das capas, que [são] lindas, [que] nem transpiram, nem enrugam com o tempo”[9], ela demonstra reprovação e desgosto quanto ao baralho erótico, contudo, diante do valor que o marido demonstrou dar àquelas imagens, em detrimento da imagem da própria Nadinha, ela se fotografa e coloca a fotografia entre as cartas do baralho. Essa é uma forma de subserviência, pois ela se comporta de determinada maneira somente para agradar ao seu esposo. Talvez haja até culpa, sentimento partilhado entre as vítimas de violência, por não ser tão atraente como as mulheres que compunham o baralho.
A princípio, a última parte do conto é bastante contraditória, já que ao chegar à sua casa, Fula Fulano, com raiva, não bate na mulher, como esperado, mas sim a beija com paixão. Mas se voltarmos para o segundo ciclo de violência narrado, percebe-se que a sua última fase foi a agressão, portanto, a próxima seria justamente a reconciliação, sendo exatamente isso o que acontece. Assim, um ciclo de violência termina junto com a narrativa, pronto para começar outros. Mia Couto construiu uma figura feminina vinculada à subordinação, à fragilidade e ao silêncio. E não há final feliz, nem uma idealização da situação, já que Dona Nadinha não se liberta das agressões, pelo contrário, é refém daquela situação que acomete o seu espaço doméstico. Além disso, não há resistência de sua parte, tendo em vista que ela nem ao menos questiona o contexto de violência em que está inserida, agindo com extrema naturalidade quanto ao mesmo. Essa mulher, assim como tantas outras, vive no silêncio, é invisível, tal como seu sofrimento, mesmo que a violência a qual lhe é investida não seja, já que a mesma fica estampada em seu corpo, mas este não reclama pela voz, e sim pelas lágrimas e pelo sangue. Nesta curta narrativa, o autor leva o leitor a refletir o quanto a vida dessa personagem é desumanizada, sem valor algum, justamente como é pregado pela ideologia patriarcal, em que se impõe o poder masculino em detrimento dos direitos e vontades das mulheres, subordinando-as às necessidades pessoais dos homens.


COUTO, Mia. “Baralho erótico”. In: Contos do nascer da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. São Paulo: BestBolso, 2014.
BRASIL. Lei n. 11.340. (2006). Lei Maria da Penha. Brasília: Presidência da República.
DALCASTAGNÈ, Regina. “Renovação e permanência: o conto brasileiro da última década”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 11. Brasília, janeiro/fevereiro de 2001, pp. 3-17.
JODELET, Denise. “As representações sociais: um domínio em expansão”, em Jodelet, Denise (org). As representações sociais. Rio de janeiro: EDUERJ, 2001, pp. 14-44.
SCHWAB, Beatriz; MEIRELES, Wilza. Um soco na alma: relatos e análises sobre violência psicológica. Brasília: Logos 3, 2014.
SHOWALTER, Elaine. Speaking of gender. New York and London: Routledge, 1989.


[1] BRASIL, 2006.
[2] BOURDIEU, 2014, p.55.
[3] JODELET, 2001, p. 14.
[4] COUTO, 2014, p. 135.
[5] COUTO, 2014, p. 137.
[6] Tipo de baralho que contém imagens de mulheres despidas.
[7] SCHWAB; MEIRELES, 2014, p. 26.
[8] COUTO, 2014, p. 136.

[9] COUTO, 2014, p. 135.

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