3 de junho de 2017

MC Soffia e Betina: meninas negras que discursam

Dalva Martins de Almeida

Imagem: Ruud Van Empel

Como pesquisadora de literatura infantil brasileira de autoria negra, certamente não é a primeira vez que leio Betina, de Nilma Lino Gomes. Porém, procurei desta vez fazer uma leitura conjugada: enquanto lia Betina, escutava a música “Menina Pretinha”, da MC Soffia, rapper paulista de doze anos. Ao ler o texto, parei na página nove, que mostra a imagem da protagonista refletida em um grande espelho, cabeça e metade do tronco.

Ver a imagem de Betina através do espelho não é somente agradável aos olhos: de fato, ela é uma menina linda! No entanto, ao expressar apenas que a menina negra que se mostra no espelho de sua sala, é bonita, bem arrumada, limpa e feliz, pode significar que estou somente reproduzindo o discurso do colonizador. Para fugir dessa armadilha, recorro a algo dito por Judith Butler em torno do corpo desvalorizado da mulher, que é o corpo abjeto: ele é excluído, negado.

A despeito do que era reservado à menina negra em narrativas brasileiras, como exemplo, no conto Negrinha de Monteiro Lobato, que apresenta uma menina negra, mirrada, usando trapos, faminta, a quem o narrador chama ironicamente de órfã, e morava em um canto escuro da cozinha da casa da bondosa sinhá, Betina mora com a família, tem uma infância cuidada, vai para a escola, tem espaço e voz em sua casa, na escola e demais ambientes em que frequenta. Então, nos perguntamos: mas isso não é o que toda criança merece, ser bem tratada?

A resposta é complexa: envolve o modo como nós, brasileiros, lidamos com as estruturas de racismo em nossa sociedade, isto é, como praticamos a tal democracia racial no Brasil. Ao nos declararmos miscigenados, frutos da combinação das três raças: indígena, branca e negra, estamos repetindo aquele mesmo discurso velado: somos todos iguais. Não, não somos todos iguais no Brasil, pelo simples fato de que as oportunidades não são iguais. E lembro: os meninos negros são a maioria da população carcerária brasileira.

Betina comunica ao mundo que a pessoa negra que está ali refletida, possui um corpo não abjeto.  Ao invés de denominar que ela é bonita, usa vestido azul e possui um lindo sorriso, podemos e precisamos ler em suas entrelinhas o que a personagem quer nos revelar. Uma leitura possível, é que rompe com o processo de branqueamento praticado pela pessoa negra para ser aceita pelo outro que a oprime, ao mostrar as suas tranças produzidas pelas mãos de sua avó, que representa, entre outros, a guardiã das memórias e culturas africanas. Ao trançar o cabelo da neta, a avó lhe conta os segredos africanos dos seus antepassados. Quando se mira no espelho, a menina quer parecer com ela mesma, o seu cabelo é o modo peculiar de se fazer presente no mundo.

O discurso de Betina se legitima no modo como ela se enxerga: um sujeito que pode transgredir com o silenciamento, com os processos de assimilação. Desse modo, a cor da pele, a textura do cabelo, os traços europeus - padrões que foram, sutilmente, sedimentados em nossa cultura - precisam ser combatidos. Frantz Fanon alertou-nos em relação aos processos de racismo na infância negra, que injeta ali seus contornos definitivos. Betina, ao olhar para o espelho, discursa pelo corpo, discursa pelo cabelo, e ressignifica o olhar sobre a menina negra.

Por isso, não é a postura de subalterno a que vemos surgir em Betina, pois percebemos a sua voz. Talvez porque reli o texto de Gomes juntamente com a canção da rapper, surgiu um diálogo entre as duas: Soffia fala com Betina: “Menina pretinha, exótica não é linda/Você não é bonitinha/Você é uma rainha”. Ao quebrar com o discurso do exótico (o que fala de fora), a rapper discursa que o que a menina negra quer não é a assimilação, ela busca pertencimento.

Confesso que gosto muito do texto da Ana Maria Machado, sua escrita é exímia. As leituras de suas obras infantis são ritmadas e nos encantam. No entanto, causa-me um estranhamento ao ver o Coelho, que é branco, olhando a Menina Bonita do Laço de Fita, preta, linda, dançando balé. Ele, o coelho, quer saber o porquê da menina ser bonita, e essa lhe responde de modo alheio, sem saber exatamente o que dizer. O olhar do coelho, é o que aponta MC Soffia, é o olhar do outro, do exótico.

Nesse contexto, Betina não é bonitinha, talvez a rainha cantada por MC Soffia. Destarte, rainha significaria aqui, quem sabe, um meio de dizer que muitas meninas princesas, muitas mulheres rainhas vieram nos tumbeiros, subtraídas do convívio de suas famílias e de suas pátrias na diáspora negra. Então, esse adjetivo de rainha cabe.

Na construção da identidade negra feminina infantil cabem outros elementos lembrados pela rapper: a necessidade das meninas negras brincarem com bonecas negras, as Makenas, de ouvir histórias de griôs, ou de quem faz esse papel, das culturas africanas. A rapper também discursa que é preciso pertencer. Ou seja, assumir que: Sou criança, sou negra. Sou resistência. Para tanto, é preciso se reconhecer negro, saber que as histórias africanas foram apagadas dos livros didáticos por décadas, ou, quando presente, nunca eram lidas nas escolas. As histórias dos negros foram contadas com filtros da colonização, da indiferença. O preconceito praticado no Brasil foi sutilmente alimentado pela visão de que tudo relacionado ao africano e seus descendentes relaciona-se aos processos de inferiorização.

Quantas meninas negras são ainda escravizadas pelas amarras da negação? Todavia, numa força contrária, muitas mulheres e meninas negras proferem outros discursos. Acredito que Soffia e Betina teceram um longo diálogo. A nossa fala se interrompe aqui. Não se conclui, no entanto.

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