18 de março de 2017

Entre o abaixar e o erguer de uma cabeça

Bruna Paiva de Lucena



Tia Lene, de Guilherme Memi (2016)

Um dos enormes problemas sociais do Brasil é o analfabetismo. Estima-se que 27% de nossa população seja analfabeta, ou seja, por volta de 13 milhões de pessoas em nosso país não escrevem o próprio nome ou leem a identificação das ruas que ora e vez pisam. Em suas vidas, as palavras escritas são o desconhecido, o inatingível, sendo, em diversos contextos, o que os oprime.
Para nós que vivemos envoltos em palavras escritas, em um mundo polifônico de textos em papel e telas, o domínio da leitura e da escrita muitas vezes não perpassa nossos questionamentos, já que o escrito é a substância sobre a qual corriqueiramente nos debruçamos. A prerrogativa do escrito e o imperativo do escriptocêntrico no que se entende por literatura não deixam também de denunciar nossa indiferença para o problema e o seu não enfrentamento. As seguintes indagações podem ser postas nesse sentido: Mas não estamos tratando da literatura? A literatura não pressupõe o escrito, a leitura e a escrita? A constituição da literatura já não implica a exclusão do que não se pode escrever e ler?
A resposta imediata a essas indagações é SIM. No universo acadêmico de preocupações, o não domínio da letra é entendido como algo a ser combatido exclusivamente no âmbito das políticas públicas da educação e cultura, pressupondo o estudo acadêmico da escrita e leitura de seus agentes e consumidores. Conforme comprova ampla pesquisa acadêmica realizada no âmbito da poética das vozes, o entendido como literário é o que se assenta unicamente em bases escriptocêntricas. Os estudos literários conformam-se, de modo geral, no que Antonio Candido designa de direito à literatura, e sua reivindicação é a da aquisição da alfabetização para a democratização do acesso ao texto.
Saber ler e escrever é, inegavelmente, um bem simbólico, um capital cultural que possibilita o acesso a um mundo. O domínio da cultura escrita é um índice de distinção social. Em um país com a imensa desigualdade econômica e social como o nosso, o direito a esse mundo é muitas vezes usurpado. Contudo, seria possível pensar, em um exercício de radicalidade discursiva, mas também existencial, na recusa objetiva a esse bem? Em uma negação à entrada no universo da escrita e no que ele representa? Em um exercício de questionar o a priori inquestionável?
Esse exercício é feito pelo escritor pernambucano Marcelino Freire em seu conto “Totonha”, publicado em 2005, no livro Contos Negreiros, ganhador do prêmio Jabuti de 2006. Este conto é narrado em primeira pessoa pela personagem que dá nome ao texto, Totonha, que, como em um palco, questiona o valor em sua vida do escrever e do ler, além de tratar essas ações como sinônimas de cooptação a um sistema de valores, de modo que se manter alheia a eles é significado como um ato de resistência. Ao final do conto, Totonha diz: “Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber o que assinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever”.
O tom do conto é o de resposta à afirmação-indagação: você não saber ler, você não sabe escrever; por que não aprende? A personagem está claramente rebatendo a isso: “Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso”. É claro o tom de desdém desaforado adotado pela personagem. O conto consiste justamente nesse espaço de resposta performática, em que a página funciona como palco para a encenação de uma possibilidade e não de uma única verdade, já que se suspende a ideia de totalidade ao se escancarar teatralmente os limites dos significados presentes na realidade.
Trata-se de um exercício retórico e teatral que, apesar de sua parcialidade, tem um importante caráter problematizador da segregação gerada pela diferença cultural – os que leem e escrevem e os que não. Não se trata da possibilidade de escolha entre desfrutar ou não do mundo das palavras, mas na defesa do valor de quem não lê, até mesmo da defesa ressentida da sua existência. Essa poética anuncia performaticamente uma ambivalência de valores, já que para Totonha aceitar a cultura escrita parece ser aceitar uma unissonância cultural e existencial, baixar a cabeça a uma imposta cultura de elite. Ler e escrever servem para quê? Essa personagem recusa a experiência do aprendizado da língua, da escrita, da literatura, renuncia as funções da escrita e da leitura.
Assim, instauram-se gestos de negação ao planejado, ao discurso previsível. Totonha vira a mesa com um revide performático, como uma recusa perante o mundo da escrita. A incômoda alternativa escolhida pela personagem ganha corpo no texto, a despeito de na realidade seu discurso ser amplamente refutável. Daí se percebe o poder que a performatividade agrega a esse texto, criando-se na articulação da personagem uma posição de resistência.
A performance é a estética adotada para a ressignificação de uma ausência, positivada pela personagem como uma outra forma de se viver, como uma falta para os outros, mas que para ela não existe, como “a geografia do rio seco”e “o risco da poeira”. Ela negligencia as implicações de não se saber ler e escrever no mundo prático, desfazendo-se dessa negatividade, e dá a ver a dispensabilidade das letras em sua vida: “Morrer, já sei. Comer, também. E vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não é uma doença. Tenha santa paciência!”, diz Totonha. A narrativa questiona o pressuposto da falta de quem não sabe ler e escrever e mesmo articula um gesto de extremo desprezo a quem duvida da autossuficiência e totalidade de quem não domina as letras, ao mesmo tempo em que afirma a possibilidade de se viver sem sentir-se diminuída pelo não acesso ao universo da escrita.
A voz de Totonha nos impele a realizar o movimento que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro denomina de dupla implicação, uma vez que o posicionamento da personagem carrega a potência de alterar o discurso de verdade segundo o qual ler e escrever são bens que todos desejam, havendo a comum alteração dos discursos em jogo. Uma leitura que não compreenda o discurso de Totonha como uma alteridade possível, vivível e verossímil desumaniza e mesmo destitui de valor um mundo oral, não escriptocêntrico.
Fazendo também um movimento de negação combativa – que consiste em uma forma de superar a mera negação constitutiva e colocar-se em posição de combate, invertendo a ordem de valores estabelecidos historicamente, ameaçando e desestabilizando – a slammer brasiliense Meimei Bastos diz em poema publicado em 30 de março de 2016 em uma rede social:

Eu num li Beauvoir, 
fiz foi presenciar a covarde
“superioridade” masculina
nos roxos de minha mãe.
Foi daí que eu me inventei feminista,
sem nem saber, 
que toda vez que me punha na frente
pra ele num bater 
pra defender
com pouco mais de quatro anos
eu já lutava 
contra o que tempos depois
iria conhecer pelo nome machismo.
Eu num li foi nada!
fiz foi viver!
ver,
vejo!

Aqui, reivindica-se a aprendizagem pela experiência na carne e não mediada por livros. Contrapõem-se ler a viver, traçando-se uma dicotomia entre essas ações no que se refere às formas de se acessar ao mundo. As marcas da violência de gênero são apontadas como a base para a formulação de uma consciência feminista, marcada essencialmente por determinado espaço de classe, de gênero e de raça. O feminismo construído sem suas teorias, que são anteriores a sua prática, é tomado nesse poema como arma que se constitui a partir de uma experiência de vida, sendo a leitura apontada apenas como outra forma de conhecimento. Aqui a vivência é a partida para o pensamento.
Contrariamente à atitude de Totonha, e também à encenada pela narradora do poema de Meimei Bastos, em que ambas as vozes poéticas se recusam a abaixar a cabeça para ler, no poema “Não vou mais lavar os pratos”, publicado na obra homônima de 2010 de Cristiane Sobral, escritora carioca radicada em Brasília, abaixar a cabeça para ler, no sentido de adentrar e dominar o escrito, é um exercício de libertação, redenção de um espaço de servidão, e uma forma de acesso a um mundo feito para poucos, de liberdade e cuidado consigo. Transcrevo um trecho:

Não vou mais lavar os pratos
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito. Comecei a ler
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
Não levo mais o lixo para a lixeira
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos
a estética dos traços, a ética
A estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante

Nesse poema, a relação entre empoderamento e acesso ao mundo escriptocêntrico é clara. A distinção entre trabalho braçal e intelectual é posta e mesmo exagerada em uma performance do eu-lírico, na tentativa de ressaltar a tomada deliberada de determinado pensamento perante a vida.
Em contraposição à personagem Totonha e ao eu-lírico de Meimei Bastos, esse poema festeja a libertação da vida doméstica, que no poema é destituída de significância, e a apropriação do bem simbólico que é a leitura significativa. A experiência na vida doméstica entendida nos outros poemas como fonte de conhecimento sobre a vida como um todo é rejeitada performaticamente em “Não vou mais lavar os pratos”, em que o eu lírico faz uma elegia ao mundo escriptocêntrico no qual acaba de entrar. A divisão entre trabalho prático e intelectual é expressa entre as ações de lavar os patos – metáfora de servidão e submissão – e de ler – formulada como uma ação capaz de libertar, comparada ao final do poema com a abolição da escravidão. Aqui o contato e a apropriação da cultura escrita têm o poder de livrar a personagem do mundo ordinário e do trabalho não intelectual.
O conjunto de textos apresentados aqui encena um território de disputas simbólicas que constituem o mundo da escrita e leitura e nos impele a pensar sobre as diferentes dimensões envolvidas no dado direito à leitura. As três personagens, adotando estratégias argumentativas distintas, traçam formas de desconstrução e resistência às opressões que o mundo lhes apresenta, recusando-se ao vitimismo que as colocariam em um espaço de despossuídas de palavras, de culturas. A altivez das personagens apresentadas são sintomas do empoderamento de mulheres que narram sua própria história.
Ao lermos esses três textos parece que estamos diante de corpos vivos que falam, que contam sua própria história, sendo o ato performático o recurso estético empregado para conferir verossimilhança e mesmo para adensar os textos. O jogo retórico e performático empregado é o que de alguma forma nos permite pensar o binarismo entre cultura/conhecimento escriptocêntrico e cultura/conhecimento prático.
Vale ressaltar, contudo, que consiste em um impasse meramente retórico, encenado em performance, porque a escrita e a leitura não têm sido postas como possibilidades, das quais poderíamos nos apropriar ou não. Ao contrário, apresentam-se como privilégios, que são revelados do avesso pelo desdém de Totonha ou a supervalorização e superpoderes da leitura apontados pelo eu-lírico de Cris Sobral.
É quase impossível não avaliarmos o discurso que perpassa essas três narrativas como idealista, parcial e utópico. Contudo, as armadilhas ideológicas nos apontam para um exercício de radicalidade analítica que questiona a supremacia escriptocêntrica, aponta para nossos preconceitos e apresenta existências fora do jogo de palavras.
Mesmo que em nós paire uma forte tendência a fazer uma elegia à escrita e leitura, aqui não é esse o posicionamento. Buscou-se pensar os impasses, mesmo que apenas possíveis em um nível discursivo, retórico, performático, na tentativa de redimensionar o valor da cultura letrada e seu papel como criador de discriminações. Talvez o exercício seja não o de discriminar, mas o de positivar as diferenças e a coexistência de posições contrastantes, tendo em vista que o papel da educação é não só ampliar os acessos a outras realidades, mas também redimensionar o que carregamos em nós mesmos. As hierarquias a que somos sujeitos durante a vida não devem ser capazes de nos retirar de nós mesmos, mas, ao contrário, podem ser o ponto de partida para que nós aprendamos a nos colocar no lugar de outros, neste caso, das pessoas que nunca lerão essas palavras, porém que, de alguma forma, as vivem.


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