8 de junho de 2019

Um corpo é um corpo: notas sobre deficiência e literatura

Isadora Maria Santos Dias

Bodies, de Thomas Hawk

Compreendendo deficiência como marcador social de possíveis marginalizações sociais, em A prótese narrativa (The Narrative Prosthesis, título original), David Mitchell e Sharon Snyder chamam de narrativas protéticas, as histórias nas quais personagens com deficiência tem: 1) deficiência evidenciada como forma de diferenciação, como aquilo que foge à norma; 2) quando a deficiência é usada como dispositivo metafórico oportunista. E para isso, analisam algumas narrativas clássicas.
De acordo com estes autores, na obra O soldadinho de chumbo, por exemplo, há uma diferenciação/caracterização pela deficiência, já que o brinquedo-soldado, sem uma das pernas, chama a atenção da criança por este atributo, e é renegado por ser um “aleijado feio” e por isso acaba morto, sendo jogado na lareira.  Já em Édipo, Rei, de Sófocles. trata-se do exemplo de deficiência como dispositivo metafórico: ao cegar-se Édipo buscaria autopunição e elevação, como se a ausência de visão, necessariamente, o tornasse mais digno. Mitchell e Snyder chamam atenção ainda para o fato de que muitos personagens místicos, bruxos e videntes são representados como cegos, pois de acordo com uma perspectiva platônica-idealista, a cegueira os faria perceber o mundo de modo mais profundo, como ele realmente é.  
Para nomear o conjunto de opressões e violências geradas contra pessoas com deficiência pela deficiência, usa-se o termo capacitismo. Esta palavra, recentemente traduzida para o português brasileiro, engloba e questiona as ideias, narrativas e práticas sociais a respeito do que é um corpo normal, saudável versus um corpo anormal, doente no mundo. Assim, os mecanismos apresentados por Mitchell e Snyder como narrativa protética nada mais seriam do que formas capacitistas de dominar e limitar o imaginário e representação sobre o que é ter deficiência. Associar a existência de pessoas cegas (mascando chiclês ou não) a elevação espiritual ou uma criança exterminando alguém, ainda que ficcional e simbolicamente, por conta de deficiência física não estaria dizendo sobre o lugar desses corpos, pessoas em sociedade?
E não se trata de restringir análises, deficiências podem sim ser analisadas como metáfora para mazelas sociais, desvio de caráter, diferenciação ou qualquer outro tipo de relação com a negação. Contudo, até que ponto a análise de deficiência, em personagens e narrativas, como recurso exclusivamente metafórico não é limitante ou reducionista? Até que ponto as análises que tratam de existências deficientes como apenas analogias para outras coisas não estão contribuindo para o apagamento simbólico e material dessas existências em realidades para além da ficção?
Não se trata de impossibilitar o uso metafórico do corpo, mas de se perguntar e disputar os discursos em torno das noções de corpo, se perguntando de qual corpo se fala, e quais as implicações sociais e políticas disso. Ainda sobre os mecanismos da prótese narrativa, no livro Deficiência na ficção científica: representações de tecnologia como cura (Disability in science fiction: representations of technology as cure, título original), Kathryn Allan analisa o modo como neste gênero é recorrente a narrativa de compensação de deficiências por meio da obtenção de super-poderes e, por consequência, a transformação em algo superior e mais válido do que um ordinário corpo deficiente, ou seja, um super-herói.    
           E se pararmos para pensar, parte significativa do universo dos quadrinhos de super-heróis, ou das histórias que narram epidemias de vírus zumbi, ou, ainda, se repararmos na estranheza das representações de aliens, orcs ,criaturas como a criada por Victor Frankenstein, não estamos, no fundo, tratando sobre definições de corpos: normais e anormais, saudáveis e doentes, contaminados e puros? Não é também a partir da descrição dessas corporalidades outras que o estranhamento se faz? Por que, então, é tão escasso o uso da categoria deficiência como chave de leitura/análise em literatura?
           Metaforização, diferenciação e compensação/superação, são esses os principais recursos analíticos relacionados à deficiência. São essas as lentes geralmente usadas na avaliação de personagens com deficiência e suas histórias. Entretanto, em qual medida esses recursos dizem não sobre o objeto pesquisado, mas sim sobre quem pesquisa? O quanto ou o quê significa o entendimento de deficiência apenas como ausência, falha ou insuficiência, e não como um aspecto estruturante de diversas vidas?
  No filme Margarita com canudinho, de Shonali Bose, a protagonista, Laila, uma jovem, indiana, com paralisia cerebral, se muda para os Estados Unidos para fazer um intercâmbio em uma universidade. Nessa história, o foco não é a superação da paralisia cerebral ou sobre como a protagonista serviu de inspiração, elevação moral para as personagens sem deficiência da narrativa.  Aborda-se nada mais nada menos do que a experiência de uma jovem com deficiência lidando com questões sociais, políticas, afetivas, psicológicas, sexuais, de acessibilidade e fisiológicas em sua vida, e sim, a deficiência atravessa todas e cada uma dessas áreas, porém, não é o foco exclusivo caracterizante da personagem e da narrativa.
Seguindo esta lógica, o romance autobiográfico O corpo em que nasci, de Guadalupe Nettel, não se reduz a contar sobre o sofrimento e a necessidade de compensação de uma protagonista com deficiência visual. Conta, sim, sobre como a perspectiva de familiares, amigos e um mundo despreparados para compreender corpos ditos anormais pode contribuir negativamente para a sensação de deslocamento de quem é visto como outsider, anormal, não-saudável.  
Nessas duas narrativas, não há um foco na diferenciação ou na metaforização da deficiência, há, pelo contrário, a possibilidade de existir plenamente a partir de corpos que são socialmente entendidos como inferiores e/ou menos humanos. No álbum musical Um corpo no mundo, Luedji Luna situa a si a partir de “cor, corte e história do seu lugar”, do lado de cá, eu me atreveria a observar e acrescentar que para situar um corpo no mundo e as narrativas de e sobre ele é necessário, também, refletir quais as formas, as deformidades, texturas e anormalidades dele. Porque, para além das metáforas sobre sujeira e degradação e do simbólico, corpos e histórias com deficiência existem.  Afinal, quando descrevemos, narramos sobre corpo nos referimos não somente a aspectos psicológicos, metafóricos ou imaginativos, há, em contrapartida, noções do que é corporalidade e, mais especificamente, do que é habitar ou ser um corpo estranho.

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